segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O frio e os poemas traduzidos que nos sustêm

A temperatura no Berlimbo, este fim-de-semana, oscilou entre -15 e -20°C. O aquecimento a carvão não torna a vida muito fácil. Passei o tempo entre o porão, enchendo o balde de carvão, o forno do quarto e as cobertas, lendo ensaios de Georges Battaille e de Fredric Jameson. Quando os dedos endurecem, glamourizo a situação, pensando nas histórias sobre Pound em Londres, num quarto-cubículo, morrendo de frio lá pelos idos de 1912, ou Beckett em Paris, lá pelos idos de 1938, na mesma situação. Sortuda era Gertrude Stein, que era rica.

Essa manhã, antes de usar a "estratégia cebola", que consiste em cobrir-me com o maior número de camadas possíveis de malhas e lãs, tomei a primeira xícara de café do dia na cozinha, lendo o chileno Enrique Lihn (1929 - 1988) e traduções para o inglês dos poemas finais do poeta tcheco Miroslav Holub (1923 - 1998). Em certo poema, Lihn escreve:

“Todas las lenguas extranjeras
me inspiran un sagrado rencor”


Como acabava de ler traduções de poemas tchecos, sabendo que jamais poderei ler aqueles textos no original, pensei imediatamente em todos estes territórios desconhecidos, que permanecerão desconhecidos. É claro que Lihn fala aqui como poeta, mas naquele momento, à mesa da cozinha, com o livro de Holub ao lado, pensei primeiramente nas consequências disso como leitor e só então como poeta.

Pensei em quantos poetas tiveram impacto sobre minha vida e sobre a minha escrita, mas através de traduções. Penso, por exemplo, em Constantino Cavafy (1863 - 1933), o grego (gigante delicado) que li pela primeira vez nas traduções de José Paulo Paes e passei, mais tarde, a ler em todos as línguas que podia. Auden chegou a escrever que uma das características mais impressionantes de Cavafy é como sua poesia apodera-se de qualquer língua em que seja traduzido. Ele afirma que se pode reconhecer a linguagem do poeta grego em qualquer língua. Creio que Auden insinuava, não que os poemas de Cavafy fossem traduzidos para línguas estrangeiras, mas que as línguas estrangeiras é que eram traduzidas para os poemas de Cavafy.

O espelho da entrada
Constantino Cavafy

À entrada da mansão
havia um grande espelho muito antigo,
comprado pelo menos há mais de oitenta anos.

Um rapaz belíssimo, empregado de alfaiate
(e nos domingos atleta diletante)
estava ali com um pacote.

Deu-o a alguém da casa, que o levou para dentro
com o recibo. O empregado do alfaiate
ficou sozinho, à espera.

Acercou-se do espelho e mirou-se
para ajeitar a gravata. Após cinco minutos,
trouxeram-lhe o recibo e ele se foi.

Mas o antigo espelho, que vira e revira
nos seus longos anos de existência
coisas e rostos aos milhares;
mas o antigo espelho agora se alegrava
e exultava de haver mostrado sobre si
por um instante a beleza culminante.


(tradução de José Paulo Paes)


Durante algum tempo nutri a vontade e esperança de aprender polonês, por causa do impacto que alguns poetas daquela língua tiveram sobre mim quando lidos em tradução. Na verdade, esperava passar alguns anos em Berlim e seguir mais tarde para Varsóvia ou Cracóvia, para aprender a língua em que escreveram poetas como Zbigniew Herbert, Wislawa Szymborska e Tadeusz Różewicz. Confesso não me interessar muito pelo mais famoso deles, Czesław Miłosz. No entanto, Herbert e Szymborska, principalmente, são poetas que leio sempre e muito, com um prazer imenso, e que tiveram um verdadeiro impacto sobre mim. Já escrevi aqui sobre o poema "Autotomia", o poema da holotúria, de Szymborska. Tenho a obra completa de Zbigniew Herbert em tradução para o inglês, além do impressionante livro Pan Cogito (Senhor Cogito), em tradução para o alemão. É uma tragédia que sua poesia não seja traduzida no Brasil, com exceção de alguns poemas, traduzidos por Aleksandar Jovanović e publicados no importante Céu vazio: 63 poetas eslavos (São Paulo: Hucitec, 1996). Foi ali que li, por exemplo, o incrível "Relato de uma cidade sitiada", de Herbert. O professor Jovanović traduziu ainda uma bela antologia de Vasco Popa, publicada pela editora Perspectiva. Há ali alguns belos ciclos, como o que dá nome à antologia, "Osso a osso", assim como aqueles poemas que Haroldo de Campos viria a chamar de exemplos de um "coisismo ontológico", que ligaria Popa mais a Ponge que a Cabral ou Williams.

Trepadeira
Vasco Popa

Filha mais doce
Do verde sol subterrâneo
Fugiria
Da barba branca da parede
Se ergueria em plena praça
Vórtice envolto em sua beleza
Com sua dança-de-serpente
Fascinaria tempestades
Mas o ar de amplas espáduas
Não lhe estende as mãos


(tradução: Aleksandar Jovanovic)

É justamente esse "coisismo ontológico" que me parece uma característica fascinante e que sinto flagrar em muitos poetas do Leste Europeu. O poema da holotúria, de Szymborska é um exemplo muito bom. Em tudo o que contemplam, é como se vissem sempre o destino que "a coisa" compartilha com os homens. Na Berlim que é porta entre o Leste e o Oeste do continente, Bertolt Brecht viria a escrever em seu "Psalm", ao contemplar os animais, sobre nosso destino comum, vendo "esses que vão morrer também".

Como se o vale da sombra da morte não fosse paisagem, mas multidão e companhia.

Alguns veriam isso como o vício de antropomorfizar tudo a nosso redor, ou a crença romântica de que a natureza teria lições de moral a ensinar.

Seja o que for, alguns poetas do Leste europe parecem-me mestres nessa prática. No volume de Miroslav Holub que estava lendo essa manhã, há um belíssimo poema chamado "Universe of the mouse", em tradução de David Young:

Universe of the mouse
Miroslav Holub

Amphora of darkness, Hittite grain
still fertile, black background music
of the earth. Cathedral marked by urine.
Memorial droppings like elementary particles.

The heart beats from fright to fright.

Inside, small armoured worms
and mutations of the chromosome 11.
Well above the chorus of bats,
some Jupiter, four-legged, foggy,
the cogwheel of certitude.

He will not suffer our delicate fur to shed,
He will not suffer our spines to snap.
And when our Gracious Lady teeth
grind in the negligible second
of our death

and our small sooty eye, like
the dull eyeball of a crucified man,
mirrors Primeval Sludge, Eternal Dormition,

in a solemn voice He will answer a question
that nobody asked.


(translation by David Young)


Provavelmente, jamais poderei ler esses poemas no original, o que torna o trabalho de tradutores competentes algo imprescindível, essencial, maravilhoso, a quem sou grato, grato, grato.

