sexta-feira, 29 de maio de 2009

Feira de sextinas às sextas-feiras


§ - Feira de sextinas às sextas-feiras

por Ricardo Domeneck

Discutir a forma, função e contexto da sextina tornou-se, para mim, como um nó múltiplo que fosse capaz de fazer uma corrente transformar-se em teia, iluminando aspectos importantes para vários conceitos em vigor na historiografia literária contemporânea, assim como em nossa discussão sobre a historicidade do fazer poético. Na minha formação e estudo como poeta, lembro-me de quando primeiro li sobre sextinas e a sua descrição, por críticos literários, com a afirmação de que se tratava da mais difícil e sofisticada forma histórica para a prática de um poeta, com sua constrição formal estrita e restrita. Sua discussão vinha, invariavelmente, unida à descrição de sua "forma fixa", como fora, na crença de tais críticos, "estabelecida" por seu inventor. Sabemos, portanto, de sua estrutura altamente marcada, exigindo a aparição das mesmas palavras em uma sequência específica: 123456 - 615243 - 364125 - 532614 - 451362 - 246531, com o terceto ou dístico finais exigindo novamente a aparição das mesmas 6 palavras, não sendo à toa, destarte, que apenas um tour-de-force imaginativo permita aos melhores poetas que mantenham a graça (mais uma vez aviso não estar me referindo ao humor) e inteligência em um trabalho formal como a sextina. Ou pelo menos assim seguia a narrativa. Se uma discussão sobre o conceito de forma fixa tem alguma relevância hoje para o nosso debate sobre a historicidade do fazer poético, certamente a sextina serviria ao nosso questionamento ainda mais que o debate sobre a validade est-É-tica da escrita atual de sonetos.

Confesso (ouso) que minha sensação, na maior parte das vezes, ao ler sextinas mais recentes, dos últimos poucos séculos, era justamente a que venho chamando de "jogo literário", do poeta que se propõe um desafio, cujos resultados, ainda que competentes, o restringem ao âmbito do "literário", quanto mais este se distancia da estrutura completa do trabalho
como foi praticado por seu inventor, em forma, função e contexto. Conhecemos a forma da sextina, mas eu sentia a vontade de perguntar: qual a função e qual o contexto para essa prática, além do satisfazer do ego técnico de um poeta e seus críticos, além do prazer artístico que o leitor tem ao ler uma sextina bem-feita? Alguém poderá dizer: não basta esse prazer artístico da forma bem arquitetada? É claro que basta. É o motivo principal por que lemos ou ouvimos um poema. Mas eu tentarei elaborar aqui, se possível, a maneira como a sextina pode ilustrar minha preocupação com a noção de "forma fixa", que me parece equivocada, quando a solução formal de um poeta, com sua funcionalidade e contexto específicos, passam a ser tratadas como fórmula para o uso de qualquer poeta, em qualquer momento histórico. Espero que isso aclare ainda mais a minha posição sobre um debate mais complexo sobre a historicidade do fazer poético e sobre o que pode significar ainda hoje a conceito de forma fixa, já que poetas atuais seguem argumentando que todas as formas históricas estão disponíveis para os poetas, como alguns têm afirmado em recentes artigos repetitivos, a quem as vanguardas históricas não parecem ter passado de um afrodisíaco para soneteers.

Tomemos dois praticantes da sextina, de línguas e contextos históricos distintos. Em primeiro lugar, o trabalho de Luís de Camões (c. 1524 - 1580), os duros seios nos quais todos nós desde cedo mamamos, para citar o verso de Murilo Mendes. Camões viveu e escreveu em local não tão distante da região onde a sextina surgiu. Seus textos datam de cerca de 400 anos após a "invenção da forma" por Arnaut Daniel (c. 1150 - 1210). Uso aspas para certos conceitos, como "forma" ou "invenção", porque tentarei argumentar que o próprio vocabulário crítico usado, muitas vezes determina uma mentalidade condicionada ao extremo por uma est-É-tica específica, quando o crítico acreditar estar agindo de maneira empírica, científica, "neutra".

Creio podermos dizer, com segurança, que o contexto cultural, econômico e político que circundou a atividade dos trovadores occitanos em seu ápice, entre o reinado de Guilherme IX de Aquitânia (1071 - 1126) e a geração de poetas em atividade em meados do século XIII, que legou ao mundo os textos de Arnaut Daniel, Peire d'Alvernhe, Raimbaut d'Aurenga, Azalais de Porcairagues, Bernart de Ventadorn, Beatriz de Diá ou Bertran de Born, já havia se encerrado e transformado no tempo de Camões. O luso e o occitano já não compartilhavam o mesmo contexto. Tais equivalêcias temporais/culturais sao perigosas, haverá mais de um a querer alertar-me, mas poderíamos dizer que Luís de Camões estava talvez tao distante de Arnaut Daniel quanto Ezra Pound estava do próprio Camões, ao escrever sua "Sestina: Altaforte", ainda que se queira, muitas vezes, pregar uma ruptura distinta entre a nossa modernidade e a modernidade de outros momentos históricos. Creio termos estabelecido já, com vários autores, como Hans Robert Jauss e Fredric Jameson, que "modernidade" não é privilégio nosso. O próprio Haroldo de Campos, em seu equivocado "manifesto do poema pós-utópico", repete o achado de Jauss, ainda que o direcione às "armadilhas da coerência" de sua falácia teleológica. Mesmo as convoluções entre o tempo de Camões e o de Dante, este mestre da sextina, que aprendeu com il miglior fabbro, já os punham em contextos culturais distintos.

Ora, eu mesmo já afirmei que não nos importa aqui meramente fazer uma leitura sociológica e política dos momentos históricos de Arnaut Daniel, Dante Alighieri, Luís de Camões ou Ezra Pound, usando seus textos como mero documento histórico, político ou sociológico. Para tal intento, há jornais de época e cardápios de restaurante. O que nos importa é compreender o trabalho formal sem manuseá-lo em alguma espécie de espaço selado, como em experimentos em vácuo. Tenho buscado defender uma crítica que parta do texto sem, no entanto, ignorar outros aspectos além da forma, pois não podemos compreender esta forma sem uma avaliação da sua função e seu contexto.

Assim, isso interessa para a avaliação das sextinas de Dante Alighieri, Luís de Camões e Ezra Pound, as diferenças entre seus contextos históricos? Para muitos, não. Para mim, apenas na medida em que ela condiciona justamente as transformações formais entre uma sextina de Arnaut, de Dante, de Camões ou de Pound. Portanto, concordo com os zeladores do formalismo que o que importa é saber se Camões e Pound elaboraram textos com graça e inteligência, seguindo a constrição formal altamente rígida da sextina, tal qual foi "inventada" e praticada por Arnaut Daniel, que passa a ser o parâmetro de qualidade.
Há várias perguntas, infindáveis debates para esta questão. Sem mencionarmos as diferenças de línguas, é claro, seria realmente possível a Camões ou Pound escreverem sextinas da mesma "qualidade" das sextinas de Arnaut Daniel,
se mesmo a noção de qualidade parece transformar-se entre o século XII e o século XX? Seria realmente apenas uma questão de talento?

Um poeta por volta do final do século XIII, por exemplo, como era o caso de Dante Alighieri, em atividade cerca de um século após a morte de Arnaut Daniel, ainda compartilhava, em grande parte, do mesmo "mundo" de seu campeão eleito. Ainda havia trovadores occitanos em atividade quando Dante escreveu suas sextinas, algum tempo antes deste mundo naufragar no cataclismo da Grande Peste e das convoluções políticas que dariam fim à Idade Média. Em seu caso, a imitação era homenagem possível, de autor para autor de um "mesmo" contexto histórico.

"Al poco giorno e al gran cerchio"
Dante Alighieri


Al poco giorno e al gran cerchio d'ombra
son giunto, lasso! ed al bianchir de' colli,
quando si perde lo color ne l'erba:
e ‘l mio disio però non cangia ‘l verde,
sí è barbato ne la dura petra
che parla e sente come fosse donna.

Similmente questa nova donna
si sta gelata come neve a l'ombra;
ché non la move, se non come petra,
il dolce tempo che riscalda i colli,
e che li fa tornar di bianco in verde
perché li copre di fioretti e d'erba.

Quand'ella ha in testa una ghirlanda d'erba,
trae de la mente nostra ogn'altra donna;
perché si mischia il crespo giallo e ‘l verde
sí bel, ch'Amor lì viene a stare a l'ombra,
che m'ha serrato intra piccioli colli
più forte assai che la calcina petra.

La sua bellezza ha più vertù che petra,
e ‘l colpo suo non può sanar per erba;
ch'io son fuggito per piani e per colli,
per potere scampar da cotal donna;
e dal suo lume non mi può far ombra
poggio né muro mai né fronda verde.

Io l'ho veduta già vestita a verde,
sí fatta ch'ella avrebbe messo in petra
l'amor ch'io porto pur a la sua ombra:
ond'io l'ho chesta in un bel prato d'erba,
innamorata com'anco fu donna,
e chiuso intorno d'altissimi colli.

