quarta-feira, 7 de maio de 2008

Rosmarie Waldrop contra a falácia do neutro

especial para a Modo de Usar & Co.

Rosmarie Waldrop nasceu em Kitzingen, Alemanha em 1935 e emigrou para os Estados Unidos em 1958, quando já tinha mais de 20 anos de idade. Este é um dado importante na compreensão de sua poética, pois Waldrop faria dos choques lingüísticos e da desconfiança do signo em sua não-naturalidade algumas de suas matérias mais enriquecedoras. Em uma entrevista, Waldrop declarou sentir-se deslocada tanto na Alemanha quanto nos Estados Unidos, dizendo que seus fonemas embaralharam-se ao cruzar o Atlântico e que ela falava os dois idiomas com um sotaque, tanto o alemão quanto o inglês. Segundo ela, isto a salvava da ilusão de crer-se dominando qualquer língua, de ser "a master of language". Como "estrangeira", impedida de considerar meramente óbvia e natural a linguagem ao seu redor, com a qual os "outros" se comunicavam, incluindo seu marido, o poeta Keith Waldrop, a escritora e poeta Rosmarie Waldrop adota a língua do seu novo país e passa a fazer do princípio wittgensteiniano do "significado da palavra como o uso que se faz dela na língua" seu princípio poético formal mais determinante.

Além deste fator, haveria a consciência corporal de ser uma poeta do sexo feminino. No entanto, isto não viria a se manifestar em Rosmarie Waldrop como uma poética feminista conteudística ou militante, como vemos em uma poeta como Adrienne Rich. Em Waldrop, isto se tornaria um questionamento das estruturas da própria linguagem e das armadilhas sexistas contidas nela, ecoando a pergunta de Susan Howe em seu livro My Emily Dickinson:

"Quem policia questoes de gramática, partes do discurso, relação e conotação? A quem pertence a ordem enclausurada na estrutura de uma frase?"

"Who polices questions of grammar, parts of speech, connection, and connotation? Whose order is shut inside the structure of a sentence?"

Uma das pesquisas principais de Rosmarie Waldrop se tornaria o questionamento sintático e gramatical do que rege sentenças coordenadas e subordinadas, além da relação sujeito/objeto na língua, assim como Susan Howe se entregaria a uma poética de revisitação histórica, questionando em seus poemas-ensaios até mesmo decisoes editoriais na publicação das obras de Emily Dickinson e Herman Melville. Em uma conversa-entrevista com a poeta Joan Retallack (em que cita A Paixao segundo GH, de Clarice Lispector, como exemplo da prosa que ela admira), Waldrop diz:

"Eu adoro incluir o corpo em minha escrita, especialmente para subverter idéias como "pensamento puro". Ao mesmo tempo eu sou, é claro, alérgica ao estereótipo da mulher como mero corpo."

"I love getting the body into my writing, especially to subvert ideas like “pure thought.” At the same time I’m of course allergic against the stereotype, of the woman as sheer body."

É importante ressaltar que se trata de uma das poetas experimentais mais radicais da poesia americana contemporânea, ligada aos grupos de vanguarda da década de 70 e 80, que não escreve uma poesia facilmente classificada de feminista, mas que ao mesmo tempo não se acanha perante a questão da sexualidade e sua contextualização histórica na poesia.

A discussão de gênero no Brasil é feita detrás de trincheiras de arame farpado, entregando-se ao próprio dualismo que a discussão deveria estar questionando. De um lado, aqueles que se crêem defensores da liberdade literária em sua pseudo-universalidade, querendo defender o Olimpo (feche os olhos e imagine a cor do mármore) da invasão de bárbaros defensores dos direitos dos gays, das mulheres, dos negros, dos pobres, que inevitavelmente expulsariam alguns mestres por terem sido racistas, espancarem a esposa ou algo do gênero. Do outro lado, há os que infelizmente dão razão à "contextofobia" dos literatos, por se entregarem justamente a um discurso neo-determinista e pouco crítico-poético, que se baseia e concentra muito mais no extra-literário que na relação entre poesia e história, poesia e sociedade, como fizeram Benjamin, Kenner, Agamben, Howe, entre outros. Estes últimos exemplos de críticos, porém, deveriam bastar para mostrar que contextualização histórica não significa necessariamente engessamento e esterilidade poéticas. Os ensaios de Benjamin sobre Baudelaire ou Kafka, os ensaios de Kenner sobre os modernistas americanos (e em especial seu livro The Pound Era), os livros Infância e História de Giorgio Agamben ou My Emily Dickinson de Susan Howe são exemplos de pensadores que se entregaram com coragem ao debate, sem se perderem em dicotomias obsoletas que opôem estética e história ou, dentro desta última, sincronia e diacronia.