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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Ao vosso serviço, trobairitz

A morte de Lhasa de Sela no primeiro dia deste ano desencadeou em mim, novamente, aquela espécie de resquício de amor cortês que sobrevive em minha poeticidade, como se um bloco daquele oxigênio, lá dos idos de 1150, ar anterior à Grande Peste (refiro-me à bubônica, não à Renascença), tivesse ficado congelado em algum lugar até entrar por minhas narinas. Tenho ouvido os poemas líricos da finada donna, que até no nome soava como trobairitz, sonhando com o retorno da hegemonia crítica que dê atenção às nossas trobairitz contemporâneas. Já escrevi aqui sobre minha obsessão por Kate Bush, uma das minhas guias para uma pesquisa poética contra o bongostismo das hierarquias entre alturas e baixezas culturais. Sigo crendo que "Sat in the lap" é um dos mais belos e perturbadores poemas (como todo o álbum The dreaming, de 1982, mesmo ano de A obscena senhora D, de Hilda Hilst) líricos daquela década. Ainda quero um dia escrever sobre o poema lírico "Get out of my house", de Kate Bush, com sua figura da mula, à luz da presença dos porcos na obra de Hilda Hilst. O machinho literato e apolíneo que quiser competir com isso, sinta-se à vontade:


(Kate Bush, "Get out of my house", do álbum de poemas líricos e sonoros The dreaming)

Publiquei um artigo na Modo de Usar & Co. sobre Lhasa de Sela, apresentando-a como poeta lírica, como herdeira de Safo de Lesbos, dos troubadours e das trobairitz medievais, com minha tradução/reescritura para o poema "Rising". No artigo, insisto em minha crença de que a separação hierárquica entre escrita e oralidade foi uma construção ideológica, que teve sim consequências bastante práticas e reais sobre a tradição poética, desde o Renascimento até Mallarmé, que é o coroamento da poesia como Literatura, mas que subsiste numa clave de hegemonia crítica. A população do mundo, porém, seguiu atenta aos poetas orais e aos trovadores, que não desapareceram por completo. Já tratei disso em artigos sobre Arnaut Daniel, Beatriz de Diá, David Bowie e Joanna Newsom, que podem ser encontrados na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co.. Herança de Safo de Lesbos, que passaria por poetas como o grego Calímaco e o latino Catulo, que trabalharam basicamente com a textualidade gráfica e, mais tarde, a partir da herança da poesia árabe, acaba sendo retomada como escrita e performance, ainda que de maneira transformada e distinta, pelos troubadours e trobairitz occitanos. Essa tradição oscila entre a Literatura e a performance ao longo dos séculos, atingindo harmonia e equilíbrio em seus momentos mais altos, como nas obras de Arnaut Daniel e Bernart de Ventadorn.

Fragmento de Safo

Eis as cinzas de Timas: morta pouco antes de casar-se,
Perséfone a acolheu em seu quarto sombrio.
Assim que ela morreu, as amigas, tão jovens quanto ela,
cortaram-se os cabelos com ferro afiado.


(tradução de José Paulo Paes)

A música e voz de Safo perderam-se. Restou sua textualidade gráfica, que sobrevive como Literatura, mas com o fantasma de seus sons pairando na derme do texto. No caso dos poetas medievais, sobreviveram em muitos casos os textos e suas composições musicais, mas continuamos a vê-los como Literatura apenas. Graças a certos estudiosos, podemos hoje saber aproximadamente o que era a sextina de Arnaut Daniel:


(Performance de Thomas Binkley para a sextina de Arnaut Daniel, "Lo ferm voler qu'el cor m'intra")

Sextina, letra de música e literatura ao mesmo tempo. Poderemos algum dia voltar a esta harmonia, este equilíbrio?

Poetas líricas contemporâneas como Kate Bush, Patti Smith, P.J. Harvey, Chan Marshall e Joanna Newsom estão ligadas a esta tradição, que incluía entre os troubadours as trobairitz, como Beatriz de Diá, a única de quem temos texto e música:


(Performance de Montserrat Figueras para a canso de Beatriz de Diá, "A chantar m'er de so q´ieu no voldria")

Essa tradição sobrevive e desagua tanto em Hilda Hilst como em Chan Marshall aka Cat Power:

Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.


(Hilda Hilst, Júbilo Memória Noviciado da paixão, 1974)



(Chan Marshall aka Cat Power, "Nude as the news", do álbum What would the community think, de 1996)


Há mulheres hoje que sabem muito bem que estão ligadas a esta tradição, chegando a ser quase intransigentes nesta escolha, como Joanna Newsom demonstrou em seu último álbum de poemas líricos, intitulado YS (2008):



A escrita de um texto como "Sawdust and diamonds", de Joanna Newsom, parece-me superior à de muitos literatos em atividade no mundo de hoje. Talvez permaneça um mistério como a voz pode doar tamanho poder a um texto que, sozinho, não teria este poder, como é o caso de "Strange fruit", um belo exemplo de como a performance de um poeta doa poder a um texto. Nesse caso, Billie Holiday transforma o texto, fazendo com que este vídeo, desta performance específica, substitua para sempre o texto:


(Billie Holiday, "Strange fruit", texto talvez literariamente fraco de Abel Meeropol, que se transforma em gigante na voz de Holiday)

No artigo sobre Lhasa de Sela, trabalho com seu poema "Rising":

Rising
Lhasa de Sela

I got caught in a storm
And carried away
I got turned, turned around

I got caught in a storm
That's what happened to me
So I didn't call
And you didn't see me for a while

I was rising up
Hitting the ground
And breaking and breaking

I was caught in a storm
Things were flying around
And doors were slamming
And windows were breaking
And I couldn't hear what you were saying
I couldn't hear what you were saying
I couldn't hear what you were saying

I was rising up
Hitting the ground
And breaking and breaking

Rising up
Rising up







Ascendendo

Fiquei presa numa tormenta
E fui carregada pelo vento
Fui desviada, desviada

Fiquei presa numa tormenta
É o que me aconteceu
Por isso não liguei
E você não me viu por um tempo

Eu estava ascendendo
Atingindo o chão
E trincando e trincando

Eu fiquei presa numa tormenta
Coisas voavam por todos os lados
E portas fustigavam-se
E janelas quebravam-se
Eu não podia ouvir o que você dizia
Eu não podia ouvir o que você dizia

Eu estava ascendendo
Atingindo o chão
E trincando e trincando

Ascendendo
Ascendendo

(tradução/reescritura de Ricardo Domeneck)

E escrevo no artigo: Transcrevê-lo, com uma tradução/reescritura, tem a função de acompanhar a performance de Lhasa de Sela. Poderíamos ligá-la à tradição do trobar leu em suas composições originais, mas Lhasa de Sela trabalhava também como jongleur, ou o que hoje chamaríamos de intérprete.