Ma ben ritorneranno i fiumi a' colli,
prima che questo legno molle e verde
s'infiammi, come suol far bella donna,
di me; che mi torrei dormire in petra
tutto il mio tempo e gir pascendo l'erba,
sol per veder do' suol parmi fanno ombra.

Quandunque i colli fanno più nera ombra,
sotto un bel verde la giovane donna
la fa sparer, com'uom petra sott'erba.



A linguagem de Dante é a mais próxima da linguagem telúrica de Arnaut Daniel. Não conheço muitos autores que tenham sido capazes de compor uma sextina tão graciosa quanto as de seu inventor, em que a linguagem substantiva não se perde no uso da sextina para malabarismos retóricos, em um texto que mal parece estar tão baseado em uma série de repeticões extremamente marcada. Passeamos pelo texto sem perceber tão claramente que as mesmas palavras estão marcando suas quebras-de-linha. Aqui está o que chamo de "graça", na página, na superfície do texto de Dante. No entanto, a linguagem de Dante já começa a demonstrar um grau mais elevado de abstração, se comparada a uma sextina como "Lo ferm voler qu'el cor m'intra", de Arnaut Daniel. Isso se dá por haver, já aqui, apenas algumas décadas após a morte de seu inventor, uma transformação bastante importante entre o trabalho de Arnaut Daniel e o de Dante Alighieri, que os diferenciam em contexto e função, ainda que Dante tenha sido talvez o melhor praticamente da forma após seu inventor. Voltarei a esta distinção a seguir, permitam-me a elaboração de meu argumento.

O que poderíamos dizer, portanto, de um poeta como Luís de Camões, escrevendo quando mesmo os ossos de Arnaut Daniel
já eram pó e em uma Europa que já se transformara e perdera muitas das características culturais do tempo dos trovadores?
No caso de Camões, resta-lhe apenas a "forma" da sextina, naquele conceito bastante simplista de forma: contagem de sílabas, versos, acentos, que leva a forma de um poema original a ser tomado como fórmula. A Camões não lhe basta apenas imitar a forma de Arnaut Daniel, seria necessário imitar seu contexto, assim como a função da sextina para o trovador já desaparecera por completo quando Camões assume sua "prática". Ele assume realmente sua prática? Veremos ao fim deste artigo.

O que não fora talvez difícil para Dante, por compartilhar de muitas das características do contexto cultural, social, religioso
e filosófico de Arnaut Daniel (ainda que grandes transformações já se faziam sentir), para Camões mostra-se como tarefa
de um grau bem mais alto de artificialidade. Entre outros fatores, o contexto occitano da cultura do amor cortês já havia desaparecido. O "Amor" que fora tema para Arnaut Daniel e Dante Alighieri já não é o mesmo "Amor" de Luís de Camões. Vejamos a bonita "A culpa de meu mal só têm meus olhos", minha favorita entre as sextinas de Camões:




"A culpa de meu mal só têm meus olhos
"
Luís de Camões

A culpa de meu mal só têm meus olhos
pois que deram a Amor entrada na alma,
para que perdesse eu a liberdade.
Mas quem pode fugir a üa brandura
que, depois de vos pôr em tantos males,
dá por bens o perder por ela a vida?

Assaz de pouco faz quem perde a vida
por condição tão dura e brandos olhos,
pois se tal qualidade são meus males
que o mais pequeno deles toca na alma.
Não se engane com mostras de brandura
quem quiser conservar a liberdade.

Roubadora é de toda liberdade
- e oxalá perdoasse à triste vida! -
esta que o falso amor chama brandura.
Ai, meus antes imigos que meus olhos!
Que mal vos tinha feito esta vossa alma,
para vós lhe fazerdes tantos males?

Creçam de dia em dia embora os males;
perca-se embora a antiga liberdade;
transforme-se em amor esta triste alma;
padeça embora esta inocente vida;
que bem me pagam tudo estes meus olhos
quando de outros, se os vêem, vêem a brandura.

Mas como neles pode haver brandura,
se causadores são de tantos males?
Engano foi de Amor, por que meus olhos
dessem por bem perdida a liberdade.
Já não tenho que dar senão a vida,
se a vida já não deu quem já deu a alma.

Que pode já esperar quem a sua alma
cativa eterna fez de uma brandura
que, quando vos dá morte, diz que é vida?
Forçado me é gritar nestes meus males,
olhos meus, pois por vós a liberdade
perdi; de vós me queixarei, meus olhos.

Chorai, meus olhos, sempre danos da alma,
pois dais a liberdade a tal brandura
que, para dar mais males, dá mais vida.


A cultura do amor cortês, que animou a poesia dos trovadores, mal se faz sentir na sextina de Camões. Aqui, o amor idealizado na figura feminina, inatingível e pura, transforma-se em castigo e pena, torturado em contradições.
As transformações culturais entre o tempo de Arnaut Daniel e Luís de Camões fazem-se claras a partir do próprio texto. Muito
se transforma: entre a linguagem extremamente corporal, concreta e tesa de Arnaut Daniel e a linguagem muito mais discursiva, retórica de Luís de Camões, há uma diferença muito grande em grau de abstração, que já começa a se fazer sentir mesmo em Dante. Seria possível dizer que isso é simplesmente o resultado da diferença de talento entre o grande Arnaut Daniel e um poeta menor, se comparado a ele, como Luís de Camões? Será a difícil tarefa de comparar um inventor e um mestre, se seguirmos a classificação de Pound?

Ora, pouco me interessa usar o texto de Luís de Camões para avaliar sua cultura apenas. Estamos interessados no trabalho poético, é sempre bom lembrar aos que estão prontos e prestes a acusar este debate de mera sociologia uspiana, petista ou de outras instituições ideológicas.

A linguagem de Camões em "A culpa de meu mal só têm meus olhos" está baseada em uma grau de abstração muito mais alto que o de Dante Alighieri, em "Al poco giorno e al gran cerchio d'ombra", ou Arnaut Daniel em "Lo ferm voler qu'el cor m'intra". Se tomarmos o trabalho formal a partir desta noção equivocada, em minha humilde opinião, de "forma fixa", como a mera aparência visual e estrutura matemática de um texto, teríamos que julgar o trabalho de Camões apenas por sua capacidade técnica em adaptar seu texto a tal constrição numérica. Nesta mentalidade, um estudo sobre seu contexto cultural serviria apenas para sabermos se sua época estava interessada em tais parâmetros de qualidade, o que nos informaria apenas sobre a "fama e reputação" de Camões em seu tempo, mas nos ajudaria pouco a estabelecer parâmetros para o nosso momento. O que venho argumentando, porém, é que o estudo formal só compreende por completo uma "forma", se levar em consideração sua "função" e seu "contexto", para que possamos aprender com ela.

Eu não estou tentando basear minha argumentação em alguma teleologia sociológica, ligando forma artística a contexto cultural. Não se trata de defender qualquer espécie de neo-determinismo. Não estou insinuando que a sextina só fazia sentido no contexto da cultura do amor cortês. No entanto, também acredito que não possamos simplesmente tomar a sextina como "forma fixa", sem compreender sua forma, sua função e o contexto em que foi inventada. Pois, em Camões, já vemos a sextina transformar-se em veículo para a retórica renascentista, no uso que Camões faz de sua rede de repetições.

O que explica esta gradual abstração entre a linguagem de Arnaut Daniel e os praticantes subsequentes da sextina? Talvez naquela sutil diferença que já insinuei, entre a prática da sextina em Arnaut e a prática da sextina em Dante? Ainda não chegou o momento para essa discussão. Vejamos um exemplo de sextina no século XX, praticada por aquele que já foi mencionado neste artigo, a "Sestina: Altaforte", de Ezra Pound:

"Sestina: Altaforte"
Ezra Pound

LOQUITUR: En Bertrans de Born. 
Dante Alighieri put this man in hell for that he was a stirrer up of strife. 
Eccovi! 
Judge ye! 
Have I dug him up again? 
The scene is at his castle, Altaforte. "Papiols" is his jongleur. "The Leopard," the device of Richard Coeur de Lion.

I

Damn it all! all this our South stinks peace.
You whoreson dog, Papiols, come! Let's to music!
I have no life save when the swords clash.
But ah! when I see the standards gold, vair, purple, opposing
And the broad fields beneath them turn crimson,
Then howls my heart nigh mad with rejoicing.

II

In hot summer have I great rejoicing
When the tempests kill the earth's foul peace,
And the lightnings from black heav'n flash crimson,
And the fierce thunders roar me their music
And the winds shriek through the clouds mad, opposing,
And through all the riven skies God's swords clash.

III

Hell grant soon we hear again the swords clash!
And the shrill neighs of destriers in battle rejoicing,
Spiked breast to spiked breast opposing!
Better one hour's stour than a year's peace
With fat boards, bawds, wine and frail music!
Bah! there's no wine like the blood's crimson!

IV

And I love to see the sun rise blood-crimson.
And I watch his spears through the dark clash
And it fills all my heart with rejoicing
And pries wide my mouth with fast music
When I see him so scorn and defy peace,
His lone might 'gainst all darkness opposing.

