quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Balanço pessoal e a infame lista de fim de ano

Fim de 2009, início do último ano da década. Minha piada favorita no momento e que repito ad nauseam para os meus pobres amigos é: "Apresse-se caso você ainda queira entrar na lista de melhores da década. Sobrou só mais um ano!"

O ano foi produtivo, um bom ano. Eu tenho há mais de uma década uma espécie de teoria-superstição pessoal, a de que os anos pares são geralmente bons anos e os anos ímpares são geralmente anos difíceis. Em algum momento da minha vida esse ciclo pareceu instituir-se em minha cabeça. Eu acreditava até mesmo ter provas empíricas, baseadas em alguma estatística psicológica estapafúrdia, que fazia os anos pares parecerem tranquilos e os ímpares turbulentos, por algum calendário mental de colheitas e geadas, enchentes e secas, uma vaca magra devorando uma vaca gorda, etc. Não foi à toa que num poema do livro Carta aos anfíbios eu escrevi:

O asfalto na Augusta
...............encharcado
nesta primavera estranha
de 07 de novembro
de 2003 (em anos ímpares
me convenço de que
a morte existe) as fronteiras
fechadas, as invasões
bárbaras às portas,
as disfunções do clima vêm
unir-se à sua intermitência.
........................Quando
tudo em mim conspira
pela constância?


(trecho do poema "Como um caule / exausto / sob copa teme- / rosa", in Carta aos anfíbios, 2005)


Você agora poderia me perguntar: 2009 foi mesmo um ano difícil? Eu seria um ingrato se o chamasse de ano ruim. Foi um ótimo ano. Difícil e ótimo. Uma das boas coisas de estar envelhecendo é perceber que a maioria de nossos problemas é criada por nós mesmos. Onde quer que estejamos postados, aí chegamos com nossas próprias pernas. Queimou o pé? Não pisasse em brasa. Nem corresse como um idiota onde até os anjos andam na ponta dos pés, como diz aquele ótimo ditado em inglês. Quem sabe eu me enfiarei em menos enrascadas em 2010?

Depois de 4 anos longe, pude voltar ao Brasil e rever amigos no Rio de Janeiro e São Paulo, além da família em Bebedouro. A viagem foi linda.

Meus três livros até agora foram publicados em anos ímpares: Carta aos anfíbios em 2005, a cadela sem Logos em 2007 e agora o Sons: Arranjo: Garganta em 2009.

Eu escrevi pouca poesia em 2009, mas gosto do que me foi dado produzir. O trabalho crítico na Modo de Usar & Co. tomou tempo, mas foi prazeroso e estimulante, obrigando-me a pesquisas que seriam em primeiro lugar frutíferas para mim mesmo. Publiquei o Sons: Arranjo: Garganta, sendo o primeiro poeta a abusar da generosidade de Carlito Azevedo e Augusto Massi e ter dois livros publicados pela coleção Ás de Colete das editoras Cosac Naify e 7Letras. Livro que estava "pronto" desde 2007, mas que ganhou muito nos dois anos de gaveta, com alterações que o melhoraram, iludo-me em crer. Forma agora uma espécie de "álbum duplo" com o a cadela sem Logos, gosto de brincar comigo mesmo dizendo que os dois livros são meu Kid A / Amnesiac. Publiquei também uma pequena plaqueta de poemas, intitulada Corpos e palanques, pelo projeto Dulcineia Catadora. Tive algumas experiências surpreendentes como poeta oral:

§ - participei do primeiro Festival Internacional de Poesia de Dubai, ao lado de gente como Wole Soyinka, Tomaž Šalamun e Rebecca Horn, entre outros;

§ - também do festival de poesia de Medana, na Eslovênia, onde conheci vários poetas jovens europeus muito bons, como o (excelente, realmente excelente) poeta russo Aleksandr Skidan, a jovem sueca Linn Hansén, o cipriano Mehmet Yashin e onde tive conversas muito estimulantes com o poeta e filósofo esloveno Gorazd Kocijančič, entre vários outros poetas muito bons. Foi um dos festivais com a melhor seleção que já vi;



§ - fiz minha primeira performance solo, no Espai d´Art Contemporani de Castelló, nos arredores de Valência, na Espanha.




O evento semanal que organizo às quartas-feiras no Berlimbo e que chamo de my own private Cabaret Voltaire chegou ao seu quinto ano. Algumas das noites mais impressionantes e que me deixaram mais feliz neste ano incluíram a performance do fundador do grupo de vanguarda berlinense Die Tödliche Doris, meu caro Wolfgang Müller; os israelenses do TV Buddhas; um show secreto da banda londrina Mystery Jets; a performance da jovem alemã Dillon; um set do francês Jackson Fourgeaud aka Jackson And His Computer Band; a festa do quarto aniversário com os meninos suecos do Lo-Fi-Fnk; a performance da guapísima La Prohibida, de Madri; o show da banda post-punk alemã Herpes; além de sets de amigos como Uli Buder aka Akia, entre tantas outras coisas.

Penso agora em matar o evento e começar algo novo.

Chegamos ao segundo número impresso da Modo de Usar & Co.. A franquia eletrônica esteve ativíssima durante o ano todo. Minha Hilda Magazine sofreu um pouco com meu excesso de atividades, mas espero retomá-la em 2010.

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A lista infame

Devo dizer que, a princípio e por princípio, nada tenho contra a atividade divertida de fazer listas de favoritos do ano, desde que elas sejam isso: uma lista pessoal de favoritos, que pode servir de lista de dicas para amigos. Quando jornais tentam transformar esta atividade divertida em historiografia, a coisa já se torna mais nebulosa e inevitavelmente desonesta. Portanto, o que se segue quer-se apenas como isso: lista de coisas memoráveis de 2009, como dicas aos amigos e leitores deste espaço. Devo ainda avisar que minha cabeça tende a funcionar da seguinte maneira: as últimas impressões fortes tendem a sobrepor-se às mais antigas, ainda que igualmente fortes ou mesmo mais. Dito isso:

Cinema:

§- o filme que mais me impressionou este ano (creio que ainda não estreou no Brasil) foi o novo filme do austríaco Michael Haneke, Das weisse Band (A fita branca), que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano. Eu assisti ao filme na mesma semana em que assisti ao Antichrist de Lars Von Trier, e não pude evitar as comparações. O filme de Haneke é simplesmente magnífico e (arriscarei aqui o exercício divertido da polêmica) faz o filme de Lars Von Trier ficar parecendo o trote de um adolescente revoltado, com muitíssimo talento e inteligência, mas com uma maestria técnica que não o salva de seu simplismo político e est-É-tico. Alguém mais percebeu também o quanto este filme novo de Lars Von Trier deve a David Lynch? O filme novo de Pedro Almodóvar segue a linha dos filmes produzidos depois da trilogia espetacular (Carne trémula, Todo sobre mi madre e Hable con ella), ou seja, são os trabalhos de um mestre competentíssimo, que sabe muito bem como fazer bons filmes, mas eles não têm aquela tensão espiritual que faz daqueles três filmes mencionados coisas insuperáveis da década. O filme novo de Quentin Tarantino, Inglorious Basterds, foi o mais divertido do ano. A performance do ator alemão Christoph Waltz como "Coronel Hans Landa" já é uma das coisas mais impressionantes da década.



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Música:

Esse foi o ano que viu Beth Ditto transformar-se de underground darling em pop icon. Mas o grande álbum do ano de 2009 é da banda que provavelmente ficará também como uma das grandes bandas da década: os moços americanos do Animal Collective. O álbum chama-se Merriweather Post Pavilion e está sendo eleito por todos os lados como o mais impressionante do ano.



Esse foi portanto um dos melhores e mais impressionantes álbuns do ano. Houve também o bonito Two suns da britânica Bat for Lashes, o novo álbum do Grizzly Bear, entre outros. Mas a canção, aquela favorita, a canção favorita em 2009 foi "Chrystalised", da banda britânica The XX.



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Shows:

Eu não costumo ir a shows, mas dos poucos em que estive este ano, o mais memorável foi o da Planningtorock na Haus der Kulturen der Welt (Casa das Culturas do Mundo), em Berlim.



Os outros dois shows favoritos foram: a austríaca Anja Plaschg aka Soap & Skin em Berlim e o insano Ariel Pink em Heidelberg.

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Televisão:

Eu não assisto a televisão há pelo menos 10 anos, mas acompanho várias séries de TV quando são lançadas em DVD. Este ano decidi, finalmente, assistir a uma série que me recusara a ver quando ainda estava no ar. Recusava-me a vê-la porque me irritava a maneira como meus amigos falavam da série, como se fosse uma experiência quase religiosa assistir a ela. Falavam das personagens como se fossem amigos íntimos. Pareciam tias velhas falando da novela das oito. É por isso que, em 2003 e 2004, quando a série ainda estava no ar, recusei-me terminantemente a assistir à coisa.