O debate no Brasil entre literatura e oralidade, poesia escrita e poesia cantada é em geral bastante equivocado, ou no mínimo tendencioso. Ao transcrever um texto oral para a página, esperamos que ele funcione como Literatura. É uma expectativa legítima, mas não podemos nos esquecer que um poema lírico ou oral não tem obrigação de funcionar também como Literatura. Sabemos muito bem que, ao se afastar da oralidade, passamos a ter poemas escritos que também não funcionam bem em oralizações. Aí flagramos a hegemonia crítica que ainda impera, instituindo uma hierarquia, pois não se espera do poema literário que este funcione como poema oral, mas se espera do poema oral que este funcione como literatura. É claro que não podemos perder de vista o trabalho dos grandes poetas, que atingiram a harmonia de criar textos tão absolutamente tesos que sobreviveram por séculos como literatura, mesmo que tenham sido compostos para a voz, como é o caso dos poemas de Safo de Lesbos e Arnaut Daniel. Ou nos esquecemos que seus textos são "letras de música"? A escolha de nossos adjetivos já denuncia nossa est-É-tica. A busca de poemas "densos" e "concretos" demonstra uma perspectiva mais calcada no visual e na escrita. A busca de poemas "tesos" nos daria poemas que funcionam na página e na boca. Exponho aqui, obviamente, a minha est-É-tica e ideologia pessoais, tão parciais como a de qualquer outro.

A separação crítica entre escrita e oralidade teve efeitos extremamente negativos para a nossa tradição poética, ao fazer com que os poetas orais descuidassem da escrita, perdessem qualidade textual em seus poemas, assim como fez com que os poetas-escritores fossem perdendo cada vez mais o contacto com seu público, fechando-se em si, compondo textos que não podem sair da página mesmo que quisessem, fazendo literatura de literatura para literatos.

No entanto, há obviamente pesquisas que exigem o trabalho visual e literário apenas. Da mesma maneira, há pesquisas que exigem apenas a voz. É possível julgar um poema como "Rising" em seus aspectos literários, de escrita. Mas isso perderia e excluiria a imensa qualidade poética de sua textualidade vocal e sua concretude sonora e nos daria resultados críticos parciais. Eu poderia aqui ligar a escrita de Lhasa de Sela, em um poema como "Rising", à de outros poetas norte-americanos, como por exemplo Lorine Niedecker, Robert Creeley ou Rae Armantrout. Mas eu prefiro pensar a textualidade de Lhasa de Sela nos termos da tradição do trobar leu e de poetas como Heinrich Heine, um autor alemão que manteve em sua escrita uma ligação clara com a oralidade. Não é à toa que seu livro mais famoso (e extremamente popular na Alemanha até hoje, mesmo entre os que não leem poesia) chama-se Buch der Lieder, ou seja: livro das canções.

"Rising" está entre os poemas líricos que mais me emocionaram em 2009. Aqui poderíamos entrar noutra discussão: enquanto os poetas contemporâneos continuarem a repetir o mito romântico (e desesperado) da "poesia que não serve para nada", não vejo alternativas para obter um público leitor. A poesia obviamente é "inútil", como queria Paulo Leminski, se a pensamos no contexto utilitarista de um sistema capitalista e de uma sociedade de consumo. Mas isso não significa que a poesia não tenha várias possíveis e legítimas funções, funções que teve, de qualquer maneira, pelos séculos dos séculos. O medo do "subjetivo" e do "emocionado", que tanto se pregou a partir de João Cabral de Melo Neto e do grupo Noigandres, levado às últimas consequências e unido ainda a uma leitura tendenciosa do conceito de "função poética" de Jakobson, gera talvez esta situação em que nós poetas acabamos escrevendo textos que interessam apenas a outros poetas. Acaba por gerar, muitas vezes, manuais de instrução que interessam apenas aos técnicos, não aos usuários da poesia. Vida longa a nossos antilíricos, mas vida longa também a nossos líricos. Não é justamente a essa tradição que pertencem alguns dos mais belos poemas de Augusto de Campos, como o lindo "lygiafingers"? Se já não nos é dado escrever poemas cosmogônicos, aqueles que, nas sociedades descritas por Mircea Eliade e Ernst Cassirer, sustentavam o universo em seu eixo; se nos resta no entanto a poesia lírica, como muitos afirmam ser a única que nos resta (discordo), esta poesia teve funções desde sua origem, e não consigo pensar em honra maior, para um poeta, que a de emocionar seu leitor/ouvinte em um momento de necessidade. Mantendo, obviamente, uma escrita tesa, consciente da materialidade da linguagem (a completa, visual e sonora). Talvez possamos ser inúteis para a sociedade de consumo, sem, ao mesmo tempo, nos esquecermos de nossas funções milenares.



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domingo, 17 de janeiro de 2010

Lhasa de Sela silencia e perdemos outro poeta lírico


Ela morreu no primeiro dia do ano. Desde então sua voz ressoa com seus poemas líricos nos meus ouvidos, dia após dia. Trilha sonora das trilhas na neve, inverno calamitoso no Berlimbo. Com um câncer no seio silencia-se outra poeta lírica, ou um daqueles que chamo de poetas "multimídiavais" ou "multimedievais", os herdeiros dos trovadores, os que seguiram cantando enquanto a atenção estava toda voltada para os que escreviam e publicavam na página. Morta quando o ano mal existia.

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Lhasa de Sela (1972 - 2010) nasceu na cidade de Big Indian, no estado de Nova Iorque. Passou a infância viajando com os pais pelos Estados Unidos e México, até fixar residência em Montreal, no Canadá. Em 1998, ela lançou seu álbum de estreia, intitulado La llorona, com poemas líricos da tradição mexicana e também originais seus. Este álbum seria seguido de outros dois, The living road (2003) e Lhasa (2009).

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Lhasa de Sela,
segue para o seio

de Safo de Lesbos,
seguimos na espera

se formos dignos
ao fim, por fim.








sábado, 16 de janeiro de 2010

Exercícios de resposta

O Portal Literal publicou na semana passada uma pequena matéria sobre o lançamento do segundo número impresso da Modo de Usar & Co., com o lançamento triplo da nova leva da coleção Ás de Colete, dirigida por Carlito Azevedo para a editora Cosac Naify. A matéria é assinada por Felipe Pontes, que conduziu uma pequena entrevista com Walter Gam e comigo durante aquela semana. Não vou reproduzir aqui a entrevista como já pode ser lida na página do Portal Literal. Vou apresentar aqui as três respostas, mas divididas em vários pequenos parágrafos, como ensaios de tentativas de ensaios. Todas as respostas são, de qualquer forma, buscas de compreensão do nosso momento. Alguns de vocês devem estar cansados das minhas pregações, mas apresento aqui estes exercícios de resposta como continuação de conversas sobre nosso contexto, aquele de que busco participar.

Exercícios de resposta

Não é uma situação nova que escritores e poetas brasileiros produzam fora do país. Dentre os modernistas, Raul Bopp, Clarice Lispector, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa, entre outros,produziram grande parte de seu trabalho na Europa ou nos Estados Unidos. Hoje em dia há, por exemplo, o poeta Zuca Sardan, que vive também na Alemanha. Com a internet, é realmente mais fácil manter-se ativo no cenário brasileiro e de língua portuguesa, participando dos debates. Nesse aspecto de divulgação do trabalho, não faz grande diferença estar em Berlim ou em Pindamonhangaba. A ausência física, no entanto, impede muitas vezes que eu participe de leituras públicas do meu trabalho, cumprindo esse papel na Alemanha, onde há um circuito de festivais mais consolidado.

