sexta-feira, 10 de abril de 2009

Berlin, Berlim

Desde o início do século XX, Berlim tem sido porto para os navegantes em busca de certas possibilidades, certas liberdades e libertinagens. O período da República de Weimar (1919 - 1933), quando o povo que habita este território, hoje conhecido como Alemanha, gozou de algumas das maiores liberdades civis de sua história e também das graves consequências da Primeria Grande Guerra, apenas para ver tudo mergulhar no caos da ascensão nazista ao poder, viu a cidade abrigar alguns dos artistas mais interessantes dos primeiros modernismos. Berlim sediou o grupo mais politizado dentre os dadaístas germânicos, com Raoul Hausmann, Richard Huelsenbeck e Hannah Höch à frente.

(colagem de Hannah Höch)

Na verdade, cada um dos movimentos de vanguarda que surgiram em língua alemã ou residiram em Berlim acabaram tendo aqui sua forma mais combativa e politizada, seja o expressionismo (basta pensar nas telas de Otto Dix e George Grosz),

(pintura de Otto Dix)

DADA (poemas de Hausmann, colagens de Höch), Fluxus (ou sua versão através do trabalho de Joseph Beuys), Pop Art ou o Punk, sem mencionar o “Kapitalistischen Realismus” (Realismo Capitalista) de Sigmar Polke, Gerhard Richter e Konrad Lueg. Os alemães são obcecados com suas versões da tal de realidade.

(ilustração de Sigmar Polke)

Esta obsessão realista pode ser claramente sentida na tradição fotográfica alemã, com August Sander, Bernd & Hilla Becher ou, nos dias de hoje, com Wolfgang Tillmans e Heinz Peter Knes.

(fotografia de August Sander)

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(fotografia de Bernd & Hilla Becher)

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(fotografia de Wolfgang Tillmans)

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(fotografia de Heinz Peter Knes)


A década de 20 viu ainda alemães como Walter Benjamin e Bertold Brecht caminhando pelas ruas da cidade, mas também atraiu muitos estrangeiros, como o poeta W.H. Auden ou o romancista Christopher Isherwood, em busca da famosa liberdade sexual e vida noturna berlinenses. Esta época encontra expressão famosa no romance Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin, mais tarde filmado por Rainer Werner Fassbinder.

§

Sobre o pobre B.B.



1

Eu, Bertolt Brecht, vim das florestas negras.
Minha mãe trouxe-me, no abrigo
de seu ventre, às cidades. E, enquanto eu viver,
o frio das florestas estará comigo.

2

Na cidade de asfalto estou em casa.
Recebi cada extrema-unção logo, a saber:
jornais, álcool, tabaco. Cheio
de suspeitas, preguiça e, afinal, de prazer.

3

Eu sou cordial com todos. Ponho
um chapéu-coco, pois isto é normal.
Eu digo: que animais de cheiro estranho.
E digo: tudo bem, eu sou igual.

4

Eis que em minhas cadeiras vagas, de manhã,
uma mulher ou outra se balança.
Olho-a sem pressa e digo-lhe: dispões
em mim de alguém que não merece confiança.

5

À noite eu me reúno com os homens.
Tratamo-nos de gentlemen. O bando,
com pés na minha mesa, diz que tudo
vai melhorar. E eu nem pergunto: quando?

6

À luz da aurora gris pinheiros mijam
e os pássaros, seus vermes, abrem o alarido.
É quando, na cidade, esvazio o meu copo,
jogo fora o charuto e me recolho aflito.

7

Nós, geração leviana, vivemos em casas
supostamente eternas. (Desse modo, além
de altos caixotes em Manhattan, construímos
junto do Atlântico as antenas que o entretêm.)

8

Restará das cidades quem as cruza: o vento.
A casa alegra o comensal que a dilapida.
Sabemos bem que somos provisórios.
Nem vou falar do que virá logo em seguida.

9

Manter, sem mágoa, nos futuros terremotos,
o meu Virgínia aceso — já me satisfaz.
Eu, Bertolt Brecht, que, das florestas às cidades,
vim no ventre materno, anos atrás.


(Bertolt Brecht em tradução de Nelson Ascher, publicada em Poesia Alheia)

§

Durante o período do muro, a parte ocidental de Berlim voltaria a ser porto para os que buscavam escapar do serviço militar alemão e, com a condição-de-ilha da parte ocidental, o pouco policiamento e aluguéis baratos, artistas alemães e estrangeiros voltaram a ocupar a cidade. Foi aqui, na década de 70, que David Bowie e Iggy Pop produziram algumas de suas grandes canções. Aqui, o Punk, a New Wave e o rock industrial encontraram sua combativa maneira alemã, com grupos como o Tödliche Doris (com Wolfgang Müller à frente), o Malaria! (de Gudrun Gut) ou o Einstürzende Neubauten (de Blixa Bargeld).


(Malaria! - "Geld/Money")

Com a morte de Bertolt Brecht, o teatro Berliner Ensemble (um de meus prédios favoritos em Berlim, gosto de ir escrever na praça diante do teatro, com o rio Spree às costas e a estátua de Brecht à frente) passa a ser comandado por Heiner Müller, uma grande referência literária para o meu trabalho, com seus textos inclassificáveis, como Der Auftrag (A Missão) (1979) e Die Hamletmaschine (1977). Ou aquele que é um de meus textos favoritos em língua alemã: o estupendo salve-salve poema/peça "Medeamaterial". No pós-guerra, criaturas como Rainer Werner Fassbinder, Joseph Beuys e Heiner Müller mantiveram Berlim e a Alemanha no mapa do mundo. Estes três estão entre minhas maiores referências est-É-ticas.