Assim, geralmente entra-se num acordo na busca pelo neutro. Ora, o neutro é justamente o que precisa ser evitado. Pois o neutro é a tática masculina, branca e heterossexual para manter-se no privilégio daquele que escreve a história e estebelece o padrão. É por isso que eu acredito que a busca de mulheres, negros, homossexuais (tomadas aqui como exemplos mais freqüentes do que é visto como minoritário e portanto oprimido ou excluído), além da construção de uma literatura feminina, negra e homossexual, seria em verdade muito mais eficiente na definição, sob os seus próprios parâmetros, da literatura e poesia feita por homens brancos heterossexuais. As mulheres poderiam, assim, questionar as hierarquias ao escreverem sobre a poética masculina, definindo a identidade masculina a partir de seus próprios padroes, assim como os negros definiriam o branco a partir dos seus, e os homossexuais definiriam o heterossexual, buscando uma outra forma de borrar estas fronteiras ou viver nelas, se for o caso, e não mais apenas desprezá-las por inconsciência político-po(É)tica de suas conseqüências. A esta altura do campeonato (quem está ganhando?), não se pode mais crer na ingenuidade do neutro.

Os homens brancos heterossexuais geralmente não se incomodam com a discussão enquanto ela trata apenas da busca por uma identidade feminina, não-branca ou homossexual, ou seja, desde que possam seguir fazendo sua literatura pseudo-universal. É quando sua própria identidade masculina, branca e heterossexual (hâ, nós temos uma? eles parecem perguntar-se) passa a ser contextualizada que o incômodo surge. Em uma entrevista à TV Cultura, ao ser perguntada sobre a "literatura feminina", a escritora Andréa del Fuego, respondendo que o rótulo é na maior parte das vezes usado para diminuir o trabalho das escritoras, acrescentou com inteligência: "Mas existe literatura de hominho também, vai!". Aí está a questão: os apêndices são usados apenas para o minoritário. No entanto, mesmo os autores masculinos, brancos e heterossexuais produzem literatura condicionada. Seria, neste sentido, po(É)ticamente interessante questionar a tática do neutro, usada pela historiografia literária.

Não defendo o retorno a uma espécie de determinismo nesta discussão. Nem que a qualidade literária seja abandonada em nome de um programa político racial ou sexual. O que interessa como adição e acréscimo ao debate po(É)tico é que a contextualização histórica da poesia possa também ser observada. Não se trata de revisão do cânone para incluir poetas ou escritores APENAS por serem negros, mulheres ou homossexuais. Mas nada impede que seja discutido o que rege a inclusão no cânone e o quanto os autores que já estão nele foram condicionados por sua posição social, relacionada ainda a sexo e cor.

Ninguém aqui precisa intimar alguém à leitura e audição do trabalho de Ricardo Aleixo, por exemplo, pelo fato do poeta ser negro. Devemos ler e ouvir e ver seu trabalho pela qualidade poética e artística intrínseca dele. No entanto, após observarmos e estabelecermos esta qualidade poética por uma discussão formal, interessa-me por temperamento entender de que maneira o trabalho poético de Ricardo Aleixo questiona e intervém em um contexto social brasileiro de exclusão racial e de um quase-apartheid da mentira da democracia racial. Interessa-me entender a poética de Ana Cristina César, Cláudia Roquette-Pinto e Juliana Krapp em seus aspectos formais, mas também de que maneira elas derrubam estereótipos que cercam o corpo e mente femininos, estabelecidos em discursos feitos por homens ao longo dos séculos. Penso na Clarice Lispector revertendo certos estereótipos em seus textos, num trabalho político sutil e iconoclasta, como o embaralhar do clichê da "mulher histérica com medo de baratas" em seus vários contos e romances (desde o conto de "como matar baratas" ao romance A Paixão segundo GH) ou o dito machista de que "o lugar da mulher é na cozinha", de onde ela dá aos machos-literatos do país um dos trabalhos mais intransponíveis de nossa literatura no conto "O ovo e a galinha". (Antes que os pseudo-universais chiem, já afirmo que não estou insinuando que estes trabalhos de Lispector limitem-se a isso). Desconheço quem leia Roberto Piva meramente por este ser homossexual. Ignorar sua homossexualidade, no entanto, em nome de um mero neutro literário universal, é perder de vista a implosão da lógica linear masculina e heterossexual em seus textos, nos quais é justamente esta pseudo-universalidade fictícia de trans-historicidade que se derruba, especialmente nos poemas de Piazzas e Abra os olhos e diga Ah!.

Interessa-me meditar sobre a maneira como estes autores questionam as categorias hierárquicas da Literatura, sem perder de vista seu trabalho, como diriam os literatos, formal. E não se trata de questionar a qualidade destes autores ou diminuí-los, mas é interessante perguntar também se, por exemplo, Joca Reiners Terron e Marcelo Mirisola escreveriam como escrevem se fossem homossexuais, e de que maneira isto condiciona o trabalho destes autores. A resposta óbvia aí está apenas para estabelecer este condicionamento do qual ninguém escapa. Citei nestes exemplos, de qualquer forma, apenas escritores e poetas que respeito, pois não se trata de regulamentar o processo de inclusão no cânone (a última coisa que desejo aos escritores que respeito é que venham a ser "leitura obrigatória" em algum vestibular de 2147), mas compreender de que maneira estes poetas e escritores, como Aleixo, Krapp, Piva ou Mirisola "regulamentam-se" em um meio lingüístico-social.