§

Quanto ao processo de criação e pesquisa, a residência em ambientes linguísticos e culturais distintos ainda gera questões diferentes para o poeta. Já se escreveu sobre uma parcela dos poetas da minha idade, em quem a experiência internacional, digamos, cumpriria um papel fundamental. Realmente, muitos poetas jovens hoje têm uma relação mais complexa com a noção de uma "tradição nacional". Muitos poetas de hoje parecem ter uma relação diferente com esta tradição, tanto quando comparados com os modernistas (que tinham, como os românticos, seus projetos para uma poesia nacional), como quando comparados com os poetas das décadas de 80 e 90, que começaram a afastar-se do nacionalismo de 22, ainda forte na década de 70, mas o faziam por um viés mais "universalizante", digamos, buscando elidir em muitos casos a historicidade do fazer poético. Hoje, muitos poetas jovens recusam tanto o "nacionalismo" dos modernistas como o "universalismo" dos poetas do fim do século passado. Entre os dois, instauram talvez um "internacionalismo", ou seja: não se obcecam com o contexto brasileiro, nem tentam abstrair em seu trabalho todo contexto. Praticam uma dança entre contextos, através da linguagem.

§

Eu acredito na linguagem poética como sendo aquela que se reconhece como artifício. Viver em outro país, como a Alemanha, com uma língua geral tão diferente daquela em que componho e escrevo, me ajuda a não cair em armadilhas de naturalismos. Deixa-me consciente da língua como construção, código ligado a um contexto específico. Estar cercado, não apenas por outro campo semântico, mas por outro campo fônico, deixa qualquer poeta mais sensível à materialidade da linguagem.

§

É também preciso lembrar que a crença em uma tradição nacional, baseada em uma única língua oficial, só ganha força realmente hegemônica com os poetas românticos, não apenas no Brasil; o Romantismo alemão também teve essa característica fundacional. Antes deles, entre os barrocos e os poetas medievais, as fronteiras entre literaturas eram mais difusas. Há muitos exemplos, como Gil Vicente, que escreveu também em castelhano, ou o trovador medieval Raimbaut de Vaqueiras, que compôs um descort em cinco línguas. Muitos poetas antes de James Joyce já praticavam uma escrita que vaga entre línguas e arcabouços etimológicos distintos. Nossa noção de vanguarda e originalidade é muito problemática, depende de hegemonias e esquecimentos. Entre os modernistas, Manuel Bandeira e T.S. Eliot têm poemas em francês. Beckett escrevia tanto em inglês como em francês. Dois dos Cantos de Ezra Pound foram escritos em italiano, assim como Murilo Mendes escreveu um livro inteiro nessa língua, com poemas maravilhosos. Nesse meu livro, há textos em espanhol e inglês, o que não é novidade ou originalidade alguma, trata-se de religar-me a uma prática comum em outros momentos da tradição.

§

Muita coisa que é vista como "vanguarda" é, em muitos casos, a religação a práticas desprestigiadas ou esquecidas da tradição, que sempre foi múltipla. Defendo, por exemplo, que os dadaístas não estavam "destruindo" a tradição, mas privilegiando aspectos orais, sonoros e de performance da poesia, aspectos que entraram em declínio a partir do Renascimento. Viver na Alemanha gera características específicas para o meu trabalho, mas estou muito consciente de que o debate principal de que participo é o brasileiro, em primeiro lugar, e o de língua portuguesa.

§

Em meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (2005), eu iniciei minha pesquisa pessoal sobre a corporalidade da escritura, como já havia uma preocupação clara de quebrar ou pelo menos borrar dicotomias e dualidades entre o corporal e o espiritual, o que levava a várias implicações: questionar a fronteira entre objetividade e subjetividade, entre concretude e abstração e também, consequentemente, entre o literário e o oral, o signo visual e a matéria fônica da poesia. Isso gerou em mim também a necessidade de espraiar minha pesquisa para além das fronteiras da escrita, passando a compor meus vídeos, performances e poemas orais. Nesses dois últimos livros, tanto a coletânea a cadela sem Logos (2007) como agora este Sons: Arranjo: Garganta (2009), eu já compus e escrevi como aquele que escolhe viver na fronteira entre o oral e o escrito. Ao mesmo tempo em que compunha esses livros, apresentava por exemplo na TV Cultura meu vídeo Garganta com texto (2006), em que defendo uma pesquisa poética vocal, já que o verbivocovisual dos concretos, por exemplo, frequentemente suprimia o vocal. Nesse aspecto, ligo-me à pesquisa poético-sonora de brasileiros como Philadelpho Menezes (1960 - 2000), Ricardo Aleixo, Chacal, Arnaldo Antunes, Gláucia Machado, Marcelo Sahea, entre outros. O poeta britânico Basil Bunting (1900 - 1985) chegou a declarar que grande parte das concepções errôneas sobre poesia surgiu com o hábito da leitura silenciosa.

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Não sugiro que uma experiência sobreponha-se à outra. Quando ataco a hegemonia do literário sobre o oral no debate poético, não quero apenas inverter os valores. Nós ganharíamos muito com uma pluralidade poética, o que não significa abandonar a crítica ou instaurar parâmetros frouxos. Significa entender que há pesquisas distintas, aquelas que podem ser feitas apenas como escritura e as que pedem a oralidade, o corporal. Esse livro foi publicado como objeto, carregando textos escritos. A oralização deles é uma das experiências possíveis com esses textos. Há alguns que já possuem sua versão oralizada, como as "Six songs of causality", que são um bom exemplo para essa relação. Compostos primeiramente como uma série de textos permutativos, eu creio que só ganharam sua plenitude quando compus sua versão verbivocovisual, em performance, que pode ser vista nesse vídeo, de minha apresentação no Espai d´Art Contemporani, nos arredores de Valência, na Espanha:



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No Brasil, onde há uma poesia oral e cantada tão forte, o abismo entre poetas-escritores e poetas orais parece intransponível e ainda marcado por hierarquias e trincheiras. Não há, por exemplo, um costume de leituras públicas. O contacto com os poetas hispano-americanos começou a mudar isso, mas ainda se desconfia muito de tudo, pelo medo do histriônico e teatral, algo em que pecam muitos dos poetas brasileiros que buscam o performático, infelizmente. Há trincheiras na Europa também, os poetas sonoros e os poetas escritores também se miram com desconfiança e muitas vezes até com certo menosprezo. Mas há cenas fortes de ambos os lados, assim como muitos poetas que estabelecem pontes entre as práticas literária e sonora, como os franceses Bernard Heidsieck e Christophe Fiat, os espanhóis Bartomeu Ferrando e Eduard Escoffet, os alemães Michael Lentz e Nora Gomringer, entre outros. Há muitos festivais em que poetas-escritores oralizam seus trabalhos, como o Poesiefestival Berlin, que dedicou a edição do evento em 2008 à língua portuguesa, assim como festivais exclusivamente dedicados à poesia sonora, como o Yuxtaposiciones, de Madri, que este ano convidou Joan La Barbara, Nathalie Quintane, Sandra Santana, Anne Waldman, entre outros. Eu já participei tanto do Poesiefestival de Berlim, com sua abordagem literarizante, como do Yuxtaposiciones de Madri, que enfoca a performance e a oralidade. O saudável seria instaurar parâmetros que não tentem excluir uma das pesquisas.