Em algum momento do verão, alguém postou no Facebook uma cena engraçada do daydreaming autodepreciativo recorrente das personagens. Foi quando decidi assistir à série Six Feet Under, produzida pela HBO entre 2001 e 2005, e me tornei a mais fanática das tias velhas, fascinado que algo daquela qualidade pudesse ter passado na TV, com atores excelentes e episódios inteligentes, lidando com tabus ocidentais tão fortes. Não hesitaria em dizer que Six Feet Under foi uma das experiências mais poderosas de 2009. Assisti em poucas semanas às 5 temporadas e chorei como um condenado à morte no último episódio. Qualquer um deveria chorar exatamente como um condenado à morte naquele episódio. Posto abaixo exatamente a cena que me fez querer assistir à série:



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Encerro aqui a lista. Poesia e literatura, meus queridos, só no ano que vem.

Obrigado a todos que acompanharam os textos, debates e conversas neste espaço em 2009.

sinceramente,

Ricardo Domeneck

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terça-feira, 29 de dezembro de 2009

O próprio trabalho aos olhos e ouvidos de outrem

O jovem poeta paulista Mário Sagayama publicou esta semana um pequeno texto intitulado "(quase nada) sobre Ricardo Domeneck" em seu blogue. Agradeço aqui a atenção, referindo os leitores a seu Itinerário das cinzas. Está entre os poucos textos que buscaram um conjunção crítica entre o meu trabalho literário, oral, visual e ensaístico. Mais uma vez, agradeço ao senhor Sagayama pela atenção e pelos questionamentos interessantes que propõe.

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quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Só natal, natal só.

O moço trabalhando, a família e os tantos amigos que falam a língua materna do outro lado do charco atlântico, os amigos estrangeiros deste lado do charco ainda de ressaca da noite de ontem, como eu, confundindo já quem é o nacional, quem o forasteiro nesta terra, eu enfio carvão no forno (sim, meu apartamento no Berlimbo é à moda antiga, sem aquecimento a gás) que deve(ria) aquecer meu quarto. Mais tarde, vou vestir o casaco grosso e as botas, caminhar na neve até encontrar o rosto do moço na multidão, procurar os amigos europeus e ateus nos bares lotados do Berlimbo, dizer Frohe Weihnachten a quem acredita em sacrifícios mas não em redenção, abraçar um dois três corpos queridos, ouvir uma duas três vozes queridas em línguas que eu não falava quando ainda acreditava em Santa Claus, pensando como é bom ter os pés sobre a terra, mesmo quando ela pode se abrir para tragar-nos a qualquer momento. Na rua, cantarei um dos poemas líricos prediletos, imaginando que minha voz soa nos ouvidos da minha mente como a voz desse morto lindo, ai meus queridos, consider Jeff Buckley, who was once handsome and tall as you.

(Yeah but) Baby I've been here before
I've seen this room and I've walked this floor, (You know)
I used to live alone before I knew ya
And I've seen your flag on the marble arch
and love is not a victory march
It's a cold and it's a broken Hallelujah


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terça-feira, 22 de dezembro de 2009

De volta ao Berlimbo

Cheguei hoje à tarde em Berlim. Após dez dias de verão brasileiro, caminhadas por Copacacabana sem camisa e pela Avenida Paulista em pleno sol, é difícil pisotear neve. O Berlimbo está soterrado na coisa branca.

A viagem foi maravilhosa. Peço desculpas pelas postagens dos últimos dias, mais relatórios de viagem (quase coluna social), mas quis compartilhar alguns dos encontros felizes. Foram muitos, nem pude escrever sobre todos.

Muitas ideias e conversas importantes aconteceram nestes dias. Devem render artigos e postagens por várias semanas.

Passei os dias lendo os livros que agora trouxe do Brasil e que devem formar as leituras das próximas semanas. A viagem a Bebedouro foi acompanhada por uma leitura intensa do Monodrama (RJ: 7Letras, 2009), de Carlito Azevedo, e do emocionante A geração que esbanjou seus poetas (SP: Cosac Naify, 2006), de Roman Jakobson. A viagem de avião, retornando a Berlim, foi na companhia de Alfonso Berardinelli e seu Da prosa à poesia (SP: Cosac Naify, 2008).

Escrevo mais nos próximos dias.

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domingo, 20 de dezembro de 2009

Viagem ao Brasil: São Paulo

Carlito Azevedo, Marília Garcia e eu chegamos a São Paulo na manhã da terça-feira, dia do lançamento dos livros e da Modo de Usar & Co.. Após deixar as malas no hotel, fizemos uma visita à Cosac Naify, onde encontramos nosso querido Augusto Massi. Após conhecer todo mundo, seguimos para um almoço, onde a conversa foi bem estimulante, sobre, por exemplo, os tempos da coleção Claro Enigma, idealizada e financiada por Augusto Massi, que teve um grande impacto no cenário poético do Brasil no fim da década de 80 e início da década de 90, as diferenças entre aquele tempo e o nosso. A coleção publicou poetas tão diversos entre si quanto Orides Fontela, Paulo Henriques Britto, Sebastião Uchoa Leite, José Paulo Paes, Ronaldo Brito e vários outros. Na verdade, tanto essa conversa com Augusto Massi em São Paulo, com a Coleção Claro Enigma como catalisadora, como outra com Carlito Azevedo no Rio de Janeiro, deixaram várias sementes de pesquisa na minha cabeça. Esta última aconteceu enquanto um exemplar da revista Navilouca, de 1972, editada por Torquato Neto e Wally Salomão, circulava pelas mãos de Carlito, Marília, Isadora Travassos e as minhas. Assuntos para o futuro.

Encontramo-nos com Walter Gam e Felipe Nepomuceno, que chegaram mais tarde, e em breve partimos para o Bar Balcão, onde aos poucos os amigos e colegas começaram a chegar. Revi meus caros Érico Nogueira e Dirceu Villa. Reencontrei Chacal, que vira pela última vez em 2006, quando nos apresentamos em Buenos Aires no mesmo festival. Também revi Roberto Zular, que eu conhecera há poucas semanas em Berlim, onde conversamos muito sobre poesia e oralidade, sobre as ideias do escritor Eduardo Viveiros de Castro e suas implicações, sobre Paul Zumthor, sobre Wally Salomão, etc. Conheci alguns poetas de minha idade, de quem já conhecia parte do trabalho, como Fabrício Corsaletti, Paulo Ferraz e Rui Camargo. Conheci Marçal Aquino. Revi Ana Rüsche e ganhei de Andréa Catrópa um exemplar de seu bonito Mergulho às avessas (2008); de Maiara Gouveia, seu Pleno deserto (2009). Havia muita gente legal, é sempre difícil mencionar uns e não todos.

Vendemos todos os exemplares da Modo de Usar que trouxemos do Rio, inclusive os de alguns colaboradores que não apareceram no lançamento. Do Rio, Daniel Chomsky manda avisar: já se esgotaram por lá os exemplares. Primeira leva de 100 exemplares do segundo número esgotou-se em menos de uma semana. Estamos felizes e gratos. Mas a revista está muito bonita também.


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With a little help from my friends

No dia seguinte, pude rever e passar um tempinho com alguns de meus grandes, gigantescos amigos de tempos paulistanos. Como foi bom revê-los, saber de suas últimas agruras e aventuras, pessoas que me apoiaram e sustiveram em épocas difíceis. Meus queridos Jorge Wakabara, Lígia Borges, Verônica Veloso, Roberto Borges, Talita Denardi, Felipe Gutierrez, Adelaide Ivánova. Tantos não pude ver, pela falta de tempo.

Quando nos conhecemos, éramos estudantes universitários, alguns de filosofia, outros de artes cênicas, cinema, jornalismo e publicidade. Encontrávamos no já lendário "O Sobrado", uma casa na Vila Madalena, caindo aos pedaços, onde vários de nós viveram em momentos de pobreza financeira, desgraça emocional e pindaíba amorosa. Alguém foi chutado do emprego? Buscava asilo n´O Sobrado. Alguém foi chutado pelo marido? Asilo n´O Sobrado. Naquela casa escrevi grande parte do meu primeiro livro, Carta aos anfíbios.

Cada um seguiu seu caminho.

Foi emocionante ver como sobrevivemos a toda sorte de catástrofe e seguimos com nossos sonhos e projetos. Um estava no país para lançar seu terceiro livro. Outro havia acabado de voltar de Paris, onde fizera assistência de direção em uma ópera. Outra precisava correr para o SESC Pompéia, onde estava dirigindo sua nova peça, baseada em texto de Clarice Lispector. Outro ia para a Rede Globo, onde apresentava um dos programas de jornalismo mais conceituados do momento. Outro seguia sendo um dos mais interessantes jornalistas de moda da cidade. Outra andava expondo sua fotografia por galerias e revistas do mundo todo.

Esta viagem tem sido maravilhosa.

Estou em Bebedouro agora, onde nasci, no interior de São Paulo. Deixo vocês com uma matéria da MTV sobre a peça "O disfarce do ovo", com encenação de minha querida Verônica Veloso, que fala um pouco sobre o trabalho. Com Verônica, fiz parte do grupo de pesquisa das técnicas do coreógrafo mineiro Klauss Vianna (1928 - 1992), que foi importantíssimo em minha formação. Hoje, Verônica Veloso comanda o Coletivo Teatro Dodecafônico.