(trecho do filme "I was Hamlet", sobre Heiner Müller)


(Joseph Beuys)


(Rainer Werner Fassbinder)

A Alemanha e sua língua não têm uma presença tão aparente ou óbvia na cultura brasileira, a não ser no teatro, onde Bertolt Brecht ainda impera como incontornável. A relação dos alemães com Brecht é muitíssimo mais complicada.

Os brasileiros sempre se voltaram para os franceses. Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Heitor Villa-Lobos e outros primeiros modernistas gostavam de perambular por Paris, como a maioria dos primeiros modernistas de qualquer país ocidental, de César Vallejo a T.S. Eliot, passando por Vladimir Maiakóvski. Nos últimos tempos, de forma muitas vezes quase subserviente e pouco crítica, os poetas brasileiros voltaram-se para os estadunidenses. Nova Iorque é logo ali e a Barra da Tijuca fica em Miami.

Poeta brasileiro vivendo no estrangeiro é coisa corriqueira. Não inaugurei atividade qualquer. Além dos já mencionados brasil-parisienses, houve a longa morada de Murilo Mendes em Roma, João Cabral de Melo Neto em Sevilha e Barcelona, assim como Clarice Lispector e João Guimarães Rosa muito perambularam, escrevendo vários trabalhos no exterior. Hoje em dia, há os casos de Zuca Sardan e a vagamundos Angélica Freitas.

Viver em outro país, mas principalmente em outra língua, traz características novas para o trabalho de um artista da linguagem. Por exemplo, uma visão saudavelmente "artificialista" para a "língua materna", salvando-o da falácia do natural. O exílio não é uma condição a ser lamentada ou celebrada, mas usufruída e aprendida. Jamais escrevi ou escreveria uma nova "Canção do exílio", mas com meu pendor por gender trouble, escrevi minha "Cão são da ex-ilha".

§

Cão são da ex-ilha

o desgosto de cada
passo confirmar o mapa
e o diafragma contraído
entende o queixo
no joelho,
meio-dia e meia
o centro da certeza
que caminha do “quero“
ao “não-quero“,
palha, fênix, Joana
d’Arc, como perceber
que abismo e precipício
não
são sinônimos
exatos,
ou acordar no meio da
noite sem energia
elétrica
e sussurrar com a calma
do fim da força:
equivalendo
silêncio e escuridão,
real
apenas a escolha
da língua, entre-
tanto a
memória
das possibilidades
morre
para que o fato
entre inassistido
nas atas
do verídico;
saiu o sol,
deve estar tudo
bem; subiu a lua,
deve estar tudo
bem;
trocar de pele
continuamente
talvez
leve-me ao centro
e a ausência
me escame
como quem diz
“eu sinto
a falta”


(Sons: Arranjo: Garganta, no prelo)

§

Considero Berlim um ângulo privilegiado para contemplar o mundo e, em especial, o ocidente. São Paulo e Berlim são minhas cidades de escolha, as que impregnam meu trabalho. Não consigo me identificar com abstraçoes gigantescas como países, prefiro a concretude das cidades. Sou um poeta de São Paulo e de Berlim. Cada poeta é poeta de sua cidade. Manuel Bandeira foi poeta do Recife e do Rio de Janeiro. Oswald de Andrade foi poeta de São Paulo, como o é Augusto de Campos. João Cabral de Melo Neto com Recife e Sevilha. "A cidade sou eu / sou eu a cidade / meu amor", escreveu Carlos Drummond de Andrade, o itabirano carioca.

Com a queda do muro, Berlim voltou a reunir alguns dos artistas estrangeiros mais interessantes. Janine Rostron, a Planningtorock, mora aqui, assim como Olof Dreijer.


(Janine Rostron a.k.a. Planningtorock - "Changes")

Alguns dos poetas alemães contemporâneos mais interessantes vivem hoje em Berlim, como Monika Rinck e Daniel Falb ou Sabine Scho, que divide seu tempo entre Berlim e São Paulo.

Ler parágrafos biográficos sobre artistas visuais contemporâneos invariavelmente leva-nos a ler a frase "So-and-so lives and works in Berlin." Na nossa Berlin Hilton, o evento semanal que organizo por aqui, tiro proveito desta situação privilegiada, convidando alguns dos artistas sonoros que mais me interessam.

Esta semana, foi o caso do artista sonoro francês Jackson Fourgeaud, que se apresenta como Jackson and His Computer Band. Seu álbum de estréia, chamado Smash (2005) e lançado pelo selo Warp, foi um dos mais celebrados da década aqui na Zooropa. Gosto muitíssimo de seu trabalho e considero-me sortudo por compartilhar oxigênio e roçar ombros com ele aqui no Berlimbo.




§


(Jackson and His Computer Band - "Utopia")

Um comentário:

m. sagayama disse...

Domeneck,

Entrei pro Fantástico Mundo do Blog.
Dê uma olhadinha quando der.
Até mais!

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