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Tenho defendido que o poeta precisa manter-se consciente do contexto em que insere seu trabalho. Parece-me ridículo crer que o papel do poeta não muda ao longo dos tempos, ou de cultura em cultura, país em país, língua em língua. Não se pode escrever como Homero ou Safo hoje, porque nós nem sequer podemos ler ou escutar Homero e Safo como os gregos antigos os leram e escutaram, não só por uma questão de língua. No entanto, entender o contexto histórico em que Homero e Safo compuseram seus textos e canções pode nos ajudar a entender o nosso próprio contexto. Saber como os poetas do passado resolveram seus problemas formais pode ajudar-nos a resolver os nossos.

§

Sigo tanto Ludwig Wittgenstein como Walter Benjamin na crença de que o poeta não pode abrir mão da historicidade do fazer poético. Talvez seja compreensível ler o nome de Benjamin nesse contexto, mas por que incluir o de Wittgenstein? Porque acredito nas implicações de certas proposições do filósofo austríaco, como a que diz que "o significado de uma palavra é seu uso na língua", daquele que escreveu que "ética e estética são uma só". Concordo com Maiakóvski quando este diz que "sem forma revolucionária não há arte revolucionária", mas vejo nesta declaração implicações com ênfases um pouco diferentes daquelas pregadas, por exemplo, pelos poetas concretos. Eles estavam obcecados com o conceito (militarista e diacrônico) de vanguarda e ficavam embasbacados com a noção de "arte revolucionária", mas o que mais fascina na declaração de Maiakóvski é que ela demonstra a crença do poeta russo na historicidade do fazer poético, nas interações entre a pesquisa poética e o contexto histórico em que esta se insere. É curioso assistir como alguém como Haroldo de Campos, três décadas mais tarde, defenderia um conceito como "trans-historicidade", que é uma grande deturpação do Jetztzeit de Benjamin, que ele traduziria como "agoridade" e passaria a embaralhar, de forma bastante desastrada, ainda com o conceito de sincronia histórica. O ensaio em que ele defende a noção do "pós-utópico" parece-me muito mais um manifesto, mesmo assim bastante questionável e problemático. Apenas a subserviência geral explica a maneira como esse ensaio passou a ser usado como dogma nas décadas de 80, 90 e até bem pouco tempo, sem um debate que investigasse de maneira mais complexa a compreensão das transformações históricas, a partir da década de 60, e suas consequências para a pesquisa poética. De qualquer maneira, preciso corrigir algo: eu jamais usei a palavra "engajamento" em meus artigos, pois não se trata de exigir participação política do poeta. Entendo perfeitamente o trauma dos poetas que viveram a época da ditadura militar e não querem se ver mais uma vez obrigados a responder a críticas estúpidas de caráter estalinista. Eu sou um leitor de Óssip Mandelshtam, que morreu em um gulag por se recusar a seguir a poética do Estado Soviético, e não ousaria reduzir a uma noção de engajamento político a questão das implicações éticas do fazer poético. Não é isso que defendo quando insisto na importância do contexto histórico na pesquisa poética. Não creio que eu próprio faça concessões em meu trabalho ou escreva uma "poesia de palanque", mas acredito na união entre forma e função, e que o trabalho poético de qualidade pode intervir na comunidade em que se insere. De qualquer maneira, digo que o poeta tem responsabilidades porque sua matéria prima é uma propriedade pública e coletiva: a linguagem. Sem concessões, sem discursos políticos. Importa o que o poeta faz, não o que ele diz. Ele pode falar sobre as folhas que caem no outono ou sobre a amada que o deixou, mas o texto terá implicações distintas se apresentar-se como soneto, sextina, poema visual, poema sonoro, em sintaxe castiça, desarticulada, usando metáforas, suprimindo metáforas, em prosa, em verso, em livro, lido em público... cada uma destas escolhas terá efeitos distintos, implicações diversas. Aquele que quer apenas "se exprimir", que vá procurar um terapeuta. O poeta pode ser artesão e interventor ao mesmo tempo, mas apenas se ele acredita na importância e historicidade do seu FAZER.

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segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Duas mulheres, com trabalhos em que encontro implicações est-É-ticas

Duas mulheres com quem aprendo a pensar de maneira est-É-tica, uma delas de meu país e língua de origem e a outra de meu país e língua de adoção: Clarice Lispector (1920 - 1977) e Hannah Arendt (1906 - 1975). A alguns surpreenderá a escolha destas duas mulheres neste contexto, por motivos talvez opostos. No caso de Arendt, por esta ser geralmente associada a um pensamento político e ético, mas não estético. No caso de Lispector, por esta ter criado seus artefatos literários sem jamais haver praticado de forma consistente o pensamento crítico-estético, muito menos por ter seu trabalho literário associado a um pensamento político. Torno-as presentes aqui através de duas famosas entrevistas televisivas. A de Hannah Arendt foi concedida ao jornalista Günter Gaus, no canal de televisão ZDF, em outubro de 1964. A de Clarice Lispector foi concedida ao jornalista Junio Lerner, da TV Cultura, em 1977, poucos meses antes de sua morte.

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(Hannah Arendt, em sua famosa entrevista de 1964, com Günter Gaus. Legendas em espanhol)

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(Clarice Lispector, em sua famosa entrevista final de 1977)

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A entrevista de Arendt é bastante famosa e doou a seus admiradores e detratores várias citações célebres. No excerto acima, podemos ouvir sua resposta à pergunta de Gaus, se ela sentia nostalgia pela Europa de antes de Hitler e pergunta o que restara daquele tempo. De forma bastante educada, Arendt diz que não sente nostalgia alguma pela Europa do tempo antes de Hitler, sem estardalhaço para as óbvias implicações de uma pergunta que poderia ser vista como extremamente impertinente, já que a Europa anterior ao nazismo foi a mesma Europa que tornava os judeus cidadãos de segunda classe dentro da Alemanha e que impedira Arendt de lecionar na Universidade por ser judia. Quanto ao que resta daquele tempo, Arendt dá a famosa resposta: daquela Europa resta a língua, que ela mais adiante qualifica de "língua materna". Seria muito interessante discutir se é realmente possível separar esta língua de tudo o que aconteceu, ou se esta permanece "a mesma". Não afirmo nem nego, apenas tenho calafrios ao pensar nas implicações desta discussão. De qualquer forma, é comovente como Arendt explica sua recusa de abandonar a "língua materna", dizendo que se perdesse esta ela perderia também todos os poemas em língua alemã que se movimentam nos bastidores de seu pensamento. No bonito Homens em tempos sombrios (1968), ela escreve sobre vários poetas, a quem ela parece dedicar especial admiração.