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sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Viagem ao Brasil: os dias lindos no Rio de Janeiro

Não me lembro ao certo da última vez que viajara ao Rio de Janeiro. Eram 4 anos sem vir ao Brasil, mas, creio, 7 sem visitar os amigos na capital carioca. Caminhar por Copacabana ao sol, numa manhã, ouvindo todos os passantes tagarelando naquela língua que Manuel Bandeira um dia chamou de "carioca federativo", foi tremendo. Percebi como me fazia falta vir ao Brasil com mais frequência.

A primeira vez que visitei o Rio de Janeiro foi na virada do ano de 1995/1996. Fiquei hospedado na casa de meu amigo (o hoje arquiteto) Rafael Segond, que eu conhecera nos Estados Unidos, quando lá estudávamos, os dois com 16 ou 17 anos. Essa viagem foi muito importante para mim, na verdade. Os pais de Rafael, Otávio e Cláudia Segond, tinham uma coleção maravilhosa de música brasileira, haviam vivido muitos anos na França, formam uma família adorável, com quem aprendi muito. Naquele mês, em seu apartamento próximo do Aterro do Flamengo e do Largo do Machado, quando eu tinha apenas 18 anos, pude ouvir e mais ouvir, discutindo com eles, discos de Tom Jobim, João Gilberto e tantos outros.

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Foi nessa viagem que também conheci outro amigo importante em minha vida, o hoje cineasta brasiliense Pablo Gonçalo (diretor dos curtas Vestígios, de 2006, e o recém-lançado Roteiro para minha morte), com quem mais tarde dividiria apartamento em São Paulo. Foi muito bom rever Rafael Segond, poder passar alguns dias com Dimitri Rebello, Marília Garcia e Carlito Azevedo, a quem finalmente pude conhecer um pouco melhor, já que nos encontráramos até então apenas duas vezes. Cada vez mais percebo a beleza do que Ron Silliman chama de "uma comunidade de poetas", algo que, vejo mais e mais, pode suster uma vida.

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O LANÇAMENTO NO RIO DE JANEIRO

A Livraria Berinjela é um dos lugares mais simpáticos em que já li, gostei muito, imensamente, de conhecer seu dono, o nosso parceiro editorial Daniel Chomsky. O lançamento da Modo de Usar & Co. 2, assim como Monodrama (Carlito Azevedo), Ambiente (Walter Gam), Mapoteca (a reunião dos livros de Felipe Nepomuceno) e meu Sons: Arranjo: Garganta foi muito bom. Foi um prazer poder conhecer pessoalmente poetas que respeito, como Lu Menezes e Júlio Castañon Guimarães, assim como finalmente encontrar, pela primeira vez, a poeta carioca Juliana Krapp. Também encontrei pela primeira vez a poeta Masé Lemos, com quem já tive debates interessantes. Revi Laura Erber, a quem eu conhecera quando nós lemos no Festival de Poesia de Buenos Aires, em 2006, conheci poetas com quem me correspondo e mantenho um diálogo, como Franklin Alves Dassie, e alguns colaboradores da Modo de Usar & Co. impressa, como os simpáticos Ismar Tirelli Neto e Nora Fortunato. Várias pessoas queridas e interessantes estiveram na livraria, pessoas com quem gostaria de ter tido mais tempo de conversa. Conheci Walter Gam, que lançava seu livro de estreia; Márcio-André, com quem divido o interesse gigantesco pela pesquisa sonora; revi Guilherme Zarvos, que conhecera em Berlim; conheci Paulo Scott, Isadora Travassos, com quem conversei muito sobre Berlim, e Valeska de Aguirre, que organizou com Marília Garcia a antologia A Poesia Andando: 13 Poetas no Brasil (Lisboa: Cotovia, 2008). Ambas trabalham na editora 7 Letras, escrevem (em 2007, Valeska de Aguirre lançou o bonito Atos de repetição) e traduzem. Os simpáticos editores da revista Bliss estiveram na Berinjela, Lucas Matos e Clarissa Freitas, trouxeram meu exemplar da revista com a qual colaborei com um poema. É difícil mencionar uns e não todos, se não menciono todos, perdoai, é culpa do fluxo de emoções dos acontecimentos dos últimos dias. Conheci também o próprio editor da 7 Letras, o querido Jorge Viveiros de Castro. Não poderia deixar de mencionar meu caro editor, o generoso Augusto Massi, que tornara possível minha vinda ao Brasil para os lançamentos.

Por volta do meio-dia, Carlito Azevedo e eu fizemos uma leitura, acompanhados de Ismar Tirelli Neto. Carlito fez sua já clássica leitura do poema "Sobre uma fotonovela de Felipe Nepomuceno"; Ismar leu dois de seus belos poemas (quando Ismar acerta a mão, os textos são realmente memoráveis) e eu encerrei a leitura, não apenas com poemas meus, abrindo minha leitura com o poema "O cineasta do Leblon", de Hilda Machado (1952 - 2007), texto que abre também o segundo número impresso da Modo de Usar & Co., meu poema "Linear" e encerrei com o poema "Receitas para engolir e curar o fracasso", de Leonardo Martinelli (1971 - 2008). Foi minha homenagem a estes dois poetas, que eu gostaria muito de ter conhecido.

De Hilda Machado conhecemos apenas 6 poemas, dois publicados na Inimigo Rumor e 4 publicados agora na Modo de Usar & Co. 2.

Leonardo Martinelli e eu estávamos em contacto mais constante nos últimos meses de sua vida, por mensagens eletrônicas. Ele foi muito generoso comigo em vários momentos. Foi com muita tristeza que soube de sua morte.

Os próximos dias foram passados na companhia de Marília Garcia, fazendo planos e mais planos de colaboração, com Carlito Azevedo, conversando sobre poesia, poetas, poética.

No dia 13, Dimitri Rebello e Silvia Rebello lançaram os quatro primeiros números de seu novo selo, a Coleção Compacto Simples, que reúne o trabalho literário de escritores mais conhecidos como compositores de música popular. Os primeiros números trazem dois contos (Lado A e Lado B) dos escritores/compositores Dimitri Rebello, Fernando Paiva, Flávia Muniz e Ismar Tirelli Neto.

Escrevo sobre os dias e o lançamento em São Paulo na próxima postagem. Encerro com o poema de Leonardo Martinelli.

POEMA DE LEONARDO MARTINELLI

Receitas para engolir e curar o fracasso

Origem, compra, preparo e sabor

1. Ave sertaneja
de porte médio
fibrosa, rija
de vida noturna

Preços: vinte e
sete contos o quilo
no Mercadão de
Madureira ou

trinta e sete
(ágio de dez paus)
nos açougues febris
da rede Mundial

O jeito é pegar
um 254 na madruga
ou encarar de frente
o trem da Central


2. Embrulhe o fracasso
com jornal de ontem


3. Afogue duas postas numa
panela de barro contendo
dois litros de vinho barato

Salgue e asse
em fogo alto

Enfeite o prato
com uma dúzia de

amóreas secas + 100 g
de fios de óvulos


4. Aí vai ele
numa baixela dourada
ridícula - duas
palavras
em francês fajuto
farão sorrir amarelo

o rapaz de
meia-idade e enrubescer
as bochechas
gentis suburbanas
à mesa

Rende
para uma duas três
mil pessoas


Posologia

Uma vez
hiperdosada
vai-se a bula ao
mar de bile

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domingo, 13 de dezembro de 2009

Viagem ao Brasil: chegada no Rio de Janeiro

Cheguei ao Rio de Janeiro na noite de quinta-feira, após dois voos, o primeiro de Berlim a Madri e o segundo, muito cansativo, de Madri ao Rio. Na noite de quarta-feira ainda tive que discotecar em Berlim, pois era quarta-feira, a noite do evento semanal que coorganizo. Fui para o clube com malas e às 5 da manhã peguei um táxi para o aeroporto.

Ao chegar ao Rio, por volta das oito da noite, o mundo despencava em água, a cidade toda alagada. Chegar a Copacabana, onde devia encontrar meus queridíssimos Dimitri Rebello e Marília Garcia para jantar (a quem não via há 4 anos) foi uma maratona. Revê-los fez tudo valer a pena muitíssimo. Para completar o encontro, estava também Silvia Rebello, a irmã de Dimitri. Marília me aguardava com uma cópia do segundo número da Modo de Usar & Co., que está linda, especialmente com aquela capa em que sorri O Moço, meu moço. Duplo orgulho.

Dimitri é um amigo de longa data, de outros carnavais e também de outras quartas-feiras de cinzas. Um cantautor e poeta que respeito, já escrevi sobre ele aqui, quando ele gravou a canção "Mercado Negro", uma de minhas favoritas. Marília, como todos sabem, é coeditora da Modo de Usar & Co., além de responsável pelo seu aspecto gráfico e uma das criaturas mais doces que conheço. Sou leitor admirado de seu trabalho e compartilhamos a obsessão por alguns poetas, especialmente o francês Emmanuel Hocquard, que ela vem traduzindo lindamente. Já disse isso ao ar livre, repito-o aqui em letras: quando se trata do trabalho destas três mulheres - Marília Garcia, Angélica Freitas e Juliana Krapp - minha relação é de respeito mamute, "e se ele vier, defenderei, e se ela vier, defenderei, e se eles vierem todos, numa guirlanda de flechas, defenderei, defenderei, defenderei."