V

The man who fears war and squats opposing
My words for stour, hath no blood of crimson
But is fit only to rot in womanish peace
Far from where worth's won and the swords clash
For the death of such sluts I go rejoicing;
Yea, I fill all the air with my music.

VI

Papiols, Papiols, to the music!
There's no sound like to swords swords opposing,
No cry like the battle's rejoicing
When our elbows and swords drip the crimson
And our charges 'gainst "The Leopard's" rush clash.
May God damn for ever all who cry "Peace!"

VII
And let the music of the swords make them crimson!
Hell grant soon we hear again the swords clash!
Hell blot black for always the thought "Peace!"



Pound, sempre muito esperto, sabia estar há séculos demais de distância (permitam-me misturar tempo e espaço) da invenção e prática de Arnaut Daniel. Sua solução é simples, sem deixar de ser est-E-ticamente engenhosa: ao assumir a forma histórica e solução est-É-tica de um trovador para o seu texto, no período anterior à escrita dos Cantos, quando Pound ainda assumia suas máscaras, ele faz de sua sextina uma espécie de "monólogo dramático" de um trovador, neste caso o Bertran de Born (c. 1140 – 1215) que parecia mais afeito à própria personalidade belicosa de Ezra Pound. Isso permite a ele a adoção da forma e da linguagem de um imaginário trovador inglês, escrevendo sua sextina cerca de 700 anos após a morte de seu inventor. Pound demonstrou, em vários momentos, uma consciência bastante clara das condições históricas permeando o trabalho de poetas como Arnaut Daniel ou Dante Alighieri, assim como Geoffrey Chaucer e Robert Browning, ou os seus próprios contemporâneos. Poucos autores tiveram tamanha sensibilidade para o discernimento crítico dos valores da poesia pré-renascentista, sendo capaz de driblar vários dos preconceitos que críticos anteriores e posteriores a ele seguiram adotando. Pound tinha consciência do aspecto estrutural do trabalho poético medieval, escrevendo com paixão sobre Arnaut, Chaucer e Dante.

Estes três autores, Dante Alighieri, Luís de Camões e Ezra Pound usam, no entanto, a forma da sextina para a possibilidade
de elaboração, por vários ângulos de formulação e hesitações, de um argumento (Camões é o exemplo mais claro),
assim como para exercitar certas possibilidades narrativas no poema, como vemos em Pound. No entanto, todos eles imitam
a "forma" de Arnaut Daniel em uma mentalidade de "forma fixa", que não se mostra capaz de reproduzir a sextina tal qual
foi concebida e praticada pelo poeta occitano. Setecentos anos após a composição de um texto como o que estamos prestes a ler, por mais competente que seja, a sextina de Pound chega ao máximo a parecer uma paródia do trabalho poético occitano.


A narratividade e elaboração discursiva podem ser encontradas nas sextinas primevas de Arnaut Daniel, mas aqui chega finalmente o momento de considerarmos aquela que é a semente desta discussão, para podermos debater sobre sua forma, função e contexto, tentando compreender o que se transforma a partir de sua composição, chegando aos dias de hoje:

"Lo ferm voler qu'el cor m'intra"
Arnaut Daniel

Lo ferm voler qu'el cor m'intra
no'm pot ges becs escoissendre ni ongla
de lauzengier qui pert per mal dir s'arma;
e pus no l'aus batr'ab ram ni verja,
sivals a frau, lai on non aurai oncle,
jauzirai joi, en vergier o dins cambra.

Quan mi sove de la cambra
on a mon dan sai que nulhs om non intra
-ans me son tug plus que fraire ni oncle-
non ai membre no'm fremisca, neis l'ongla,
aissi cum fai l'enfas devant la verja:
tal paor ai no'l sia prop de l'arma.

Del cor li fos, non de l'arma,
e cossentis m'a celat dins sa cambra,
que plus mi nafra'l cor que colp de verja
qu'ar lo sieus sers lai ont ilh es non intra:
de lieis serai aisi cum carn e ongla
e non creirai castic d'amic ni d'oncle.

Anc la seror de mon oncle
non amei plus ni tan, per aquest'arma,
qu'aitan vezis cum es lo detz de l'ongla,
s'a lieis plagues, volgr'esser de sa cambra:
de me pot far l'amors qu'ins el cor m'intra
miels a son vol c'om fortz de frevol verja.

Pus floric la seca verja
ni de n'Adam foron nebot e oncle
tan fin'amors cum selha qu'el cor m'intra
non cug fos anc en cors no neis en arma:
on qu'eu estei, fors en plan o dins cambra,
mos cors no's part de lieis tan cum ten l'ongla.

Aissi s'empren e s'enongla
mos cors en lieis cum l'escors'en la verja,
qu'ilh m'es de joi tors e palais e cambra;
e non am tan paren, fraire ni oncle,
qu'en Paradis n'aura doble joi m'arma,
si ja nulhs hom per ben amar lai intra.

Arnaut tramet son chantar d'ongl'e d'oncle
a Grant Desiei, qui de sa verj'a l'arma,
son cledisat qu'apres dins cambra intra.



Por que mistério (e será mesmo mistério?) a sextina de Arnaut Daniel nos chega hoje como a mais vívida e atual dentre as quatro aqui expostas? O maior talento de Arnaut Daniel, superior a Dante Alighieri, Luís de Camões e Ezra Pound? Seu privilégio por ter sido o "inventor" da "forma", que não viria a encontrar mestres que o emulassem, para retornar à classificação de Pound? Talvez esta superioridade esteja, como agradaria aos pós-concretos, na maior "substantividade" da linguagem de Arnaut, contra a qual as linguagens de Dante, Camões e Pound empalidecem, especialmente a de Camões? É bem verdade que
Arnaut não se satisfaz com a mera repetição de seis palavras. A tessitura textual de Arnaut é a mais TESA (veja bem, querido leitor, que não usei os termos "concreta" ou "densa", seja gentil e não veja isso como mero acidente) dentre as quatro sextinas, criando uma textura musical potente no eco sonoro das seis palavras: "intra/cambra", "oncle/ongle", "verja/arma", como por todo o texto. O leitor contemporâneo mais atento perceberá uma alta carga de erotismo nestes pares de rimas, ainda que seja difícil precisar a intencao de Arnaut Daniel. Certa vez, em Barcelona, terra de trovadores occitanos, na companhia do poeta sonoro Eduard Escoffet, passamos um bom tempo nos deleitando em ouvir o texto de Arnaut Daniel, com sua ousadia em rimar a palavra "unha" com a incorrespondente palavra "tio", ou usar "entra" com "câmara". Mesmo a linguagem de Dante soa um tanto castiça, diante do texto de Arnaut. Permito-me o possível anacronismo perceptivo. Aqui um leitor poderia dizer:

"Mas, Sr. Domeneck, você escreveu `ouvir o texto de Arnaut Daniel´"?

Podemos passar finalmente, neste artigo, à característica estrutural da forma, função e contexto da sextina que já se transforma entre a prática de Arnaut Daniel e até mesmo a de Dante Alighieri, tão próximo em tempo e espaço: lembrarmo-nos que a sextina é letra-de-música. Esta é minha blasfêmia pessoal favorita, dirigida aos ouvidos dos literatos.
A sextina, forma tão intrinsecamente ligada à Literatura, é um dos exemplos de como o debate no Brasil (mas não só) assume características obscurantistas, como em artigos recentes de poetas literários, tentando mais uma vez criar uma separação intransponível entre poesia e música, escrita e oralidade. Já se chegou a definir a diferença como estando na necessidade, do texto de uma canção, de ajustar-se à melodia, como se jamais houvesse existido o trabalho de Arnaut Daniel, especialmente na sextina, que mostra como a pergunta é geralmente mal-formulada. O que se pergunta, em verdade, é se um texto composto para a performance oral pode também funcionar como Literatura. A existência e recepção crítica da sextina poderia responder bem a estas perguntas.