Aqui poderíamos discutir tantas coisas, como pensar na famosa declaração de Adorno, de que escrever poesia seria um ato de barbárie depois de Auschwitz, assim como a suposta resposta "indireta" de Paul Celan para a questão, que teria feito Adorno "mudar de opinião", resposta que foi bem menos indireta do que se pensa. Eu ousaria dizer que Adorno e Celan, na verdade, jamais discordaram. A proposição de Adorno é frequentemente compreendida de forma um tanto equivocada. Pois Adorno atacava ali uma noção de poesia pura, independente do mundo dos eventos, uma poesia que tentasse seguir como se nada houvesse acontecido: isso seria um ato de barbárie. É nisso que Celan responde a Adorno, pois Celan não escreve como se nada houvesse acontecido. No Brasil, com suas traduções um tanto equivocadas de Celan, como, em minha opinião, certas escolhas de Claudia Cavalcanti no volume Cristal (São Paulo: Iluminuras, 1999), parece haver uma crença num Celan como partidário de alguma "Beleza difícil". No entanto, o próprio Celan atacaria os poetas que seguiram perseguindo alguma espécie de "eufonia" em meio à barbárie. A insistência no aspecto semântico do trabalho de Celan, com seus neologismos, faz com que não se perceba o trabalho proposital de "feiura" na escrita do poeta romeno, com sua sintaxe quebrada, partida. Há poucos poetas tão históricos quanto Celan ou outros poetas sobreviventes da Shoah, como Edmond Jabès, Tadeusz Rózewicz, Dan Pagis, sem mencionar os textos dos que não sobreviveram, como Miklós Radnóti, Simone Weil e Etty Hillesum. Mesmo assim, não falta quem tente fazer leituras "trans-históricas" do trabalho de Celan e Jabès.

Mas já comecei a me distanciar aqui da conversa sobre Arendt. Apenas resta em minha mente a pergunta: até que ponto permanece realmente aquela língua, de antes do nazismo, após o nazismo? Até que ponto nossas línguas carregam aquelas catástrofes que se empilham aos pés do Anjo da História, aquele de Walter Benjamin?

Quanto a Clarice Lispector, seu trabalho é raramente associado a implicações éticas ou políticas, lidos em geral numa clave mística e religiosa, como se estas se excluíssem. Infelizmente, a leitura admirada de Hélène Cixous acaba por esconder, sob leituras eminentemente psicanalíticas, algumas propostas realmente interessantes. No Brasil, crê-se que A hora da estrela (1977) seria seu momento de imersão no contexto sócio-político brasileiro, o que é geralmente visto como rendição negativa por alguns de seus admiradores. Pessoalmente, vejo os livros A maçã no escuro (1951) e A paixão segundo G.H. (1964), além de meditações místicas, como os momentos mais violentos de sua escrita est-É-tica e política, quando ela se faz, ao lado de Machado de Assis, a crítica mais feroz de nossa noção de civilização. Queira você agora chamá-la de "patriarcal", "ocidental", "europeia", "capitalista" ou qualquer outro adjetivo da escolha de sua perspectiva pessoal.

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sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Dois poemas meio inéditos, para começar a esvaziar a gaveta

A nova edição da revista eletrônica Desenredos traz dois poemas inéditos meus, que deverão um dia ser incluídos em meu próximo livro, seja lá quando isso acontecer. Os dois foram escritos em 2006, creio, e trazem marcas das preocupações e leituras daquele momento, minhas traduções de poetas dadaístas, de certos poetas austríacos como H.C. Artmann, minha obsessão com a defesa da historicidade da poesia. Poderiam ter na verdade entrado neste livro agora publicado, mas meus três livros foram concebidos como livros estruturados, o que sempre faz com que muitos poemas fiquem na gaveta à espera de uma estruturação em livro posterior. É uma sensação estranha, pois toda vez que publico um livro, já teria quase o suficiente para um próximo. É que eu nunca esvazio por completo a gaveta. Dá também a sensação de um livro novo para os outros, mas velho para o próprio poeta. Os poemas incluídos em Sons: Arranjo: Garganta foram todos compostos entre 2004 e 2007. Até o livro sair, agora em dezembro de 2009, eles mudaram muito, com correções e extirpações e adições. Alguns haviam sido já compostos e publicados em revistas quando saiu meu primeiro livro, Carta aos anfíbios. Da próxima vez acho que quero fazer uma espécie de Museu de tudo, como fez João Cabral certa vez, esvaziar a gaveta. Deve ser uma sensação boa, esvaziar a gaveta. Esvaziar a cabeça, as glândulas. Esvaziar até desabastecer-se. Chacoalhar os conteúdos da bolsa, da mochila, dos bolsos em praça pública. Expor-se a faltas. Como um corpo de repente privado da produção de serotonina.

Reproduzo abaixo os dois poemas.

anatomia do ouvido alheio a partir da própria garganta

§ - Introdução ao poema

Típico Ricardo
que Leslie Feist 
palreie 
clouds part 
just to give 
us a little sun
” 
& vossa mercê 
em meio à 
Own Private Idaho 
de sua tragédia 
em 365 actos 
entenda “clouds 
fall just 
to give us a lesson
” 
e creia salvar-se 
       na heráldica 
de seus malentendidos.
É óbvio claro & evidente
que Gertrude & Ludwig
contorcem-se de orgulho
dentro de seus sarcófagos,
vibrando em seus ossos 
e empoeirados cabelos
por sua perspicácia
ao aprender com a água
a condensar-se de acordo 
com a temperatura,
enquanto você, 
poetícula de unhas 
cravadas na própria juba,
pausa para escrever
seu mais novo
manual de instruções
          para resquícios
que começa
thus assim ecco:
Nuvens 
ejetam-se, caem 
de pára-quedas
sobre meus cílios
            em lições
sobre o que significa 
expectativa




§- Poema

Nuvens 
ejetam-se, caem 
de pára-quedas
sobre meus cílios
            em lições
sobre o que significa 
expectativa
, mas discordo 
da estratosfera em densidade
de água, umidade, distância 
do horizonte que funciona
como meus pulmões
e meus pulmões não são 
argumentum ad infinitum 
nem se expandem 
como o verão e suas sardas.
Não
          é todo dia
que se quer que
  se quebre, que
se berra: “breque
para que se possa
afundar o resto
dos destroços,
todos à queima 
dos despojos,
quando não
basta cavar crateras
e depois terraplanar 
Tróia Nagasaki Atlanta.
Belicosos até nas belezuras,
como quem desenha 
trincheiras no peito
do amante e acha poucas
as bombas sobre Berlim,
sussurrando ao seu ouvido:
beligerante pouco 
é bobagem
“.
Você não se cansa mesmo 
de sobrepor-se bentônico
à minha superfície,
então hei-de quebrar 
os dentes do cavalo dado,
aguaçar-me o aguacento,
questionar as quantas demãos
você me exige 
para sua futura aguarrás,
Sr. Cantante
em ternário ao meu compasso,
candidato a exclusivo,
que me doa king
size
 à serralheria
que se mostra generosa 
aos encaixes de nosso relacionamento 
em beliche, moçoilo, se não alcanço 
sequer o segundo 
turno à eleição a benemérito
que você preside como juiz, 
faça ao menos jus 
ao presídio em que vivo em nós
das suas bravatas e brocardos.
Eia! Buldogue bulímico -
veja se me premia 
com algum bônus, 
ao menos beneplácito,
não seja assim tão bequadro
dos meus bemóis a mais,
cesse este cicio de cíclope
           míope e cuneiforme,
enfartei-me já de farta
da embriologia 
     dos teus embromos
e erriçada peco e peço
a concha das suas mãos
para trazer água à minha boca
e enxugar dos meus olhos 
a água, na esperança 
última que mirra 
de que o equinócio 
traga enfim simetria 
à balança comercial de nossa erosão