Estar com Dimitri, Marília e Silvia foi uma das melhores recepções que poderia imaginar. Dormi depois como uma pedra no belo hotel que a Cosac Naify reservou para os autores de fora, esperando sol no dia seguinte. O sol veio e caminhei pela praia de Copacabana agradecendo a Deus por cada segundo. Há outro agradecimento a ser feito: ao querido Augusto Massi e à Cosac Naify pelo convite incrivelmente generoso, que fez possível que eu voltasse ao Brasil depois de quatro anos, permitindo até agora que eu pudesse rever amigos como Dimitri Rebello, Rafael Segond, Marília Garcia, Carlito Azevedo, Bruno Learth Soares e os muitos amigos virtuais a quem pude finalmente dar uma face de carne e osso. Esta manhã ocorreu o lançamento lindo do segundo número da Modo de Usar & Co., na Livraria Berinjela de nosso querido parceiro Daniel Chomsky, assim como do meu livro Sons: Arranjo: Garganta, do Monodrama de Carlito Azevedo, do Mapoteca de Felipe Nepomuceno e do Ambiente de Walter Gam. Mas isso é assunto para outra postagem. Deixo vocês com meus queridíssimos Dimitri Rebello e Marília Garcia e vou dormir, dormir no Rio de Janeiro depois de um dia feliz, feliz.




terça-feira, 8 de dezembro de 2009

LANÇAMENTO do meu LIVRO NOVO, do SEGUNDO número IMPRESSO da Modo de Usar & Co. e primeira visita ao Brasil em 4 anos



Após 4 anos sem poder cruzar o charco atlântico, estou a caminho do Brasil esta semana para o lançamento do meu terceiro livro, intitulado Sons: Arranjo: Garganta, e do segundo número impresso da Modo de Usar & Co.

No Rio de Janeiro: 12 de dezembro, às 10 horas, na Livraria Berinjela, Av. Rio Branco, 185 / loja 10.
Em São Paulo: 15 de dezembro, às 20 horas, no Bar Balcão, Rua Dr. Melo Alves, 150.

O livro integra a nova leva da Coleção Ás de Colete da editora Cosac Naify, que traz ainda dois outros livros: o volume que reúne todos os poemas de Felipe Nepomuceno (São Paulo, 1975), intitulado Mapoteca, e o livro Ambiente, de Walter Gam (Belo Horizonte, 1983). Na mesma ocasião, será lançado oficialmente o livro novo de Carlito Azevedo (Rio de Janeiro, 1961), intitulado Monodrama (RJ: 7Letras, 2009).

Estamos muito felizes em poder anunciar também, finalmente, o lançamento do segundo número impresso da Modo de Usar & Co.

Segundo número impresso da Modo de Usar & Co.:

com traduções para textos de poetas hispano-americanos: Raúl Zurita, Efraín Barquero e Víctor López, além do espanhol Pedro Casariego Córdoba; poetas norte-americanos: Gertrude Stein (seu importante "Composition as explanation"), Ezra Pound, George Oppen, John Ashbery, Frank O´Hara, Allen Ginsberg, Richard Brautigan e Mei-mei Berssenbrugge; poetas alemães: Horst Bienek, Heiner Müller, Rolf Dieter Brinkmann, Odile Kennel, Monika Rinck e Sabine Scho; autores franceses: Georges Didi-Huberman, Pierre Alferi, Emmanuel Hocquard e Nathalie Quintane; e, por fim, os poetas japoneses: Yasuhiro Yotsumoto, Kôtarô Takamura e Kiwao Nomura - apresentados em traduções de Viviana Bosi, Carlito Azevedo, Diogo Kaupatez, Dirceu Villa, Andrea Mateus, entre outros.

Entre os poetas de língua portuguesa, poemas inéditos dos brasileiros Hilda Machado (1952 - 2007), Ricardo Aleixo, Marcos Siscar, Izabela Leal, Roberto Zular, Felipe Nepomuceno, Gabriel Beckman, Danilo Bueno, Nora Fortunato, Ismar Tirelli Neto, Gregorio Duvivier, Eduardo Jorge, Luiz Coelho, Renato Mazzini, Alice Sant´Anna, Angélica Freitas, Fabiano Calixto, Marília Garcia e Ricardo Domeneck, assim como textos dos portugueses António Franco Alexandre, Nuno Moura, Manuel de Freitas, Ana Paula Inácio e Rogério Rôla.

As ilustrações da revista são de Paulo Stocker.

edição de Angélica Freitas, Fabiano Calixto, Marília Garcia e Ricardo Domeneck
em colaboração com Daniel Chomsky, da Livraria Berinjela (Rio de Janeiro).


sábado, 5 de dezembro de 2009

Certo paladar para tragédias

Há uma discussão que sempre me interessou muito e que, creio eu, lançaria luz sobre muitos aspectos da nossa vida contemporânea, mesmo sobre o debate poético e est-É-tico de nossos dias: trata-se da discussão sobre as transformações formais e culturais que nos encaminham da tragédia, tal qual a conhecemos em textos como Antígona (Sófocles) ou Medéia (Eurípides), no período clássico, a tragédias como Phèdre (Racine) ou King Lear (Shakespeare) no século XVII, e, por fim, destas às tragédias domésticas dos nossos dias, como Who´s Afraid of Virginia Woolf?, de Edward Albee; Long Day´s Journey Into Night, de Eugene O´Neill; ou A Falecida, de Nelson Rodrigues. Entre estas, onde encaixar Waiting for Godot (Beckett) ou A Ascensão e Queda de Arturo Ui (Brecht)?

Não estou apenas interessado em uma discussão sobre as diferenças formais entre todos estes textos. É claro que isso interessa e deve ser o primeiro aspecto discutido. Mas há muito mais, muito mais a discutir sobre as transformações que nos levam de texto a texto. De qualquer maneira, já não consigo separar forma e função. Trata-se mesmo de uma diferença de proporções, digamos, entre o cósmico e o pessoal? A perda do universal e a obsessão pelo particular? Alguém poderia dizer que estas últimas, de Edward Albee ou Nelson Rodrigues, por exemplo, são tragédias menores, domésticas, burguesas, fruto da perda de uma Weltanschaaung de caráter cósmico. Será realmente isso? Isso já foi discutido por alguns autores. Em Macbeth, os sons ouvidos na noite do assassinato do rei ecoam por todo o cosmos. O som da foghorn, que ecoa pela noite em Long Day´s Journey Into Night, está encerrado no destino de uma única família. Trata-se de uma mudança de ênfase entre o destino cósmico e o destino individual? Antígona ainda é lida, hoje em dia, como uma alegoria das batalhas entre o público e o privado, as diferenças éticas entre obrigações políticas para com o Estado, e obrigações metafísicas de cada um para com a sua consciência.

Digamos: como não saber onde traçar a linha que separa o que pertence a César e o que pertence a Deus.




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Ilustro essa discussão, abaixo, com cenas de dois dos meus filmes favoritos: "Medea", de Lars Von Trier, e "Who´s Afraid of Virginia Woolf?", de Mike Nichols.


Isso também me interessa em abundância de miocárdio: o que muda entre o amor de Medéia e Jasão e o de Martha e George?




sábado, 28 de novembro de 2009

"Venha e veja", se você tiver estômago.


(Uma das muitas cenas perturbadoras do filme Venha e veja, de Elem Klimov)

Há uma livraria inglesa aqui no Berlimbo que organiza, todas as terças-feiras, uma pequena sessão de cinema. Há cerca de dois anos, recebi o convite semanal para a noite em que se exibiria o filme Venha e veja (1985), dirigido pelo russo Elem Klimov (1933 - 2003).

Voltar os olhos para a história alemã no século XX é encarar o abismo, aquele que o encara de volta. A sucessão de catástrofes acontecidas neste país, ou causadas por ele em outros países, dá vertigem a qualquer lúcido. Como será que o anjo da História, de Benjamin, pôde manter abertos os olhos?

Com 146 minutos, o filme talvez seja o mais perturbador a que já assisti, com imagens simplesmente horríveis da ocupação nazista na Bielorrússia e dos massacres que aí ocorreram. Ainda há gigantescas valas comuns sendo descobertas na região. O filme é claramente dirigido sob o signo da fúria contra o que ocorreu, e é necessário estar preparado para a jornada ao fim da noite. Foi o último filme que Klimov dirigiu. É, em minha opinião, uma das obras primas mais difíceis do cinema.

Você pode assistir ao filme todo AAQQUUII. Se você estiver preparado para encarar o abismo. E receber de volta os olhos arregalados deste.