Sabemos que na poesia oral e cantada, a repetição tem uma função estrutural e intrínseca à composição do texto, funcionando como reiteração de sentido à mente, baseada no ouvido e sem o suporte dos olhos na página. Sim, haverá quem argumente que o troubadour tinha uma educação literária, ou não seria capaz de produzir textos que passariam a "funcionar" nos séculos vindouros como "Literatura", ainda que não tenham surgido como "Literatura". No entanto, ignorar que o trabalho do troubadour, incluindo a rainha das "formas literárias", a sextina, era composto para a performance oral levou à distorção literária da sextina, que deixa, na verdade, de ser realmente uma sextina, tal qual a compunha Arnaut, já nas mãos de Dante, chegando à abstração altamente retórico-discursiva de Camões e à paródia acidental de Pound. A sextina se transforma, por uma compreensão parca de sua forma, que se torna "forma fixa" ou "fórmula", pela ignorância de sua estrutura formal, funcional e contextual. A repetição, que tinha uma função musical, intrínseca à poesia oral, transforma-se em veículo para retórica ao ser transportada meramente para a página. Vejo aqui um exemplo claro do que venho chamando de gradual descontextualização do trabalho poético. Não estou tentando vetar a escrita de sextinas. Gosto muito das sextinas de Camões e de Dante. A sextina de Dante aqui reproduzida me parece belíssima. No entanto, meditar sobre a transformação da sextina parece-me ideal para a compreensão de como a solução formal de um poeta para uma questão específica, em um contexto específico, ao ser tomada como fórmula para poetas futuros, acaba por levar a uma gradual abstração até a total desfiguração do trabalho poético em mero jogo literário e acadêmico. Não é uma questão de ruptura com a tradição, mas de um questionamento de como poderemos realmente aprender com os poetas do passado. Já vimos que o "modernizar/atualizar" não é invenção nossa. Calímaco levantou questões similares em seu momento histórico, o século IV a.C., assim como a leitura mais desavisada de Catulo e Virgílio deveria mostrar que os dois não estavam de acordo com a maneira mais adequada de relacionar-se com a tradição. O Doce Stil Nuovo de Dante e colegas, como est-É-tica, já estava nos occitanos, o que não impediu a lavagem e dissipação neoclássica desta saúde após o Renascimento. Já argumentei que DADA não é uma ruptura com uma fictícia tradição unívoca, mas a religação a parâmetros est-É-ticos negligenciados após a Idade Média. Como Pound argumentou, a existência anterior de Geoffrey Chaucer e sua saúde linguística não impediu as baboseiras latinistas de John Milton. Da mesma maneira, em minha opinião, como a escrita tesa de John Donne não impediu a linguagem frouxa de Alexander Pope. Hoje em dia, venho a pensar sobre a sincronia histórica menos como imutabilidade das soluções est-É-ticas de poetas do que a imutabilidade dos problemas e debates a que respondiam.

O que os poetas de hoje poderiam ainda aprender com as sextinas de Arnaut Daniel é justamente como a educação literária deveria capacitar o autor a compor um texto altamente concreto e denso em sua linguagem, assim como não perder de vista e ouvido sua performance permitiria ao autor manter seu texto teso, livre de um grau demasiado alto de abstração retórica.

Assim, a sextina, em sua estrutura completa: formal, funcional e contextual, acaba por engessar-se em mero jogo literário ao ser tomada como solução atemporal para qualquer momento, e creio que está aí também o motivo pelo qual a linguagem poética usada por Arnaut Daniel e a de Luís de Camões, por exemplo, acabam por estarem muito distantes em grau de abstração. É o que faz a mosca viva a zunir em nossos ouvidos a partir da poesia de Arnaut Daniel transformar-se gradualmente em mosca em âmbar em jogos literários para acadêmicos. Não sugiro vedarmos a prática da sextina nos dias de hoje. John Ashbery a praticou, assim como li, entre as mais recentes da língua, uma bela composição de Paulo Henriques Britto, sempre muito competente. Mas sonho com o surgimento de um poeta que possa praticar a sextina em sua estrutura total: formal, funcional e contextual, em uma linguagem tesa, dos dias de hoje, como a belíssima "Le form voler qu´el cor m´intra", como a sextina deveria ser experimentada, desta maneira:


///performance moderna para a sextina "Le form voler qu´el cor m´intra", de Arnaut Daniel, com direção artística de Thomas Binkley (1932-1995)///

Essa discussão sobre a sextina seria interessante também para o debate sobre a hierarquia pós-Renascimento entre escrita e oralidade. No entanto, moro na Alemanha, onde uma das lições que aprendi foi a de não exagerar no número de fronts.

sábado, 16 de maio de 2009

O jogo de equivalências

por Ricardo Domeneck


Dois focos principais têm guiado o debate, segundo minha perspectiva, ilustrados pelos dois últimos artigos que escrevi e publiquei neste espaço, a saber, a discussão sobre a historicidade do fazer poético e sobre a conjunção entre estética e ética, a partir do que chamo de uma poética de implicações.

Tentei deixar claro, em inúmeros artigos, que minha crença na necessidade de contextualizar historicamente o debate poético e a leitura formal não se alia à tendência do que se chama, no Brasil, de leitura sociológica da literatura. Não espero simplificar o debate crítico, mas torná-lo mais complexo, por crer que uma leitura
meramente formalista acaba por ser tão limitada quanto uma leitura meramente sociológica. Os exemplos que costumo mencionar, de críticos sensíveis ao contexto histórico, tanto do texto sobre o qual escrevem, como do próprio momento histórico em que produzem sua crítica, deveriam deixar isso mais uma vez claro, a
partir de nomes como Walter Benjamin (refiro o leitor à sua discussão sobre Baudelaire ou o surrealismo e a fotografia) e Hugh Kenner (em especial o apaixonado The Pound Era ou o brilhante The Mechanic Muse), assim como, em nossos dias, Marjorie Perloff, no importante Wittgenstein´s Ladder, recentemente traduzido e publicado no Brasil.

Como já escrevi, qualquer um, com a educação necessária, pode aprender a reconhecer figuras de linguagem, formas históricas a partir da mera recensão do número de versos e posicionamento de rimas de um poema, movimentos literários, ou o contar de sílabas e acentos. No entanto, após este trabalho técnico, espera-se do crítico, se ele quiser
realmente iluminar o trabalho em questão, que ele demonstre capacidade intelectual para o delicado ato de discernimento e, momento em que pode demonstrar menos memória do que inteligência, a leitura crítico-histórica daquilo que chamo de est-É-tica do poeta, na esteira da proposta de Wittgenstein, que sugeriu sua interligação em um trecho famoso do Tractatus Logico-Philosophicus. Tal discussão, volto a afirmar, não se refere à temática de um poema ou às circunstâncias meramente biográficas do poeta que o escreveu. As implicações est-É-ticas de um poema devem ser lidas a partir de seu trabalho formal e de suas escolhas literárias, uso de cada topus, construção sintática, etc. Neste aspecto, além do debate formal, acredito ser necessário hoje discutir material, função e contexto, ou seja: a escolha formal do poeta em seu manejo da materialidade da linguagem, a função que tal forma assume em seu trabalho e o contexto histórico em que este se insere.

Assim, repito que não defendo o abandono do trabalho poético-formal. No entanto, repito também que creio que a forma seja algo muito mais complexo que a contagem de sílabas, número de versos ou posicionamento de rimas de um poema, assim como vejo como contraditórias tanto a expressão "forma fixa" como a de "verso livre". A expressão "forma fixa" ignora, em minha opinião, que as formas históricas foram soluções apresentadas por poetas para problemas específicos, em contextos históricos específicos, desmascarando uma mentalidade poético-formal que toma a forma, nas palavras de Pound, menos como "center around which" ou "means through which", do que mera "box whithin which." Já a expressão "verso livre", como já foi exposto por críticos melhores no passado, acaba por demonstrar ingenuidade parecida, pois ignora o condicionamento estrutural da aprendizagem do poeta na tradição e o esquecimento dos aspectos menos óbvios da pesquisa formal de um poeta.

Como já foi dito, o debate existe há séculos, talvez milênios, e não será esta troca de argumentos entre poetas em 2009 que dará por encerrado o debate, que continuará por novas gerações, sendo renovado a partir de cada novo contexto, que escolhe seu passado e os campeões mortos de suas posições. O que se pode fazer é elaborar os argumentos,
aclarar e fundamentar assertivas, entender de que maneira o debate funciona em nosso momento histórico presente, no início do século XXI, e quais consequências tem para o trabalho poético das próximas décadas, até que novos poetas assumam a querela infindável.

Não tenho a intenção de catequisar ou convencer poetas que defendam posições históricas contrárias, muito menos a ambição de acreditar que meu trabalho crítico vá encerrar estas questões. Minha busca sempre foi a de propor questionamentos, à espera de um debate coletivo. No momento em que assumi certa veemência na defesa de minha crença na historicidade do fazer poético, foi por sentir que um conceito tão equivocado como trans-historicidade, em minha opinião, vinha fundamentando poéticas, a partir dos anos 90, com implicações est-É-ticas extremamente questionáveis. Balanço em pêndulo entre a calma e a irritação, também quando poetas recorrem à argumentação da liberdade artística para deslegitimar este debate. A liberdade de criação de todo poeta precisa ser assegurada, seu direito à sua própria pesquisa formal. É legítimo que se queira salvaguardar a autonomia do poético e sua liberdade; porém, isto se manifesta muitas vezes como desculpa para os que simplesmente querem praticar a Literatura como jogo bem-pensante, esquecendo-se que os maiores poetas do passado jamais se abstiveram dos debates históricos de seu tempo, seja Calímaco questionando a atualidade da épica homérica em Alexandria, no século IV a.C.; Catulo seguindo em seus passos e atacando a poesia classicizante e verbosa de seu tempo; Cavalcanti trazendo para sua poesia algumas das questões científicas de seu século (veja o brilhante ensaio de Pound sobre o "Donna me prega") ou mesmo o próprio Pound e Stein em "nosso" tempo.