Texto em que o poeta medita sobre a transitoriedade da existência física enquanto alterna canais de televisão na Berlim de junho de 2006 em busca de material para o poema e assiste a documentários sobre Marilyn Monroe, a Ilha de Páscoa e um jogo de futebol


1-

a escrita
por cópula
de signos
em metamorfose
                na Ilha 
de Páscoa
após contacto
com europeus
como Marilyn
          Monroe
completaria oitenta
anos a primeiro
de junho de
dois mil e seis

2-

Marilyn
Monroe
não
despertou ao
terceiro dia

3-


ilha devastada
       pelo ícone
escavado no material
vulcânico de sua origem
e composição

que despertemos
dos barbitúricos
de nossos pesadelos
louros e lindos
como 44 pernas

4-


Oh Marilyn
Monroe perante
o pênalti
como um Moai
contra o céu

5-


mar e limo
róem

6-

por tal sex
symbol
 cortaríamos 
também as palmeiras
do solo e extinguiríamos
quaisquer pássaros 
pelo asséptico
da terra desgastada
do mito
que rola e urde.

7-


Marilyn Moairuhe


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domingo, 3 de janeiro de 2010

Entrevista para o jornal "O Estado de S. Paulo", na íntegra

Foi publicada hoje, no caderno "Cultura" do jornal O Estado de S. Paulo, uma resenha de Francisco Quinteiro Pires para o meu Sons: Arranjo: Garganta, assim como o Ambiente de Walter Gam e o Mapoteca de Felipe Nepomuceno. Publico abaixo, na íntegra, a entrevista que Quinteiro Pires conduziu comigo durante minha viagem ao Brasil, a quem possa vir a interessar.


Entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo
concedida a Francisco Quinteiro Pires
em dezembro de 2009.



Você inverteu, entre outros, o poema "Áporo". Por que desestruturá-lo dessa maneira? Isso revela, de algum jeito, a sua poética?


Meu interesse na corporalidade da escritura e na relação entre esta e a oralidade me levou a trabalhar com vídeo e performance, assim como o que se convenciona chamar de poesia sonora. Você se refere aos poemas em que trabalho com a noção de "som que faz sentido" e "sentido que faz som". A "inversão" do poema "Áporo", de Carlos Drummond de Andrade, ocorre na segunda parte do primeiro. Essa pesquisa revela certos elementos da minha poética, pois é a radicalização da ideia que sigo, de que não importa o que o poeta diz, mas o que ele faz. Também naquilo que chamo de "poética de implicações", as implicações do que o poeta fez com a língua. Neste exemplo, eu radicalizo isso. O que está sendo feito ali? Na primeira parte, eu uso o poema fonético "Karawane", de Hugo Ball, como "forma fixa". No poema de Ball, são "sons sem sentido", trata-se de poesia sonora. Parecia-me interessante reproduzir o exercício de Hugo Ball, mas com palavras que têm sentido, ainda que em línguas que eu não entendo. Nesse primeiro texto, eu uso palavras do holandês (os outros dois poemas usam o polonês e o húngaro, línguas que não conheço), palavras que têm exatamente o mesmo número de letras dos "fonemas" de Hugo Ball. O que me interessa são as implicações linguísticas disso, que cada um tirará por si mesmo se estiver interessado nisso, nas relações entre som e significado, fonema e signo, sua arbitrariedade ou não, interpretação do sistema fônico, etc. Há também um certo sarcasmo em questionar a noção de "forma fixa", já que eu trato o poema fonético de Hugo Ball, um dos fundadores do dadaísmo, como outros trataram a sextina de Arnaut Daniel ou os sonetos dos poetas renascentistas. Para muitos leitores isso poderá parecer conceitual demais, chato, mas esses textos são realmente uma radicalização disso. Na segunda parte, investigando a relação agora da escritura com o oral, do signo visual com o sonoro, eu tomo poemas canônicos das três línguas que comparecem no livro (português, espanhol e inglês), e faço a inversão deles, questionando mais uma vez as relações entre o visual e o sonoro, sentido e nonsense, construção e desconstrução, através de poemas de Carlos Drummond de Andrade, Jorge Guillén e Wallace Stevens. Essas escolhas não foram arbitrárias. Nesse caso, posso descrever o que fiz sem correr o risco de explicar o que está dito, pois a interpretação das implicações disso dependerá de cada leitor e apenas se ele estiver interessado nessas questões, não espero ou exijo de forma alguma que todos estejam.


Existe uma temática, se não entendi de modo equivocado, em Sons: Arranjo: Garganta sobre uma vontade recorrente de ser arrebatado, assaltado, de perder mesmo os limites da individualidade. O que isso significa?


Eu sempre fiz do questionamento de dualidades um dos pontos principais do meu trabalho. Há também o fato de que me considero um poeta lírico. A temática amorosa, mesmo que disfarçada, é a mais recorrente nos meus poemas. Há poemas de amor disfarçados em outros temas, assim como há poemas críticos disfarçados de poemas de amor. É por isso que me interessa, unindo a temática amorosa com a quebra de dualidades, a noção de dissolução do EU no OUTRO. Isso pode ser visto de várias maneiras, na dissolução entre nacional e estrangeiro também. Na década de 80 e 90, por influência de João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos, havia a preocupação de evitar uma poética subjetiva demais, fazendo com que a poesia se tornasse mais seca, preocupada com a descrição objetiva do mundo exterior e com processos de linguagem. A diferença hoje é que muitos poetas não tentam mais obliterar o subjetivo, mas o tentam expor através dos jogos da linguagem. Parece-me uma outra noção de consciência de linguagem, mesmo que poetas mais velhos discordem.


Outro tema constante é a perplexidade diante dos afetos em embate. É isso mesmo?


Voltando um pouco à questão anterior, a temática amorosa me interessa, me fascina. Ela nos acompanha desde a poesia lírica de Safo de Lesbos. Meus poetas favoritos sempre foram aqueles dos embates entre o sujeito e o outro, como Safo, Catulo, os trovadores medievais. Sempre me fascina mais o poeta lírico, sem deixar de me preocupar intensamente com a historicidade do trabalho poético. É uma ilusão crer que apenas o poeta épico se interessa pela historicidade. Vou cometer uma blasfêmia agora para muita gente, mas a verdade é que em muitos momentos prefiro Safo a Homero, Catulo a Virgílio, Arnaut Daniel a Dante Alighieri, qualquer trovador medieval a todos os literatos renascentistas juntos, a lírica de Camões à sua épica. Gosto demais da poesia amorosa atormentada, seja a mística de San Juan de la Cruz, Gerard Manley Hopkins e Murilo Mendes, ou a pessoal de Hilda Hilst, Wislawa Szymborska e Mina Loy. Sou obcecado por filmes como "A professora de piano", de Michael Haneke; "Dolls", de Takeshi Kitano; "Não amarás", de Krzysztof Kieslowski; "Hiroshima Mon Amour", de Alain Resnais, entre outros que pesquisam os "afetos em embate", como você disse. Ou, como Drummond encerra o poema "Amar": "a água implícita e o beijo tácito e a sede infinita."