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domingo, 22 de novembro de 2009

Elogio da violência est-É-tica a partir das secreções em Hilda Hilst

Em uma literatura de moços e moças muito comportados e estudiosos como é o caso da brasileira, especialmente no pós-guerra, descobrir Hilda Hilst foi um refrigério. Saber que essa mulher ignorada havia produzido coisas assustadoras como Qadós (1973) e A obscena senhora D. (1982), além dos textos curtos reunidos em Pequenos discursos. E um grande (1977), como "Vicioso Kadek" e "Teologia natural", servia para reconciliar qualquer um com as possibilidades de algo estimulante na terrinha. Como não admirar uma mulher que escrevia, além disso, aqueles poemas, em plena época antilírica, dos mocinhos que ruminavam opiniões de Cabral como dogmas insuperáveis? Era muito reconfortante poder ler um livro como Cantigas do sem nome e de partidas (1995), uma das coisas mais bonitas da década de 90. Não quero insinuar qualquer "anticabralismo" de minha parte, como alguns entenderam meu a cadela sem Logos. Mas, meus caros, venhamos e convenhamos: não podemos deixar que uma admiração exagerada nos cegue para o fato de que João Cabral de Melo Neto é um poeta de imaginação limitada, que empalidece ao lado da abundância de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes. Cabral talvez tenha uma obra mais regular e constante que a destes dois, mas eu diria que a tem porque se arriscou bem menos que eles, ou mesmo que o irregularíssimo Jorge de Lima. Seus melhores poemas foram escritos justamente sob o influxo destes dois poetas, aprendizado confirmado pelo próprio Cabral, como o lindíssimo "O cão sem plumas" (1950) ou os poemas do volume Psicologia da composição (1947). Produz as alturas de O Rio e Morte e vida severina, mas o Cabral que surge a partir de Paisagens com figuras viria a se repetir indefinidamente, sem superar o que fora capaz de fazer com essa poética no estupendo "Uma faca só lâmina" (1955), momento de risco supremo que Cabral se propôs, poema que merece figurar ao lado de textos tão importantes quanto "A máquina do mundo" e "Janela do caos", dos seus dois mestres. Dessa poética repetitiva, o importante A educação pela pedra (1966) viria a ser apenas uma variação elegante. Não há variedade formal suficiente em João Cabral de Melo Neto para nutrir com seus parâmetros, de forma unívoca, todo um projeto de poesia nacional no pós-guerra. É óbvio que não se pode culpar um poeta tão forte como Cabral por toda a literatura anódina que se produziu em seu nome ou suspostamente sob seu signo. Aquele homem possuía verdadeiramente uma est-É-tica, mais do que explícita a quem lê com atenção poemas como "A palo seco", que nada tem a ver com o que se confundiu com objetividade na poética oficial dos últimos 20 anos, com a descrição de paisagens urbanas ou o uso recorrente de "pedras" e "desertos" posando como materialidade de linguagem. Como escrevi em outro lugar, o problema com esta idéia equivocada de "objetivo" começa no fato de que esta objetivação requer, em sua base, a sobrevivência das velhas dicotomias de sempre, como interno/externo, sujeito/objeto, sua concentração sobre o "mundo externo" (daí a avalanche de poemas meramente descritivos), que depende de uma espécie de unidade de percepção do poeta, que acaba sendo centrada num sujeito monolítico, desonestamente camuflado. Enquanto isso, Hilda Hilst ousava escrever e chamar de poemas, em plena época de secura e materialidade, poemas líricos que tomavam Caio Valério Catulo por mestre. Longe de mim sugerir que Hilst superou Cabral, o que talvez tenha feito, se levarmos em conta não apenas seus poemas, mas toda sua produção literária. O que nos impede, no entanto, de abrir o nosso leque de possibilidades poéticas?

O Poeta Inventa Viagem, Retorno e Morre de Saudade

Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.


Júbilo Memória Noviciado da Paixão (1974)

ou

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.


Do desejo (1992)

Mas o assustador em sua obra e o que seguirá fazendo de Hilda Hilst um dos nomes incontornáveis na literatura deste século é seu trabalho em prosa, ou o que se convenciona chamar de prosa por simplesmente ocupar toda a página. Assim como Cabral serviu de parâmetro crítico quase único para a produção poética, a prosa brasileira nas duas últimas décadas parece ter feito de Rubem Fonseca um dos seus poucos parâmetros críticos, ou a meta de qualidade a atingir. Rubem Fonseca é um bom escritor, mas jamais seria possível ordenhar uma escola literária das tetas murchas de seu trabalho. Os que temperaram sua poética ainda com o que aprenderam de escritores como João Antônio, Campos de Carvalho, João Gilberto Noll e Sérgio Sant´Anna, além de diferentes referências de outras línguas, entregaram obras mais estimulantes. Na mesma época, Hilst enriquecia a escala com essa nota:

Teologia Natural


A cara do futuro ele não via. A vida, arremedo de nada. Então ficou pensando em ocos de cara, cegueira, mão corroida e pés, tudo seria comido pelo sal, brancura esticada da maldita, salgadura danada, infernosa salina, pensou óculos luvas galochas, ficou pensando vender o que, Tiô inteiro afundado numa cintilância, carne de sol era ele, seco salgado espichado, e a cara-carne do futuro onde é que estava? Sonhava-se adoçado, corpo de melaço, melhorança se conseguisse comprar os apetrechos, vende uma coisa, Tiô. Que coisa? Na cidade tem gente que compra até bosta embrulhada, se levasse concha, ostra, ah mas o pé não agüentava o dia inteiro na salina e ainda de noite à beira d'água salgada, no crespo da pedra, nas facas onde moravam as ostras. Entrou em casa. Secura, vaziez, num canto ela espiava e roia uns duros no molhado da boca, não era uma rata não, era tudo o que Tiô possuia, espiando agora os singulares atos do filho, Tiô encharcando uns trapos, enchendo as mãos de cinza, se eu te esfrego direito tu branqueia um pouco e fica linda, te vendo lá, e um dia te compro de novo, macieza na língua foi falando espaçado, sem ganchos, te vendo, agora as costas, vira, agora limpa tu mesma a barriga, eu me viro e tu esfrega os teus meios, enquanto limpas teu fundo pego um punhado de amoras, agora chega, espalhamos com cuidado essa massa vermelha na tua cara, na bochecha, no beiço, te estica mais pra esconder a corcova, óculos luvas galochas é tudo o que eu preciso, se compram tudo devem comprar a ti lá na cidade, depois te busco, e espanadas, cuidados, sopros no franzido da cara, nos cabelos, volteando a velha, examinando-a como faria exímio conhecedor de mães, sonhado comprador, Tiô amarrou às costas numas cordas velhas, tudo o que possuía, muda, pequena, delicada, um tico de mãe, e sorria muito enquanto caminhava.

de Pequenos Discursos. E um Grande (1977)

Trata-se de um outro tipo de violência. A violência das secreções funciona de forma distinta em Hilst. Sua tática de choque vai além da atitude malcriada de Rubem Fonseca, que tanto fascina os escritores brancos e heterossexuais da classe média do Brasil de hoje. Nesse aspecto, parece-me ainda mais claro que o escritor brasileiro com o qual se poderia comparar Hilda Hilst não é João Guimarães Rosa (o que ocorre com frequência no Brasil que também costuma meter Joyce e Stein no mesmo balaio), mas Graciliano Ramos, por mais incomum que pareça a ligação. Não o Ramos de Vidas Secas (1938), talvez, mas definitivamente o Graciliano Ramos de Angústia (1936) e, de certa maneira, mesmo o de São Bernardo (1934).

Violência esta muito mais que a temática, que Rubem Fonseca pratica por vezes com brilhantismo, mas uma violência est-É-tica que encontramos em escritores muitas vezes aparentemente díspares entre si, como a Clarice Lispector de A paixão segundo GH (1964) ou A hora da estrela (1977), sem deixar de mencionar a pancada est-É-tica que é A maçã no escuro (1951), aquela diatribe metafísica e política que até hoje não foi muito bem digerida; e, é claro, penso também no mestre de nós todos, Machado de Assis. Ou não lhes parecem brutais, livros como Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899)?

O pós-guerra viu mulheres como Clarice Lispector e Hilda Hilst produzirem alguns dos artefatos (metafísicos e políticos) mais brutais de nossa literatura, numa linguagem seca e direta, mas informada por suas leituras de autores como Merleau-Ponty e Wittgenstein. A narrativa brasileira contemporânea, no entanto, com as exceções de sempre, parece ser produzida por rapazotes que cresceram lendo gibis de super-heróis, nos quais basearam seus machucados projetos de masculinidade, produzindo hoje suas narrativas ideais para um público, digamos, como o dos estudantes da UNIBAN.

No entanto, a invectiva contra nossas ilusões de "civilização" em livros como esses: Memórias póstumas de Brás Cubas, Angústia, A paixão segundo GH e Qadós é atordoante, inescapável. Testemunhos de nossa inviabilidade em meio ao inviável (que se sonha invejável) Ocidente, que já cai aos pedaços e afunda, sem que os muitos tomos das obras completas de Shakespeare e Balzac nos ajudem sequer a boiar. Esses livros nos mostram o que Euclides da Cunha estabelecera com seu anti-épico: se houver alguma sombra de justiça nessa existência, do Brasil não sobrará um dia pedra sobre pedra. Sejam estas pedras cabralinas ou não.