Ora, quando se trata de uma análise apenas formal ou artística de uma obra poética, talvez tudo resida no campo inofensivo das discordâncias de gosto e preferência. No entanto, em seu artigo "Poética da fé, poética do cepticismo", Érico Nogueira invoca Immanuel Kant contra a fragilidade do juízo de gosto, e tem toda a razão neste caso. O debate, contudo, está justamente neste dilema: o juízo de gosto, em sua subjetividade, parece frágil e passageiro, extremamente condicionado pelo indivíduo e sua relação com a coletividade; ao mesmo tempo, o juízo de valor, em sua suposta objetividade, foi posto em questão, acusado de mítico; esta é justamente minha posição, nada confortável: concordo que o mero juízo de gosto tem pouquíssima validade, mas também vejo a impossibilidade do juízo de valor objetivo, baseado em alguma essência poética atemporal, sem levarmos em conta as constricões históricas e individuais de cada poeta. Como escrevi no ensaio "O que é est-É-tica", ainda que haja realmente esta essência poética a garantir qualidade, o que permitiria um juízo de valor objetivo, ela é condicionada historicamente, a partir de cada leitura feita a cada novo momento histórico. Só conhecemos as encarnações históricas desta essência, o que nos impede de estabelecer padrões imutáveis, que possam estabelecer a qualidade de todo poema, escrito em qualquer língua, país ou momento.

Talvez a saída resida em uma aceitação de que a dicotomia entre o juízo de gosto, portanto subjetivo, e o juízo de valor, objetivo, precisa encontrar-se também em um debate constantemente renovado e renovável, sem a ambição de legislação infalível. Pessoalmente, creio ser possível objetividade na análise do projeto de um poeta, em seu uso das formas históricas, apenas em uma avaliação de seu trabalho, talvez não formal, mas o que gostaria de chamar de estrutural, levando em consideração, como já disse, a materialidade da linguagem e a função que sua forma escolhida assume no contexto histórico em questão. Assim, a subjetividade inescapável do crítico seria exposta de forma honesta e clara. Penso aqui na proposta de Wittgenstein sobre o sujeito como inescapável, mesmo na filosofia, já que "o mundo é, invariavelmente, `meu´ mundo." Contextualizar impede apenas a criação de leis gerais de apreciação poética, exigindo que o crítico, assim como o poeta, crie soluções individuais diante de cada problema ou debate poético-crítico, um verdadeiro problema para os preguiçosos das poéticas genéricas.

Aqui entra a "ideologia da percepção" de cada um. Um poeta como Érico Nogueira, com o que ele mesmo chama de "pendor de antiquário", e um poeta como eu, com meu "pendor de modernoso", como ele diria, acabamos por assumir posições aparentemente opostas, pois
ainda que tenhamos, talvez, juízos de valor parecidos, eles são condicionados por nosso juízo de gosto. Eu acabaria apenas por teatralizar esta oposição, se tomasse agora, para ilustrar a discussão, exemplos dentre as obras de minha preferência, de poetas como Hans Arp ou Kurt Schwitters, ligados a DADA, de poetas-performers como Henri Chopin e John Cage, ou opusesse os meus modernistas de escolha (como Gertrude Stein e Murilo Mendes), aos seus, como Constantino Cavafy e T.S. Eliot. Já escrevi sobre o que penso da atualidade est-É-tica dos poetas ligados a DADA em vários artigos e, com várias ilustrações, especialmente no texto "DADA: implicações e inseminações", uma das primeiras postagens da franquia eletrônica da Modo de Usar & Co.

Talvez seja mais esclarecedor se discutisse aqui, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, algumas das escolhas formais que, em minha opinião, ainda que sigam sendo usadas por poetas hoje em dia, pertencem na maior parte dos casos ao uso descontextualizado de soluções formais para problemas passados, de contextos mortos. Como já escrevi no ensaio "Ideologia da percepção": o desgaste das formas dá-se menos
pela hipertrofia do uso, do que pela atrofia do contexto em que surgiram.

Para que este texto não se alongue demais, e para seguir prontamente com a discussão, discutirei algumas escolhas específicas nas próximas postagens, iniciando o trabalho com a princesa das "formas fixas" no Brasil, o soneto, para tentar ilustrar a discussão.

§- Como discutir a validade est-É-tica e atualidade histórica dos sonetos?

Segundo minha perspectiva, a de que toda forma está ligada ao contexto histórico em que surgiu, espelhando de alguma forma a Weltanschauung de seu inventor ou praticante, em seu momento histórico, o mesmo poderia ser dito sobre o soneto, ainda que não possamos, sei bem, nos iludirmos com uma possível teleologia infalível em tais leituras. O que defendo, porém, é que o uso do soneto em nosso tempo precisa levar em consideração o momento
histórico em que vivemos, com o desenvolvimento poético da modernidade, sem insinuar aqui qualquer noção de evolução ou aperfeiçoamento.

É interessante como o soneto quase se transforma em sinônimo de "forma" no país. A sereia para os poetas brasileiros. Não se trata de uma solução formal particularmente
antiga. Ezra Pound, em seu ABC of Reading, propõe uma gênese cômica para ela, dizendo que provavelmente se tratara de um sujeito
que esgotara seu assunto a meio caminho de escrever uma canzone, como quem perde o fôlego antes da linha de chegada. De qualquer maneira, a forma teve praticantes ilustres, que propuseram aos leitores suas soluções para tal constrição formal, tomadas mais tarde como modelos de perfeição para os praticantes futuros. Aos que acreditam na suposta trans-historicidade do fazer poético, e crêem que cabe ao poeta, hoje, simplesmente escrever bons poemas, cuja qualidade será assegurada se puder equiparar-se aos mestres eleitos do passado, basta discutir "formalmente" cada soneto, tenha sido escrito em 1609 ou 2009, seguindo certos parâmetros fixos.

(Veja, por exemplo, a discussão de Antonio Cicero nos últimos tempos, para quem as vanguardas históricas não parecem ter passado de uma espécie de "afrodisíaco" para a tradição.)

Que parâmetros formais fixos são esses? Sua estrutura sonora e uso da rima, se segue Shakespeare em seu ABABCDCDEFEFGG, se trabalha com o hendecassílabo ou o alexandrino, se usa rimas surpreendentes e se há uma justeza de linguagem, evitando palavras desnecessárias, dizendo também algo interessante: ou seja, nosso velho amigo, o manejo
magistral da materialidade da linguagem, conformando-a às constrições do soneto como forma. Uma leitura formal, digamos, não se importando se estas escolhas têm quaisquer implicações est-É-ticas para o momento atual ou sequer se o momento atual importa para a apreciação "objetiva" do soneto em questão. Como discutir esta questão, porém, de maneira est-E-ticamente crítica?

Ora, muitos sabem contar de 1 a 14 e, com certa educação, aprendem a dominar ritmos e metros como o hendecassílabo ou o alexandrino, como notamos pela imensa lista de sonneteers do mundo ocidental, até os dias de hoje. Numa discussão formalista, importa simplesmente a eficiência e a graça (não me refiro ao humor, querido leitor) com que o poeta emprega a forma em todas as suas
constrições. O que me interessa, no entanto, é que após tal discussão formal seja feita, seja permitido discutir a função que a forma assume no trabalho do poeta e de que maneira esta se insere em seu contexto histórico. Não creio que seja necessário dizer que o soneto assume funções distintas quando empregado por Bruno Tolentino, Glauco Mattoso, Paulo Henriques Britto ou Érico Nogueira, para citar quatro exemplos de poetas que usaram a forma na última década. Vejamos quatro de seus textos:

(10 de outubro)
soneto de Paulo Henriques Britto

Até segunda ordem estão suspensas
todas as autorizações de férias,
viagens, tratamentos e licenças.
É hora de pensar em coisas sérias.

Deve chegar mais um carregamento
até o dia quinze, dezesseis
no máximo. Fui lá em Sacramento,
mas não deu pra encontrar com o tal inglês —

será que alguém errou o codinome?
Confere aí com quem organizou
o negócio todo. Bem, amanhã

a gente se fala, que agora a fome
está apertando. (Ah, o padre adorou
o canivete suíço de Taiwan.)

§

Para um tema que queima a língua
soneto de Glauco Mattoso

A cena culminante de "Laranja
mecânica", aos meus olhos, extrapola:
a língua se dobrando contra a sola
que a pisa, e que sadismo franco esbanja.

Nem que a tímida mídia se constranja,
as bandas fatalmente nessa bola
bastante vão chutar: ninguém controla
os ímpetos dum boy que a cena manja.

No entanto, as que pisaram no terreno
(Adicts ou Major Accident é pouco)
não foram fundo e fazem peso ameno.

Espero, ardentemente, que um mais louco
rockeiro, de pezão nada pequeno,
esmague com a bota um berro rouco.

§

Não quero já de novo ser banal
soneto de Érico Nogueira

Não quero já de novo ser banal:
"Ó sol etcétera", "ó mar", "ó céu".
O que pondero, o que lamento - é meu,
diz só respeito à praga do meu mal.
"Ainda assim vou ler esse animal?"
- perguntará, talvez, quem nada leu
além de blefe em quantos como eu
simulam diferir, simulam mal.
Os homens entre si mudam bem pouco;
gostam de azul ou gostam de vermelho,
ou têm o crânio cheio ou têm-no oco;
por isso mesmo, vá se olhar no espelho,
estando céu e mar e sol à parte,
quem pensa fazer sua, assim, a arte.