Você poderia comentar a ação do caos em Sons: Arranjo: Garganta?


Quando eu estava crescendo e me formando como poeta na década de 90, todos elogiavam a poesia daqueles que eram concisos, secos, econômicos, racionais, construtivos. Eu me sentia um pato-feio/peixe-fora-d´água, pois eu preferia justamente os que eram arrebatados, febris, atormentados, sem que perdessem a noção de artesania. Mesmo em João Cabral, que era o santo padroeiro dos partidários da secura, eu preferia poemas como "O cão sem plumas" ou o super-construído e ao mesmo tempo atormentado "Uma faca só lâmina". No entanto, meu mestre sempre foi Murilo Mendes, sem mencionar Carlos Drummond de Andrade, que foi mestre de todos. O poema brasileiro que mais me fascina e com o qual mais aprendi é "Janela do caos", de Murilo Mendes. É por isso que dialogo com ele (e com John Cage, o partidário do acaso) por todo o livro, mas especialmente no último texto, que me consumiu muito tempo, chamado "cage of chance jaula do caos". Pode parecer caótico, mas é construído em sua composição de correspondências caóticas. Eu me interesso por uma aceitação adulta do caos, com a consciência da artificialidade das nossas construções que tentam escondê-lo. Além do mais, diria como João Guimarães Rosa: "Prefiro crer que uma ordem secreta impera." Essa ordem seria a "Máquina do Mundo"? Jogar com a sua sugestão e inexistência me interessa.


Como você responderia a Wittgenstein: Como a sua dor de dente se diferencia da minha?

Ler Ludwig Wittgenstein foi um dos maiores redemoinhos por que já passei. Ele é uma das fontes principais de tudo o que pesquiso sobre uma poética de implicações, com suas proposições filosóficas que às vezes parecem koans de um mestre zen ou parábolas de um rabino. Ele era um mestre da escrita que une o "dizer" e o "fazer". Não há como "explicar" suas proposições, o fascinante é começar um processo pessoal em que você passa a responder às implicações delas. Como um dos meus interesses principais é recuperar uma pesquisa corporal, especialmente no Brasil, que é "país do carnaval" mas ignora seus artistas da performance e do corpo, pois está sempre fascinado com o construtivismo abstrato dos europeus. Muito mais afeitos ao êxtase, deixam-se fascinar pela ascese. O interessante é unir os dois. Não estou fugindo da resposta: Wittgenstein interessa muito a uma poética corporal. É apenas passando pelo corporal que poderíamos começar a pensar nas implicações de sua pergunta: "Como a sua dor de dente se diferencia da minha?" Mais uma vez, retornamos ao que falávamos antes, sobre a dissolução do EU no OUTRO, nas dualidades pouco saudáveis que separam o subjetivo do objetivo, o concreto do abstrato, o corporal do espiritual. Tudo isso está ligado.


Você poderia falar um pouco sobre a sua formação intelectual e o seu cotidiano profissional em Berlim, por favor? Seria interessante falar da influência de outras esferas como a música e o vídeo na sua arte...

Entre 1998 e 2000, estudei (oficialmente) filosofia na USP, ainda que, aos poucos, me ligasse mais e mais a um grupo de estudantes de teatro, formando a Tribo de Teatro Tumutupugá, com quem encenei o espetáculo "1999" em junho de 1999, no Teatro Laboratório da ECA - USP. Assim, Kierkegaard, Pascal e Espinoza foram aos poucos substituídos por Brecht, Artaud e Grotowski. Tudo isso está intimamente ligado à minha pesquisa de quebra de dualidades entre o mental e o corporal. Tudo isso se intensificou quando passei a trabalhar com Luzia Carion e seu grupo de pesquisa corporal baseada nas técnicas do coreógrafo mineiro Klauss Vianna. Ao mesmo tempo, passo a trabalhar como DJ, esfera de trabalho em que é clara a interação entre o artista e seu público. O poeta escreve sozinho e raramente sabe a reação de seus leitores. Com o DJ, ou o público dança, ou não dança. A relação é imediata e clara. Isso passou a me interessar quando fui convidado a dar leituras públicas do meu trabalho. Voltamos aqui à questão do poeta literário e do poeta oral e as diferenças de pesquisa, algo que permeia a escrita deste meu Sons: Arranjo: Garganta. O trabalho com o vídeo permitiu finalmente o registro do corporal e do oral, independente do papel. Artistas como Marina Abramovic, Lygia Clark, Pipilotti Rist e Janaina Tshäpe passaram a ser tão importantes para mim quanto poetas. Hoje eu tento entender as especificidades do trabalho poético por escrito, do trabalho poético em vídeo e do mesmo em poesia sonora. Na Alemanha, sigo trabalhando como DJ e organizando eventos com apresentações de artistas multimidiáticos como Planningtorock, Wolfgang Müller, Bruce LaBruce, Kevin Blechdom, Tetine, entre outros, sem distinguir muito entre criação e curadoria.


Você é poliglota, tem uma forte formação erudita, características que permeiam a sua poesia. Isso é inevitável? O que você busca por meio da poesia?


Isso não é inevitável, é apenas uma escolha e tem sua função. De qualquer forma, gostaria de insistir que as referências ditas "eruditas" não aparecem em meu trabalho como "aura de autoridade", para fazer meus poemas integrarem a esfera da alta cultura. Muitíssimo pelo contrário. É importante ressaltar que as referências que poderiam ser chamadas de eruditas vêm na companhia de referências ao cinena, onde o erudito e o popular se unem, e também do mundo da cultura pop. Se eu cito Wittgenstein, eu também cito Kate Bush. Se eu cito Gertrude Stein, também cito Elizabeth Taylor. Mesmo assim, eu nem vejo Stein ou Wittgenstein como referências eruditas. John Cage, que é um vulto importante no livro, tinha pavor da noção de erudição, ainda que fosse um homem extremamente culto. Falo outras línguas por circunstâncias biográficas: estudei nos Estados Unidos, vivo há anos na Alemanha. É apenas honesto de minha parte que isso seja integrado em meu trabalho, já que insisto tanto na ligação entre vida e obra de qualquer artista e não defendo purismos. Espero que os poemas em outras línguas não pareçam mera arrogãncia. É importantíssimo notar, por exemplo, que a colagem que fiz em espanhol foi composta na Argentina. Há aí, mais uma vez, o que chamo de poética de implicações, além da relação vida/obra. Talvez como Drummond escreveu: "É preciso escrever um poema sobre a Bahia. / Mais eu nunca fui lá."

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