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Às vezes davam-me panos pretos, ou alaranjados ou com listas ou vermelho com florzinhas, nunca o branco, Excelência, e como último recurso para conseguir os círios eu entrava numa loja aos solavancos, o olho girassol e gritava: duas velas por favor, a mãe agoniza, em nome do vosso nosso Deus duas velas para as duas mãos de mamãe. E saía como o raio, como o cão danado, como Tu mesmo que te evolas quando Te procuro, ai Sacrossanto por que me enganaste repetindo: hic est filius meus dilectos, in quo mihi bene complacui? Nudez e pobreza, humildade e mortificação, muito bem, Grande Obscuro, e alegria, é o que dizem os textos, humilde e mortificado tenho sido, mas alegre, mas alegre como posso? Se continuas a dar voltas à minha frente, estou quase chegando e já não estás e de repente Te ouço, bramindo: mata o rei, Qadós, o inteiro de carne e de pergunta, pára de andar atrás de mim como um filho imbecil. Como queres que eu não pergunte se tudo se faz pergunta? Como queres o meu ser humilde e mortificado se antes, muito antes do meu reconhecimento em humildade e mortificação, Tu mesmo e os outros me obrigam a ser humilde e mortificado? Como queres que eu me proponha ser alguma coisa se a Tua voracidade Tua garganta de fogo já engoliu o melhor de mim e cuspiu as escórias, um amontoado de vazios, um nada vidrilhado, um broche de rameira diante de Ti, dentro de mim? E as gentes, Máscara do Nojo, como pensas que é possível viver entre as gentes e Te esquecer? O som sempre rugido da garganta, as mãos sempre fechadas, se pedes com brandura no meio da noite que te indiquem o caminho roubam-te tudo, te assaltam, e se não pedes te perseguem, se ficas parado te empurram mais para frente, pensas que vais a caminho da água, que todos vão, que mais adiante refrescarás pelo menos os pés e ali não há nada, apenas se comprimem um instante, bocejam, grunhem, olham ao redor, depois saem em disparada. Andei no meio desses loucos, fiz um manto dos retalhos que me deram, alguns livros embaixo do braço, e se via alguém mais louco do que os outros, mais aflito, abria um dos livros ao acaso, depois deixava o vento virar as folhas e aguardava. O vento parou, eis o recado para o outro: sê fiel a ti mesmo e um dia serás livre. Prendem-me. Uma série de perguntas: qual é teu nome? Qadós. Qa o quê? Qadós. Qadós de quê? Isso já é bem difícil. Digo: sempre fui só Qadós. Profissão. Não tenho não senhor, só procuro e penso. Procura e pensa o quê? Procuro uma maneira sábia de me pensar. Fora com ele, é louco, não é da nossa alçada, que se afaste da cidade, que não importune os cidadãos.

trecho de Qadós (1973)

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quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Origens, fonte, ela

O título desta postagem, Origens, fonte, ela, é o título que eu um dia darei ao livro que quero dedicar exclusivamente ao trabalho de Orides Fontela. O que segue abaixo é um artigo em que retrabalho e reelaboro o que escrevi sobre a poeta paulista na Modo de Usar & Co., no ano passado, quando apresentei uma pequena seleção de seus poemas em nossa série "Sintonia de nossa sincronia".

Orides Fontela nasceu em São João da Boa Vista, em 1940. Mudou-se para São Paulo no fim da década de 60, ingressando na Faculdade de Filosofia e Letras da USP. Publicou seu primeiro livro, intitulado Transposição, em 1969, seguido de outras quatro coletâneas, compiladas em 2006 no volume Poesia Reunida 1969 - 1996, oito anos após a morte da poeta.

É costume descrever o temperamento de Orides Fontela em notas biográficas como esta, além de certa lenda que já se fixou em torno de sua biografia, para logo em seguida descartar esta mesma biografia em prol da descrição de sua poesia "enxuta", "concisa", "cristalina". Estes adjetivos fazem sentido em uma descrição da obra da poeta, assim como em seus poemas a primeira pessoa do singular parece estar consistentemente exilada dos verbos. A biografia de Orides Fontela importa pouco para a avaliação formal de seu trabalho, mas eu tenho certeza que haveria outra forma de pensar a conexão entre a obra e a vida do poeta. No caso de Fontela, não estariam ligados, a pobreza física e material de Orides Fontela e seu despojamento estilístico, o próprio desnudamento de sua poesia? Uma mulher sem casa, sem amores, talvez pudesse realmente louvar apenas o oxigênio. Pobreza material, veja bem, de uma poeta que negou o adorno e embelezamento poético até suas últimas consequências, e escreveu preferir, como trocas, "Um fruto por um / ácido / um sol por um / sigilo / o oceano por um / núcleo // o espaço por uma / fuga / a fuga por um / silêncio//- riquezas por uma / nudez."

Fala-se de neosimbolismo em sua poesia, por seu uso de substantivos que nos convidam a vê-los como "símbolos", freqüentes em sua poética, como "pássaros", "espelhos" e "rios" circundando o mundo. Eles convidam a isto. Mas algo muito importante separa o trabalho de Orides Fontela da poética dos neosimbolistas brasileiros, um dia reunidos em torno da revista Festa, comandada por Tasso da Silveira, dos quais hoje lemos apenas Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa. Pois seus melhores poemas demonstram sua atenção linguística de poeta do pós-guerra, em um momento histórico que exigia, de seus símbolos, a consciência de serem signos, de uma poeta que compreendia nutrir sua simbologia pela linguagem, que a filtrava. Leia-se, por exemplo, o poema "Cisne", do livro Alba (1983):

Cisne

Humanizar o cisne
é violentá-lo. Mas
também quem nos dirá
o arisco esplendor
– a presença do cisne?

Como dizê-lo? Densa
a palavra fere
o branco
expulsa a presença e – humana –
é esplendor memória
e sangue.

E
resta
não o cisne: a
palavra

– a palavra mesmo
cisne.


Em Orides Fontela, o símbolo se faz signo, num movimento de mão dupla, em fluxo e refluxo, como se a linguagem poética, em sua capacidade múltipla de concretude e abstração, passasse a ter marés. Se Fontela está ligada por temperamento a poetas como Cecília Meireles e, por sua vez, a Cruz e Sousa, seu simbolismo "sígnico" faz Orides Fontela mais próxima, creio, da Henriqueta Lisboa de um livro como Além da Imagem (1963); não a Henriqueta Lisboa de A face lívida (1945) ou Flor da morte (1949), mas a poeta consciente dos jogos e artifícios da linguagem e dos símbolos/signos, a poeta que esta parece se tornar a partir da década de 50 (e que precisamos voltar a ler), especialmente em livros como o já citado Além da imagem ou no livro Reverberações (1976). Se pudermos aproximá-la da poesia simbolista, Fontela pareceria mais próxima de poetas com uma sensibilidade mais aguçada para a linguagem como jogo e artifício, caso de Pedro Kilkerry, o autor de poemas como "É o silêncio".

Mas este simbolismo sígnico de Orides Fontela é marca da poesia modernista do século XX, algo que também a aproxima de um poeta como Wallace Stevens, que fez da apropriação do mundo pela consciência, através da linguagem, o jogo poético por excelência. Isso viria a se tornar extremamente claro em poetas do pós-guerra como, por exemplo, Lyn Hejinian. Talvez uma aproximação possa iluminar o que tento argumentar aqui, com o poema "Anecdote of the jar", de Wallace Stevens, e "Fera", de Orides Fontela:

Anecdote of the jar
Wallace Stevens

I placed a jar in Tennessee,
And round it was, upon a hill.
It made the slovenly wilderness
Surround that hill.

The wilderness rose up to it,
And sprawled around, no longer wild.
The jar was round upon the ground
And tall and of a port in air.

It took dominion every where.
The jar was gray and bare.
It did not give of bird or bush,
Like nothing else in Tennessee.


Agora, o poema de Fontela:



Em Stevens, o mundo externo é o disforme, que a consciência humana organiza, cataloga e do qual se torna centro. Em Fontela, a linguagem passa a assumir uma posição mais ativa neste jogo entre mundo e consciência, fazendo com que a "fera", até então ausente para a percepção do que passeia na floresta, inconsciente do perigo, processe em primeiro lugar o sentido quando a fera se faz presente: a fera torna-se desta maneira o perigo de morte e também a palavra "fera". Também, se em Stevens este embate e organização do mundo pela consciência é assunto humano e apenas humano, sem sombra de transcendência, Orides Fontela manteve um fio místico em sua poesia, e seus livros possuem movimentos rotatórios, sofrendo enxugamento e pousando em concretude no chão do mundo, no poema de uma página, para logo em seguida abandonar-se em certo ambiente etéreo e simbolicamente carregado no poema da página seguinte.