§

Lento, movendo na luz branca a majestade
soneto de Bruno Tolentino

Lento, movendo na luz branca a majestade,
a elegância do vulto, o cervo da Lapônia
cruza o fim do verão polar como a lacônica
exclamação crepuscular da eternidade.
Já não cabe mover-se com a mesma agilidade,
desapetece-lhe correr na luz agônica
que empalidece tão depressa e desmorona-
se-lhe entre a coroa agreste e o pinheiral. É tarde;
a lua vai morrer e nascer tantas vezes
da imensa solidão tentacular agora,
e o cervo imobiliza-se para a grande demora
na treva elementar, a habitação dos deuses;
e, lento, à contraluz, é uma estátua de cinza
excruciante: a última pétala agoniza.

§



As mesmas características, que atrairão um leitor aos sonetos de Britto e Mattoso, serão os motivos de repulsa, talvez, aos que preferem os de Tolentino e Nogueira. Não quero, com isso, criar dois pares de semelhanças. Os quatro poetas têm projetos que os ligam, mas são muito distintos entre si.

Em uma leitura formal, a irregularidade métrica do soneto de Paulo Henriques Britto incomodará e poderá ser usada contra ele, assim como seu uso de uma linguagem extremamente quotidiana para uma forma geralmente associada com o sublime. Criticar Britto por seu uso de uma linguagem quotidiana seria simplesmente criticá-lo por fazer exatamente o que quis fazer e não por fracassar em seu projeto. É necessário compreender seu projeto para poder avaliá-lo. A estratégia é claramente consciente, assim como nos sonetos mais marcadamente pornográficos de Glauco Mattoso. Não farei uma discussão puramente formal dos quatro sonetos, pois não é esta a discussão que nos interessa aqui. Gostaria de propor uma discussão funcional e contextual dos quatro textos, para tentar ilustrar, sem a ambição de esgotar o assunto em uma postagem eletrônica, o que venho tentando esclarecer.

Poderíamos dizer, à primeira vista, que os sonetos de Britto e Mattoso são os que mais demonstram consciência contextual para a função da forma do soneto. Um texto como o de Paulo Henriques Britto acaba por teatralizar, para chamar-nos a atenção, a fronteira sempre discutível entre forma e conteúdo, ao assumir uma linguagem de memorando para uma forma tão associada com o poético-sublime quanto o soneto. No soneto de Henriques Britto, não importa o que está sendo dito, mas sua relação com sua forma: neste caso, a própria forma do soneto assume significado. Tal efeito é até mesmo tratado com ironia no último verso do primeiro quarteto: "É hora de pensar em coisas sérias." O soneto segue, mencionando a chegada de outro carregamento (outro carregamento de sonetos infindáveis pelos tempos afora?) e mencionando a sacralidade da forma
("Fui lá em Sacramento / mas não deu pra encontrar com o tal inglês"... o soneto inglês ou o próprio Shakespeare?). Em um soneto como "(10 de outubro)", podemos claramente falar em forma (a escolha de Paulo Henriques Britto do soneto e da linguagem específica para ele), função (o fato de que a própria escolha da forma do soneto assume significância) e o contexto da ação: a escrita torna-se indissociável da referencialidade histórica de sua forma. O soneto é, de certa maneira, metalinguístico, sem que mencione, em qualquer momento, a palavra "poesia" ou "poema".

O mesmo efeito de "moralidade" parece surgir nos sonetos de Glauco Mattoso, especialmente nos sonetos "pornográficos". A estratégia poderia parecer-nos justamente a de inviabilizar com ironia a forma do soneto para o uso contemporâneo, mas o retorno constante dos dois poetas à forma não parece indicar tal intenção. Poderíamos ligar o trabalho de Glauco Mattoso ao de Augusto dos Anjos, de certa maneira, que encenou
a decomposição do formalismo parnasiano em sua linguagem escolhida para a forma do soneto. No caso deste soneto de Mattoso, a escolha da linguagem assume uma característica muito mais híbrida que a de Paulo Henriques Britto. A sintaxe é bem cuidada, ainda que use inversões antiquadas como "as bandas fatalmente nessa bola /
bastante vão chutar", usando também gírias como "roqueiro" e fazendo referência não à Alta Literatura, mas ao cinema, em um filme pop como Clockwork Orange, o filme de Stanley Kubrick baseado no romance de Anthony Burgess.

Quanto à estratégia de Paulo Henriques Britto, encontramo-la, antes dele, nos sonetos de Bertolt Brecht, pouco conhecidos no Brasil. Sempre me pergunto sobre esta tentativa de balanço entre o tosco e o sublime no trabalho de Paulo Henriques Britto, especialmente pela maneira como sua linguagem retorna ao "poético" e "sublime" líricos quando ele abandona a forma do soneto. O jogo de Britto passa a funcionar, portanto, no âmbito do literário, como uma poesia que referencia seus dilemas históricos. Uma discussão apenas formal de seus sonetos perderia de vista o jogo literário da referencialidade histórica das formas. O que me parece mais interessante seria discutir a validade deste jogo literário, e de que maneira ele pode interessar ao leitor que não pratica a poesia. O mesmo poderia ser dito do uso recorrente de Glauco Mattoso da forma. No caso dos sonetos de Mattoso, sem discutirmos o condicionamento biográfico do poeta, sua cegueira e portanto necessidade intrínseca de retornar a uma forma baseada claramente no ritmo e forma sonora, muito do interesse reside no choque da temática, encenando, como no caso de Paulo Henriques Britto, de certa maneira, a mesma invisível trincheira entre forma e conteúdo. No entanto, como Tolentino,
Mattoso pratica uma poética de excessos, pondo em xeque a noção creeleyca de que "form is never more than the extension of content", sem crer que cada poema exigirá uma solução formal específica, pois são dois autores que escreveram centenas e centenas de sonetos.

Entre estes dois autores e Bruno Tolentino, o soneto de Érico Nogueira parece mostrar o autor mais preocupado em encontrar uma maneira de usar a forma do soneto com consciência histórica, mas ainda assim levando-a "a sério", digamos, sem fazer dela pura referencialidade formal. Nogueira está claramente entregue à faina de produzir um texto que siga as constrições formais estabelecidas por poetas do passado, mas
demonstra consciência histórica ao fazer deste dilema, em grande parte, a sua temática. Nogueira sabe ser um poeta de parâmetros clássicos em um mundo que os pôs em xeque, e seu livro de estréia parece equilibrar-se entre o sarcasmo diante deste mundo e a self-deprecation por insistir em seus parâmetros de qualidade. Érico Nogueira é como um Hugh Selwin Mauberley não-arrependido. Em um mundo apaixonado pelo banal, e que parece dar-lhe verdadeira angústia (como sentimos em Tolentino, que a sublima constantemente crendo
fugir da História nas asas de uma poesia supostamente atemporal), Nogueira sabe que muitas das próprias formas poéticas tornaram-se banais, e quer recusar a atitude romântica que guiou, ele parece insinuar, muito da poesia modernista: "Não quero já de novo ser banal: / `Ó sol etcétera´, `ó mar´, `ó céu´." No entanto, não fica exatamente claro a quem Nogueira dirige sua irrisão: se ao mundo que se recusa a levar sua diligência poética a sério, ou a si mesmo, por insistir nela. A fé de Érico Nogueira e sua insistência em parâmetros de qualidade que poderíamos chamar de neoclássicos, vêm expressas nos últimos versos do soneto que se segue ao que aqui apresentamos, em seu trabalho de estréia, intitulado O Livro de Scardanelli (2008): "A boca antiga, então, se mostra hábil / para falar do que corrói o lábio."


Tolentino é o menos consciente do contexto histórico em que insere seus sonetos como práxis. A ideologia de Tolentino implica, claramente, uma noção de essência atemporal para a poesia, na maneira como o poeta evita qualquer indicador histórico em sua tessitura textual, criando um trabalho imagético sem grandes marcações temporais, uma linguagem que se quer pura e incontaminada de qualquer quotidianidade ou
historicidade. Se Tolentino for realmente um mestre da forma do soneto, como quer Érico Nogueira, que escreve, sobre o soneto reproduzido acima, que o "alexandrino de Bruno é sui generis: ele funde o clássico metro francês com uma dicção mais próxima da língua inglesa e as cesuras do dodecassílabo castelhano. Assim que pude perceber e compreender tamanha engenhosidade rítmica, vi-me às voltas com a própria substância da poiesis", esta será uma discussão bem menos objetiva do que quer meu caríssimo colega nascido em Bragança Paulista. Assim, estaríamos diante de uma suposta "substância da poiesis", que se manifesta em Tolentino, neste soneto em particular, na crença em uma linguagem pura, sem condicionamentos históricos, trazendo-nos o velho e hackeneyed tema da passagem do tempo, o "nothing golden stays", com a invectiva um tanto entediada de uma
nova certidão de óbito do civilizado, uma waste land de mais um início de século, criando um trabalho que, para meu gosto pessoal, mais parece a aquarela de um pintor domingueiro, kitsch onde o poeta sonha-se o sublime, com Tolentino aparentemente identificando-se com o pobre veado a passear no crepúsculo. Tolentino diz coisas já ditas tantas vezes, de forma tantas vezes já feita. Ora, mesmo isso
requer talento, de certa forma, e não me incomodo tanto com os que vêem algo de importante em um trabalho como esse. Se Tolentino atinge alguma maestria formal, é apenas em um caráter extremamente tecnicista, numa discussão que toma a forma como ferramenta. Sim, ele sabe colocar as rimas no lugar certo, usando belas palavras com os acentos nos lugares adequados e cria realmente uma tessitura sonora quase interessante, não tanto nas rimas entediantes, mas na sonoridade
interna do texto, em momentos raros como "Lapônia/polar" ou "desapetece/empalidece/depressa". Talvez este seja um juízo de gosto, que Nogueira atacaria usando Kant, já que a ele o soneto parece tão importante, estabelecendo-o como parâmetro para o seu próprio trabalho poético, trabalho que é tão mais interessante que o de Tolentino.