Nenhuma destas leituras exaure ou esgota um texto poético. No entanto, eu acredito que tampouco uma leitura meramente "formal" o possa fazer. É neste relacionamento extremamente complexo entre a poesia e seu contexto histórico mutante que reside tanto de seu fascínio.

Jamais sugeriria que o debate poético e literário "formal" seja suplantado por um mero debate de gêneros (ainda que a relação entre GENDER e GENRE ainda esteja à espera da crítica no Brasil) mas que este debate possa ser feito com uma maior consciência de sua contextualização histórica e política, sem a qual a poesia e a literatura retornam a uma mera instrumentalidade de formas, como simples prática de bom gosto, onde muitos hoje as querem.

-- Ricardo Domeneck.



POEMAS DE ROSMARIE WALDROP


Abaixo, tradução de um dos fragmentos em prosa do livro Reproduction of Profiles, seguida de arquivo de áudio com a leitura deste fragmento e outros por Rosmarie Waldrop, e o original do texto em inglês:


Eu inferira das imagens que o mundo era real e portanto pausara, pois quem sabe o que há de acontecer se falarmos a verdade enquanto subimos as escadas. De fato, eu tinha medo de seguir a imagem até onde ela se espraia na realidade, nela esticada como uma régua. Eu pensei que morreria se meu nome não me tocasse, ou apenas com sua extremidade, deixando o interior aberto a tantos sensores como chuva casual despencando das nuvens. Você riu e contou a todos que eu confundira a Torre de Babel com Noé em sua Embriaguez.




I had inferred from pictures that the world was real and therefore paused, for who knows what will happen if we talk truth while climbing the stairs. In fact, I was afraid of following the picture to where it reached out into reality, laid against it like a ruler. I thought I would die if my name didn’t touch me, or only with its very end, leaving the inside open to so many feelers like chance rain pouring down from the clouds. You laughed and told everyone that I had mistaken the Tower of Babel for Noah in his Drunkenness.

(from The Reproduction of Profiles, 1987)


Poema do livro The Agressive Ways of the Casual Stranger, o primeiro de Waldrop, publicado em 1972, em que se pode observar o trabalho da poeta com a relação entre sujeito/objeto a partir do sintático.


Entre

Eu não me sinto muito em casa
em qualquer lado do Atlântico
Eu não estou irritada os peixes
guardaram-me
um lar faz você esquecer
insciente
onde você está
a não ser que pense que gostaria de
estar nalgum lugar
Eu não penso que eu gostaria de estar
nalgum outro lugar
lugares são muito iguais
ciente
Eu estou nenhures
Eu estou de pé firme numa folha líquida
tocada de todos os lados
trocar seu país
não faz você
crescer (uma boneca alemã
como uma imagem da América?)
não faz você mudar tanto
que não se lembre
Eu me lembro
coisas são muito iguais
tão iguais
diferenças são farpadas
Eu experimento viver à distância
assistindo duma janela
imóvel
nem totalmente aqui
nem ali
uma criatura com pulmoes e guelras
Eu vivo em água rasa
mas
quando chove
Eu herdo a terra

(Tradução de Ricardo Domeneck)


Between

I´m not quite at home
on either side of the Atlantic
I´m not irritated the fish
kept me
a home makes you forget
unaware
where you are
unless you think you´d like
to be some place
I can´t think I´d like to be
some other place
places are much the same
aware
I´m nowhere
I stand securely in a liquid pane
touched on all sides
to change your country
doesn´t make you
grow (a German doll
into an image of America?)
it doesn´t make you chance so much
you can´t remember
I remember
things are much the same
so much the same
differences are barbed
I try out living at a distance
watching from a window
immobile
not all here
or there
a creature with gills and lungs
I live in shallow water
but when it rains
I inherit the land

(from The Aggressive Ways of the Casual Stranger, 1972)


Poema do livro Split Infinities, em que Waldrop entrega-se a uma poética de hesitação, evitando a fixação plurivocal semântica muitas vezes vista como única maneira possível de "carregar a linguagem de significado", como Pound
queria a literatura.



se um pássaro se
mui alto no ar
se frio se

precisamos se aderir se
uma estrada se rebatizada por
se cada se viagem

mais que um conjunto
se de trevas anjo nenhum
prenúncio nenhum

ainda mais adentro se
a voz do
cantor se

concebida se em dor
como se um pássaro
se em asas

(tradução de Ricardo Domeneck)


if a bird if
up into the air
if cold if

we must if adhere if
a road if renamed by
if each if traveling

more than one set
if of darkness no angel
no annunciation

deeper yet if
the singer´s
voice if

borne if by grief
as if a bird
if on wings

(from Split Infinities, 1998)


No link abaixo, é possível ler a conversa entre Rosmarie Waldrop e Joan Retallack, em que discutem o feminino na literatura, a relação entre GENDER e GENRE, e Waldrop cita o trabalho de Clarice Lispector:

Rosmarie Waldrop e Joan Retallack in conversation.

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