Como se a poesia de Orides Fontela não se decidisse de forma definitiva entre a destruição do mundo por uma força centrípeta ou centrífuga. Seus poemas têm, em minha opinião, apesar da superfície polida de cristal, uma violência sem muitos paralelos na poesia do pós-guerra no Brasil. O mesmo tormento possa talvez ser sentido na prosa e poesia de Hilda Hilst, mas nesta outra mística a solução era o escárnio e a exuberância do dilúvio, enquanto em Orides Fontela o desértico, daquele que jamais possuiu coisa alguma, era preferível. Algo deste fluxo e refluxo, entre o concreto e o abstrato, entre o símbolo e o signo, pode ser sentido em vários poemas. Em "São Sebastião", do livro Helianto (1973), temos a concreção centrípeta do símbolo fazendo-se signo, do verbo fazendo-se carne, do mito ganhando corpo de sangue e osso.

São Sebastião

As setas
– cruas – no corpo

as setas
no fresco sangue

as setas
na nudez jovem

as setas
– firmes – confirmando
a carne.

A primeira vez que li este poema, estava de pé, à saída da biblioteca da Faculdade de Letras da USP, e quase tive uma vertigem. O título convida-nos à expectativa do etéreo de uma hagiografia. Nada poderia parecer mais distante de uma poética do corpóreo e do físico. As primeiras imagens ainda nos remetem à estátua do santo, do mito. Imaginamos este ser inexistente, pensamos no místico, no sacrifício impensável. No entanto, a progressão vagarosa de Orides Fontela é a de um bote de serpente, pois ela nos leva até o último verso, quando se revela não a estátua do santo, mas a carne viva do homem antes do santo. O poema parece-me de uma violência quase brutal. Sebastião deixa de ser mito e metáfora para fazer-se figura, figura como conceito da teologia cristã, FIGURA, em que um acontecimento histórico liga-se a outro acontecimento histórico, prefigurando-o, dois fatos distintos e temporalmente segregados, prevendo um último acontecimento que revelaria seus significados. Aqui, a poética de Orides Fontela revela-se em toda a sua crença na historicidade de seu fazer.

Em "Clima", também do livro Alba (1983), tal via de mão dupla da linguagem se faz presente com força, abstração centrífuga, concreção centrípeta, signo, símbolo: linguagem.

Clima

Neste lugar marcado: campo onde
uma árvore única
se alteia

e o alongado
gesto
absorvendo
todo o silêncio - ascende e
.............................imobiliza-se

(som antes da voz
pré-vivo
ou além da voz
e vida)

neste lugar marcado: campo
........................................imoto
segredo cio cisma
o ser
celebra-se

- mudo eucalipto
...elástico
...e elíptico.


É neste livro, Alba, que acredito que Orides Fontela encontrou seu ângulo de equilíbrio. O livro é um ponto luminoso na década de 80 (assim como Asmas, de Ronaldo Brito, publicado em 1982). Poeta contemporânea, poeta do pós-guerra, Orides Fontela sabia escrever poesia com símbolos herdados de uma tradição milenar, mas informados em um mundo que já tivera os escritos de Saussure, Wittgenstein, Jakobson. Orides Fontela sabia que o silêncio não provinha da falta de respostas, mas de nossa incapacidade e limitação no momento de fazer as perguntas através da linguagem, cujos limites são os limites do nosso mundo, nas palavras de Wittgenstein.


Esfinge


Não há perguntas. Selvagem
o silêncio cresce, difícil.


É tentador mitificar a mulher que viveu como viveu e escreveu estes poemas, que mais parecem cubos de energia concentrada, esperando para explodir no olho do leitor. Seus poemas, à primeira vista tão simples, singelos, exigem a concentração e atenção daquele que pode sussurrar, como no poema-exórdio do livro Alba:


A um passo
do pássaro
res
piro.



Sim, a lucidez alucina. Morta em um hospital público em 1998, sem família, indigente como uma poeta, exatos cem anos depois da morte de Cruz e Sousa e o transporte de seu corpo para o Rio de Janeiro em um trem de carga, num vagão para animais, estas duas datas (1898 - 1998) encerram, para mim, o século XX da poesia brasileira.











Pensando nelas uma vez mais: duas poetas incontornáveis

Havia duas poetas entre os vivos ao fim do século passado que eu sonhava um dia conhecer quando me mudei para a cidade de São Paulo, vindo do interior do estado. Talvez não necessariamente "conhecê-las", mas pelo menos sentar-me a uma mesa de uma lanchonete qualquer, próxima da mesa em que elas tomavam seu café, liam ou simplesmente olhavam pela janela. Lembro-me da descrição de Caetano Veloso sobre como Torquato Neto seguia Carlos Drummond de Andrade e Nelson Rodrigues pelas ruas do Rio de Janeiro, no fim da década de 60. Creio que era um pouco dessa mesma vontade, de olhar para os esqueletos e músculos e cabelos destas duas criaturas que me fascinavam. As duas nasceram também no interior de São Paulo, como eu, e estão entre os poetas brasileiros do pós-guerra que viriam a comandar minha atenção e ter um impacto gigantesco sobre meu trabalho e minha est-É-tica.

Falo aqui de Hilda Hilst (1930–2004) e Orides Fontela (1940–1998).


Descobrira a existência de Orides Fontela quando lançou-se o seu quinto livro de poemas, Teia (São Paulo: Geração Editorial, 1996) e a situação de pobreza em que vivia a poeta chegou aos meios televisivos. Lembro-me de uma entrevista, em que ela encerrava com a leitura do poema de abertura do livro Teia, o homônimo "Teia", como era seu costume nomear seus livros por seus poemas de exórdio.



Teia

A teia, não
mágica
mas arma, armadilha

a teia, não
morta
mas sensitiva, vivente

a teia, não
arte
mas trabalho, tensa

a teia, não
virgem
mas intensamente
...................prenhe:

no
centro
a aranha espera.



Ao terminar de ler aquele "no / centro / a aranha espera", ela olhava para a câmera de um jeito que dava frio na espinha. Tratava-se de um coisismo muito diferente do que eu aprendera a admirar e respeitar em João Cabral de Melo Neto. O coisismo de Cabral é pragmático, telúrico. Em Fontela, parecia se tratar daquele "coisismo ontológico" a que Haroldo de Campos se referira em relação a um poeta como Vasco Popa. Como o de Francis Ponge? Na biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo, eu viria a retirar muitas vezes o volume Trevo: 1968 - 1988 (São Paulo: Duas Cidades, 1988), em que leria admirado os poemas do lindo Alba (1983), livro que me parece um milagre na década de 80, assim como Asmas (1982), de Ronaldo Brito, e, é claro, Da Morte. Odes Mínimas (1981), de nossa gigante Hilda Hilst.

Foi com muita tristeza que abri o jornal, em uma manhã de 1998, para descobrir que Orides Fontela estava morta já há uma semana, mas jornal nenhum se dignara a informar o público. A poeta morrera, praticamente como indigente, num hospital público de Campos do Jordão, a 4 de novembro de 1998. O minúsculo artigo-obituário havia sido escrito por Alcir Pécora, creio, que a conhecera pessoalmente e admirava sua poesia.

Tecnicamente, toma-se o século XX como iniciando-se em 1901, terminando no ano 2000. Historiadores usam outras datas. Em minha mente, muitas vezes, o século XX da poesia brasileira inicia-se com a morte de Cruz e Sousa em 1898, terminando em 1998 com a morte de Orides Fontela. Duas mortes indigentes. Sei que seria mais "realista", digamos, apontar as mortes de Joaquim de Sousândrade e João Cabral de Melo Neto, em 1902 e 1999, para estes limites. 1902 é ainda o ano de publicação de Os sertões. Não estou, porém, tentando criar uma hierarquia. Nem estou com isso tentando estabelecer ou impor minha própria historiografia. É apenas meu hagiológio pessoal.

Tanto Cabral como Fontela comparecem com suas mortes em meu bilhete a mim mesmo, que encerra meu primeiro livro, contra a auto-glorificação que é típica entre nós, poetas, uma tentativa de lembrar a mim mesmo que somos pó, pó, pó, e se estes morreram como morreram, por que fim melhor haveria de me esperar?

Lembrete

Cruz e Sousa
em vagões de
transporte
de gado.

Paul Celan
nas águas
do Sena.

Frank O’Hara
estirado n’areia.

Christine Lavant
crivada de camas
............e escamas.

Alejandra Pizarnik,
intolerância
a C12H18N2NaO3.

Carlos Drummond de Andrade,
doze dias após a filha.

Pier Paolo
a pau e pedra.

João Cabral de Melo Neto
...................................cego.

Orides Fontela
à beira da indigência.


(publicado orginalmente em Carta aos anfíbios, 2005. Versão nova)

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Descobri Hilda Hilst quando esta lançou o romance Estar Sendo. Ter Sido (São Paulo: Nankin Editorial, 1997). Lembro-me de ler trechos, em pé, numa livraria pequena da Avenida Paulista, onde ia ler de graça pois não tinha dinheiro para comprar os livros, até chegar ao poema que encerrava o volume, intitulado "Mula de Deus", com versos como "Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO / Alta, dourada, me pensei. / Não esta pardacim, o pelo fosco / Pois há de rir-se de mim O PRECIOSO" ou "Há nojosos olhares sobre mim. / Um rei que passa / E cidadãos do reino, príncipes do efêmero. / Agora é só de dor o flanco trêmulo. / Há nojosos olhares. Rústicos senhores." Quando cheguei aos últimos versos do poema, aquele deslumbrante "Palha / Trapos / Uma só vez o musgo das fontes / O indizível casqueando o nada // Essa sou eu. // Poeta e mula / (Aunque pueda parecer / Que del poeta es locura)", quase cambaleava.