Bruno Tolentino é claramente, em minha opinião, um poeta que confunde o poético com o dizer belo, que passa a receber o suporte, ainda, de formas históricas tidas como sublimes, sem qualquer influência ou implicação histórica. A própria escolha do vocabulário de Tolentino denuncia tal atitude, baseando-se marcadamente em
substantivos como "majestade/eternidade", estas rimas praticamente burlescas. As implicações est-É-ticas da prática de Tolentino são várias, e serão vistas de forma diferente por cada poeta e crítico, dependendo dos condicionamentos de sua ideologia da percepção. Não mencionarei, por exemplo, a associação de Tolentino entre o poético e o aristocrático, da qual parece compatilhar Érico Nogueira, pois discuti-la exigiria uma trincheira mais propriamente política, o que gostaria de evitar aqui, para não colaborar com os que estão se empenhando em NAO entender este artigo. Deixo apenas anotada a minha discordância veemente desta posição de Tolentino e Nogueira, sem que isso implique minha defesa do popularesco ou do fácil.

Aquilo de que mais discordo em Tolentino é a maneira como creio que sua poesia pode ilustrar, como exemplo, o uso completamente descontextualizado das formas
históricas, sua visão da tradição como uma caixa de ferramentas, da qual pode retirar qualquer forma, a qualquer momento, sua crença óbvia na linguagem poética como pura e separada de qualquer outro uso da linguagem, tudo isso usado em uma poesia que raramente diz qualquer coisa realmente nova, que já não tenhamos ouvido outras centenas de vezes em outros textos, talvez por sua crença de que o poético envolva
dizer "coisas belas e profundas". Obviamente, minhas idéias de "materialidade da linguagem" e as de Bruno Tolentino não coincidem, e sei que Érico Nogueira
discordará com veemência, a quem os sonetos recentes de Bruno Tolentino apresentam novidade de apresentação e estrutura.

No entanto, afirmaria que os quatro autores praticam uma poesia que precisa ser compreendida como jogo literário e contextualizada em sua relação com a tradição. Isso poderia também ser usado como invectiva.

O único soneto, entre estes quatro aqui apresentados, que realmente falha em segurar minha atenção e interesse, é o de Bruno Tolentino. A pesquisa de Paulo Henriques Britto, Glauco Mattoso e Érico Nogueira parecem-me bastante interessantes, ainda que discorde da maneira como dependem de uma diálogo tão marcado com a referencialidade da "tradição", fazendo com que sejam pesquisas fortemente "literárias".

A mim o soneto interessa, em seu momento histórico de validade, antes da modernidade, não apenas pelos exemplos de maestria formal que acumulou. Interessa também discutir que forma de arcabouço cultural fundamentou sua prática. Eu diria,
em minha idéia de contextualização histórica para esta forma específica, que sua forma fundamentava-se em uma época que cria na simetria entre os elementos do Cosmos, para homens e mulheres sobre os quais a Máquina do Mundo ainda pairava sobre os crânios, crença espelhada, no caso da forma do soneto, em seus quatorze versos simétricos (o sete como número da perfeição, ainda que isto vá soar como numerologia a alguns)
e uma crença historicista na teleologia da salvação cristã, a parúsia, o encaminhar-se da História para um fim que estabeleceria o significado de todas as coisas, o encerramento dos séculos em uma chave de ouro, a diminuição do tempo em seu futuro encerrar-se, encarnando-se na forma simétrica e decrescente do soneto. Neste aspecto, a rima não é apenas uma prática ou técnica para conferir beleza sonora a um texto, mas fundamenta-se na crença na ligação secreta entre todos os elementos do cosmos, encontrando na linguagem sinais, placas que indiquem ao homem o caminho a esta ligação cósmica. O soneto implica a fé na equivalência natural de todos os elementos. É este aspecto filosófico e est-É-tico que encontramos nas rimas de Dante Alighieri, William Blake ou Murilo Mendes.

Estas crenças entraram em colapso no mundo contemporâneo, dando preferência
ao aleatório contra o fechado. Processo contra o produto, pois forma, em nossos dias, passa a ser entendida como fluxo. A isto chamo um exemplo de est-É-tica, a esta compreensão da implicação histórica de uma prática e sua ligação com o tempo presente, sem a qual um poema encontra sempre e tão-somente ouvidos moucos. Não discordo do uso do soneto por já haver milhares deles, mas porque ele já não mais significa uma relação intrínseca entre texto e contexto.

Este artigo se estendeu demasiado para uma postagem eletrônica. Sigo com a discussão de outras formas e suas implicações em uma outra postagem. Encerro-o, porém, com o último disclaimer deste capítulo de disclaimers: não compreenderemos jamais um texto, se não o analisarmos em seu contexto, para então aprender com ele algo de útil e belo para o nosso.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Sim ao crônico dia

Quando o debate contemporâneo aborda a historicidade do fazer poético, é bastante comum que se mencione a famosa querelle des anciens et des modernes, debate travado entre os literatos da Academia Francesa, no século XVII. O poeta Érico Nogueira, em seu artigo "Encore la querelle des anciens et des modernes", respondendo ao meu "O que é est-É-tica", chega a chamar nosso debate atual de "reedição" da polêmica. Não é a primeira vez que a "querela" surge neste contexto, debate em que tenho tentado participar ativamente. Eu mesmo, no ensaio "De figurinos possíveis em um cenário em construção", discuto e questiono o influente texto de Haroldo de Campos da década de 80, base teórica fundamental para os poetas brasileiros que têm defendido e criado sob a égide da "trans-historicidade", intitulado "Da morte da arte à constelação: o poema pós-utópico", no qual Campos toma a discussão de Hans Robert Jauss sobre a querela e sobre o conceito de modernidade como exemplo de "diacronia" crítico-histórica nos estudos literários. Voltarei à minha crítica ao ensaio de Haroldo de Campos, que passei a chamar de "manifesto", mais tarde.

Segundo Fredric Jameson, no interessante A Singular Modernity: Essay on the Ontology of the Present, a querela francesa entre os defensores dos parâmetros depreendidos dos clássicos e os defensores do recontextualizar constante do moderno teria sido o primeiro momento em que a estética literária se viu confrontada pela questão de sua historicidade. Mais uma vez, o debate sobre diacronia e sincronia históricas na crítica literária parece fazer-se incontornável.

Jameson inicia sua discussão sobre o conceito de modernidade, assim, justamente afirmando sua "antiguidade", propondo que a dualidade entre modernus e antiquas começaria a ganhar seu tom antitético a partir dos escritos de Cassiodoro (490 - 581 a.C.), iniciando então a distinção entre novus e modernus, da qual herdamos uma das questões que parecem nos ocupar em nosso debate atual: se o novo e o moderno pressupõem-se. Não é necessário, eu creio, mencionar aqui o motto modernista de Pound: Make It New.

Na discussão empreendida por Jameson, o mesmo texto de Jauss discutido por Haroldo de Campos volta a aparecer, no entanto, não como exemplo para a instituição da dicotomia fictícia entre alguma noção pura de diacronia e sincronia, mas para questionar, precisamente, a possibilidade de instituir tais categorias antitéticas absolutas. Discutindo as noções de "cíclico" e "tipológico" no estudo de Jauss sobre o conceito de modernidade, Jameson escreve:

"... when we look at the opposition more closely, its two poles seem to vanish into each other; and the cyclical proves to be fully as typological, in this sense, as the typological is cyclical. The distinction is therefore to be reformulated in another, less evident way: in reality, it involves a kind of Gestalt alternation between two forms of perception of the same object, the same moment in historical time. It seems to me that the first perceptual organization (the one identified as `cyclical´) is better described as an awareness of history invested in the feeling of a radical break; the `typological´ form consists rather in the attention to a whole period, and the sense that our (`modern´) period is somehow analogous to this or that period in the past. A shift of attention must be registered in passing from one perspective to the other, however complementary they may seem to be: to feel our own moment as a whole new period in its own right is not exactly the same as focusing on the dramatic way in which its originality is set off against an immediate past."
Fredric Jameson, A Singular Modernity: Essay on the Ontology of the Present (London: Verso, 2002)

Uma das melhores formulações que eu, pessoalmente, já li sobre a impossibilidade da instituição das categorias de diacronia e sincronia como antíteses absolutas está no livro Infância e História, de Giorgio Agamben. Elaborando seus conceitos de "ritual" e "jogo", Agamben os apresenta, em suas palavras, como máquinas para a transformação de diacronia em sincronia e vice-versa. É o ínício de seu argumento em defesa de uma visão que apresente diacronia e sincronia como focos, entre os quais as sociedades humanas constróem suas curvas hiperbólicas. Ele escreve:

"Se as sociedades humanas apresentam-se nesta luz como um único sistema atravessado por duas tendências opostas, um deles operando para transformar diacronia em sincronia e o outro impelido ao movimento contrário, o resultado final do jogo entre estas tendências - o que é produzido pelo sistema, pela sociedade humana - é em todo caso uma margem diferencial: história; em outras palavras, o tempo humano."
Giorgio Agamben, Infância e história.

