sábado, 6 de dezembro de 2008

O fim dos fins da canção

O fim dos fins da canção
Ricardo Domeneck

Mostra-se muitas vezes difícil evitar certa tendência, no momento de transição constante em que vivemos, de geração em geração, de tomarmos a estrutura mutante e fluida de uma manifestação artística e tentar dotá-la do caráter de essência imutável e recorrente, iludindo-nos na crença de que a maneira como praticamos uma arte foi a maneira como a humanidade a praticou desde os primórdios dos tempos, esquecendo-nos que nossa práxis também gerou mudanças em estruturas passadas e pode ter significado, para a geração imediatamente anterior à nossa, também a morte daquela prática artística. Não foi como morte da arte tal qual a conheceram, que os homens e as mulheres do início do século XX viram o surgimento do Modernismo? No entanto, se tal transformação significou, sim, a morte da arte como a conheceram, significou também o nascimento da arte como passamos a conhecê-la, usando tal estrutura conceitual para passarmos a julgar mesmo a arte que foi concebida fora e antes dela. É comum que artistas mais velhos vejam as transformações engendradas por artistas mais jovens como morte das práticas como as conheceram. Unido ao hábito de leitura linear e irreversível, chegamos ao labor funerário dos fins da história, da lírica, da canção. Quando um poeta-compositor como Chico Buarque declara ver no surgimento do rap o fim da canção, flagramos essa tendência a que me referi no início deste texto. Esta morte é totalmente fictícia, creio. No início da década de 1990, com o fortalecimento da cena musical que gerou o tecno, o trance, o drum ’n’ bass, a house music, numa clave eminentemente instrumental, falou-se também do fim da canção. Nada impediu, porém, que poetas-compositores continuassem surgindo, como Chan Marshall e Jeff Buckley, assim como a própria união das novas estruturas musicais ao gênero da canção, levando ao surgimento daquilo que foi, em minha opinião, a grande contribuição da década de 1990: o trip hop, com grupos como Portishead e Massive Attack, e artistas como Björk e Tricky, que seguiram compondo a canção (que teve sua primeira estrutura entre os trovadores medievais), mas obviamente não como a conheceram até aquele momento.

Mesmo hoje, presenciamos o surgimento de muitos poetas-compositores, songwriters, como se diz em inglês, seguindo as estruturas criadas por Bob Dylan ou Leonard Cohen, como Adam Green (bastante conservador, em minha opinião) ou os geniais Conor Oberst e Sufjan Stevens, levando muitos a falarem na Europa de um renascimento da canção, da prática da songwriting.

Se, no Brasil, podemos realmente ver no samba da década de 1920 e 1930 a estruturação da canção como foi conhecida por décadas, sua reformulação pela Bossa Nova e a reestruturação pelo Tropicalismo, não vejo o que poderia justificar o velório da canção nos dias de hoje. A década de 1990 presenciou o surgimento de herdeiros da Tropicália, como Chico Science, Otto e Fred Zero4, mas nos últimos anos pudemos ver no trabalho de Marcelo Camelo um sinal da sobrevivência da canção como foi praticada por Chico Buarque e outros. Concordo com Santuza Cambraia Naves em sua formulação de que a Tropicália teria sido o golpe final contra a autonomia da canção como gênero específico textual e musical, ajudando-nos a entrar no que tenho chamado de poética multimedieval, um retorno à saúde pluralista do medievo da canção e do poema como escrita, música e performance. Essa autonomia dos gêneros foi algo que marcou o Modernismo, e vejo em sua morte (não a da canção, mas da taxonomia engessada de gêneros estanques) uma das coisas mais saudáveis do pós-guerra. Se a Tropicália contribuiu para isso, a Lira Paulistana e o Mangue Beat consolidaram esta nova estrutura. O que não impede que, a qualquer momento, um artista jovem faça uma estrutura conceitual antiga ressurgir com força. Parece-me muito mais interessante, de qualquer forma, discutir não o fim como morte da canção, mas o fim como objetivo. A propósito, este texto foi escrito ao som do cancioneiro de Sufjan Stevens.


Texto publicado no jornal plástico bolha nº23.

Um comentário:

Blog do Plástico Bolha disse...

Oi, Ricardo!
Legal ver o texto por aqui também!
Abri um blog para o Plástico Bolha.
Depois da uma passada lá também. Abraço,
Lucas

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