Deu a febre.

Tornei-me devoto.

Nos próximos anos passei os livros de Hilst a todos que encontrava, formando um círculo de amigos que a admiravam como eu. Em 2004, decidimos: vamos a Campinas conhecê-la. Não sabíamos que a poeta estava há semanas no hospital, após uma queda que lhe trouxera complicações. Soube, mais uma vez pelos jornais, de sua morte a 4 de fevereiro de 2004. Telefonei perplexo para os amigos com quem planejava a viagem à Casa do Sol. Não queria crer. Naquela tarde, após sair do trabalho, lembro-me de caminhar para o Parque do Ibirapuera, onde queria ver uma exposição no MAM e, descendo a pé pela Avenida Brigadeiro Luís Antônio, comecei a compor na mente a primeira das "Seis canções óbvias":


Sair da cama, disse,
........foi simplesmente
........uma idéia incrível
........e deliberada
De invernos frutíferos
........construíram-se
........muitos infernos na
........primavera
A cama é um inferno pessoal
........e intransferível
E a pele vestida à noite
........desprega-se para acompanhar
........outra calçada pela manhã
A transferência de corpo pratico-a
........com diligência
É tudo tão simples, dizem
Hilda Hilst havia medo da morte
........e morreu
........assim como o MASP
........é ao mesmo tempo
........museu e mirante
Ergue-se o deliberado sobre
........simples patas


(Carta aos anfíbios, 2005)


Algum dia quero escrever sobre essa viagem à Casa do Sol, esta viagem que jamais aconteceu. Não conheci Orides Fontela, não conheci Hilda Hilst. Não as vi beber café em copo, caneca ou xícara. Tenho os poemas. Volto a eles constantemente, como quem quer matar a sede infinita.

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terça-feira, 17 de novembro de 2009

São Paulo/Berlin: Leitura/Lesung com/mit Ricardo Domeneck & Odile Kennel


Hoje à noite, às 19:00, faço uma leitura na Livraria Portuguesa, aqui no Berlimbo, ao lado da poeta alemã Odile Kennel (n. 1967), a convite d´A Livraria e da Berlin-Brandenburgiesche Buchwoche (Semana do livro de Berlim e Brandemburgo).

Odile e eu temos nos traduzido mutuamente desde 2006. A leitura consistirá de poemas de nossa autoria, traduzidos para o português e o alemão em trabalho conjunto. Iniciaremos com poemas recentes, ainda sem tradução, seguindo para textos mais antigos.

No programa desta noite:

Primeiro bloco: Poemas não muito sérios/Nicht ganz so ernste Gedichte

Odile Kennel lê "So topographisch zumute" & "Nicht aussteigen müssen in Hildesheim"
Eu leio "Corpo" em português e inglês (leia AAQQUUII).

Segundo bloco: Poemas com animais e secreções/Gedichte mit Tieren und Körperausscheidungen

Odile Kennel lê "Salbei denken und Du" (leia AAQQUUII), "Zum Glück kam der Nebel" & "Dinosaurier werfen in erster Linie Fragen auf". Em seguida, eu leio minhas traduções para o português destes mesmos poemas: "Pensar sálvia e você", "Por sorte a névoa chegou" & "Dinossauros levantam primordialmente questões"

Depois disso, leio meus 2 poemas mais recentes: "Texto em que o poeta celebra o amante de vinte e cinco anos" e "Enfim aurora-me na cachola", seguidos de "Breviário de secreções", que está no Carta aos anfíbios. Odile lê então suas traduções destes meus poemas para o alemão: "Text, in dem der Dichter des Liebhabers fünfundzwanzigsten Geburtstag zelebriert", "Endlich dämmert’s mir im Hirn" & "Kurze Abhandlung über Körperausscheidungen".

Terceiro bloco:

Odile lê os últimos poemas que traduzimos: "Und dann fing ich noch einmal mit der Zeile an" e "Auch ich finde keinen Schluss", que faz uma referência ao poema "Treze de agosto", de Angélica Freitas. Eu os traduzi como "E então comecei uma vez mais com o verso" e "Também não consigo terminar".

Para encerrar, farei minha leitura videotextual das "Six songs of causality".



Vai ser divertido.

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quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Um dos últimos transcendentalistas americanos? Pensando sobre Terrence Malick

A duas quadras de meu apartamento no Berlimbo, há uma videolocadora para a qual caminho quase todas as noites, por volta da uma da madrugada, horário em que os filmes custam apenas € 1,50, voltando para minha cama com o filme em que submergirei para sair do mundo da poesia e da literatura. "Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade." Uma das paredes da locadora, a que está logo à porta, era organizada como "Os cinquenta diretores do século", recentemente reestruturada para "Os cem diretores do século". Revolvendo as novas seções, meus olhos caíram no espaço exíguo dedicado ao americano Terrence Malick (n. 1943). Num primeiro momento, minha mente reconheceu o nome, mas não conseguia lembrar-me de onde. Tomando as quatro únicas caixas na seção, reconheci a que continha o filme The Thin Red Line, um filme de que gosto muitíssimo, um dos melhores filmes de guerra já feitos, por ser, talvez, filme de guerra nenhum, não da maneira como o é o perturbador Venha e veja (1985), do russo Elem Klimov (1933 - 2003), um épico devastador. The Thin Red Line (1998) é de uma delicadeza incrível.





Muito já se escreveu sobre a influência dos transcendentalistas americanos sobre o trabalho de Terrence Malick. Em The Thin Red Line, ele parece realmente dirigir sob a regência de Ralph Waldo Emerson, Henry David Thoreau, Margaret Fuller. Em momentos de antiamericanismo acirrado, sempre procuro me lembrar deste país, o país de Thoreau, de Emerson, o mesmo país que geraria mais tarde John Cage, alguém que às vezes soa como outro "transcendentalista americano" tardio, ainda que Cage, o apaixonado por Thoreau, tenha substituído o cristianismo de seus antepassados pelo budismo.

Ontem à noite, adormeci após assistir ao segundo filme de Malick, chamado Days of heaven (1978), em que se encontra já a direção meditativa do americano.





Não é para todo estômago. Há quem considere seus filmes chatíssimos. A frequente narração em off, uma de suas marcas registradas, irrita muita gente. Os próprios transcendentalistas do século XIX receberam críticas duras. Edgar Allan Poe viria até mesmo a satirizá-los.

Eu gosto muito.

Seria interessante discutir se o "transcendentalismo" de Malick baseia-se mesmo na noção de transcendência como a conhecemos, em oposição à noção de imanência. Pois Malick parece crer na manifestação divina no mundo, ainda que o discurso de seus narradores e personagens indique o contrário.

Isso tudo sempre me pega pelo cérebro, pelo estômago, pelos pulmões. Talvez não seja à toa que meus mestres eleitos na poesia brasileira são Murilo Mendes e Hilda Hilst, e não João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos, como ditou a moda e o modo de usar a tradição nos últimos 25 anos. Talvez por isso me apaixone tanto o simbolismo semiótico de Orides Fontela. É algo disso o que busco no conceito de figura, em minha pesquisa por uma poesia que se faz consciente de sua historicidade, mas talvez o conceito de figura (figura como conceito da teologia cristã, FIGURA, em que um acontecimento histórico liga-se a outro acontecimento histórico, prefigurando-o, dois fatos distintos e temporalmente segregados prevendo um último acontecimento que revelaria seus significados) denote mais uma crença na imanência divina, que em sua transcendência. No cinema, há algo disso em Andrei Tarkóvski, ou em russos contemporâneos nossos, como Aleksandar Sokúrov e Andrei Zvyagintsev.

O discurso figurativo de Terrence Malick, em The Thin Red Line, distancia-se muito, por exemplo, do discurso alegórico de Francis Ford Coppola em Apocalypse Now (1979). As referências literárias destes dois filmes, que tomam a Segunda Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã como pano-de-fundo e Henry David Thoreau e Joseph Conrad como referências literárias, respectivamente, já demonstram as veredas distintas por que caminham. Em ambos, no entanto, a guerra é mais que um conflito histórico. Em Malick, pelo menos, a história não é paisagem, mas o véu que separa nossos olhos de uma paisagem outra.

Talvez assista esta semana ao primeiro filme de Malick, Badlands (1973), com a linda Sissy Spacek.



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Ou em vez de assistir a outros filmes de Terrence Malick, talvez eu vá seguir um pouco a carreira esparsa (como os filmes de Malick) da atriz Linda Manz (n. 1961), que tinha apenas 16 anos quando atuou em Days of heaven, com uma performance maravilhosa em sua delicadeza e naturalidade.



Ela viria a atuar ainda (como acabei de descobrir) em filmes como The wanderers (1979), de Philip Kaufman; Out of the blue (1980), de Dennis Hopper; assim como estava no ótimo Gummo (1997), de Harmony Korine.


(Linda Manz em Out of the blue, de Dennis Hopper)

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