E, ainda nas palavras de Agamben, vem formulado com clareza meridiana algo do que me tem ocupado em todo o meu trabalho crítico, em minha tentativa de borrar certas dicotomias: "Mas a instância precisa como uma interseção de diacronia e sincronia (a presença absoluta) é um mero mito, de que a metafísica ocidental lança mão para garantir a continuação de sua própria concepção dual do tempo. Não se trata apenas - como Jakobson demonstrou para a linguística - de que sincronia não pode ser identificada com o estático ou diacronia com o dinâmico, mas que o evento puro (diacronia absoluta) e a pura estrutura (sincronia absoluta) não existem. Todo evento histórico representa uma margem diferencial entre diacronia e sincronia, instituindo uma relação de significado entre elas."

Da maneira como este debate tem sido travado no Brasil, diacronia passa a ser identificada com o processo histórico linear, enquanto críticos e poetas associam a sincronia com uma espécie de fuga ou abolição da história, sendo que esta história só pode existir como jogo entre as duas tendências perceptivas. Reside aí uma das falácias do ensaio/manifesto de Haroldo de Campos e da maneira como ele passou a ser usado por poetas interessados em reiterar a ideologia modernista da autonomia do poético: subrepticiamente transformar o conceito de sincronia no de trans-historicidade, que passa a ser oposto, de forma dualista, ao de diacronia, como categorias absolutas. É divertido observar que o próprio texto de Haroldo de Campos, em sua narrativa histórica, poderia ser tomado como exemplo de uma visão crítica de tendência diacrônica, em sua argumentação de que até certo momento (os anos 60) toda a poesia seguia uma única ideologia, e que, a partir de um determinado momento, que ele chama de colapso da ideologia utópica nos anos 60, toda a poesia passa a, homogeneamente, seguir outra tendência.

Ainda que quiséssemos, não nos seria possível escrever crítica literária puramente diacrônica. Há dois únicos seres capazes de escrever uma história da Literatura a partir da diacronia: Deus e Funes, o memorioso. O que nos resta é a sincronia tal qual esta se manifesta na crítica literária: a seleção que cada geração permite-se fazer daquilo que lhe parece útil e necessário na tradição, no passado. A maneira como cada momento presente parece poder escolher seu passado, como as práticas artísticas de uma época retrabalham os conceitos de outros tempos, lançando-os ao foco de outras luzes. Já propus que a diacronia passa a fortalecer-se, na relação com nossa seleção sincrônica da tradição, quando uma seleção passada se engessa e passa a ser tomada como lei.

Aqui entra a discussão também política da questão, pois se nos resta simplesmente a possibilidade de seleção, somos imediatamente obrigados a perguntar sobre os mecanismos de poder que regem esta seleção para a narrativa histórica, fazendo com que entendamos a sincronia de uma forma menos ingênua, pois seleção e instituição implicam hegemonia.

No entanto, para os defensores de parâmetros universais e eternos, é justamente difícil aceitar o que há de transitório nestes parâmetros est-É-ticos. Pois, se a sincronia nos permitisse algum tipo de fuga da História, seria na destruição do cânone como herança transmissível em pedra-lei, propondo o esquecimento constante e recriação a cada geração. Porém, os neoclassicistas sonham com o movimento impossível e contraditório de parâmetros que, ao mesmo tempo, possam estabelecer e abolir a História.

Em seu artigo, Érico Nogueira afirma que a própria querelle des anciens et des modernes francesa não seria a primeira edição de nosso debate, mencionando Platão e sua crítica à paidéia homérica, assim como os poemas de Hesíodo. Se o nascimento do debate deu-se com Platão ou Hesíodo será uma questão de perspectiva, mas o debate certamente parece ter se transformado e repetido ao longo dos tempos, pois não poderíamos ver algo desta "polêmica" em Calímaco e sua crítica ao uso dos parâmetros épicos de Homero como antiquados para a sua própria época (o século IV a.C.)? Tal querela não renasce 3 séculos depois, com os neoteroi, dos quais apenas a obra de Catulo sobrevive, em sua querela com Cícero e com os classicistas de seu tempo?

Essas querelas, porém, de maneira nenhuma significaram para Calímaco ou Catulo o abandono completo da tradição. Quanto aos contextos históricos que transformam e condicionam o debate a cada reedição, é interessante notar que Catulo escreve sua lírica altamente individual, com uma poética baseada no quotidiano de sua vida em Roma e Verona, nos últimos anos da República. Com o surgimento do Império e seus delírios absolutistas de eternidade, a poesia que passa a ser apreciada e praticada é a de Virgílio, com sua épica antiquada, e o (belíssimo) retorno ao tempo mítico em Ovídio.

Que significado tem essa repetição constante do debate, ao longo dos tempos, entre os defensores de parâmetros baseados nos resultados dos mestres do passado, e os que acreditam que as soluções apresentadas por esses mestres eleitos indicam caminhos para novas soluções, mas não necessariamente uma receita e bula para a perfeição?

O que parece ocorrer repetidamente é um debate entre duas tendências críticas:

§- de um lado, há os poetas que acreditam na autonomia do poético perante a História e suas convoluções recorrentes. Para estes poetas, a tradição seria uma espécie de caixa de ferramentas acumulativa, da qual o poeta pode tomar "formas" para seu uso pessoal, que se faz funcional em qualquer momento histórico, tendo sua validade estabelecida e seus parâmetros de qualidade assegurados pela maestria de poetas anteriores.

§- por outro lado, temos os poetas que acreditam que as formas acumuladas pela tradição seriam soluções apresentadas por poetas para problemas específicos e condicionados por seus momentos históricos, e que estas técnicas formais servem aos poetas contemporâneos (em cada momento, seja o último século antes de Cristo ou 2009) como processos e procedimentos, dos quais podem aprender se souberem a que perguntas estas formas apresentam-se como respostas, exigindo que dominem a forma e conheçam o contexto em que surgiram.

Portanto, aqui reside parte de minha discordância quanto à resposta de Érico Nogueira, por exemplo, mas também o ponto em que podemos procurar atingir maior clareza de propósitos. Voltemos ao seu texto:

"Mutatis mutandis, decrépito e sem propósito, hoje, é poema-piada, é vanguardismo besta, é poesia concreta après la lettre; e o difícil, hoje como sempre, é fazer algo que presta, algo realmente relevante AO MOMENTO EM QUE SE VIVE, quer se trate de um poema mais `antiquado´, ou mais `modernoso´.
Como o Borges de Formas de una leyenda, por fim, sou dos que pensam que as questões fundamentais, as que realmente importam, se repetem quase que sem mudança ao longo do tempo; e que a poesia, a despeito de uma ou outra variação de media e de técnica -- sempre superficial --, continua a ser da alçada do improvável, do maravilhoso. Portanto do aristocrático."

Érico Nogueira, "Encore la querelle des anciens et des modernes"

Há vários fatores em operação aqui. É interessante notarmos aquilo que chamo de "ideologia da percepção" em funcionamento, ao observarmos os exemplos de Érico Nogueira. Sendo Érico professor de Letras Clássicas e autor de uma coletânea como O Livro de Scardanelli, é natural que seus exemplos negativos sejam retirados dentre os que ele chama de "modernosos e vanguardistas", atacando também os praticantes do "poema-piada e poesia concreta après la lettre". Se eu estivesse escrevendo o texto, provavelmente citaria os produtores de sonetos petrarquistas em pleno século XXI ou algo do gênero. Mas isso não iria muito além do anedotário e não importa aqui. O ponto principal, e do qual não discordo, é que o difícil sempre foi e sempre será fazer algo relevante, algo que presta. Mas é justamente esta a discussão, o debate, a querela, que parece reiterar-se contínua e infindavelmente desde Platão, segundo Nogueira, passando por Calímaco, Catulo, ganhando corpo teórico entre os literatos franceses do século XVII: como saber o que presta? Como saber o que é relevante?

Voltamos aqui ao problema inicial. Para muitos poetas, basta voltarmos aos mestres do passado, aprender com eles suas técnicas, emulá-los. Para outros, não se trata de emulação, mas de aprendizagem de métodos.

Quem está com a razão?

Talvez seja possível apenas analisar casos específicos. É o que pretendo fazer na próxima postagem.

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