sábado, 10 de abril de 2010

A nós insetos, cavando e cavando, em país bloqueado, sem achar escape

Publiquei neste espaço, no dia 26 de março, um artigo intitulado, entre outros dois possíveis títulos, "Sambando com stiletto onde até o Anjo de Benjamin pisa de leve". O aparente sarcasmo do título era, na verdade, a tentativa de deixar claro que sei bem como é pedregoso o caminho deste debate, como ele pede cuidado para evitarmos armadilhas retóricas bem conhecidas. Ao discutir o que chamarei aqui, com muita cautela, de "implicações éticas ou políticas do fazer artístico e poético", no Brasil, especificamente, creio que muitas das pedras e obstáculos advêm de traumas da maneira dualista e extremamente entrincheirada como foi conduzido no período da ditadura militar. No artigo mencionado, trato do debate em torno da importância do gênero (gender) na crítica poética e literária, para poder dar uma cara, nome e endereço a uma discussão que é muito mais ampla, cheia de meandros.

Os poetas Érico Nogueira e Dirceu Villa publicaram excelentes artigos em resposta, gerando ainda um comentário bastante estimulante de Ricardo Leal ao artigo de Nogueira e ao meu. É muito bom poder debater estas questões de forma tão equilibrada.

Nas conversas mais inteligentes sobre estes que parecem seguir sendo "dilemas", um dos problemas levantados mais frequentes é o da avaliação crítico-estética dos trabalhos que se dispõem ou não a tratar destas implicações, ligando o debate também ao estabelecimento crítico de um cânone. Há uns poucos pontos que gostaria de comentar.

Antes, precisaria fazer um preâmbulo. Na tentativa de clarificar os aspectos que me interessam nesta discussão, publiquei no ano passado um artigo intitulado "O artesão e o interventor", em que tentava diferenciar estas duas possíveis ênfases do trabalho do artista. Naquele texto, escrevo que, "a partir do trabalho da vanguarda histórica ligada ao Cabaret Voltaire e à revista DADA, assim como o de artistas e poetas independentes como Marcel Duchamp e Pierre Albert-Birot (mas não o de vanguardas ligadas ao construtivismo), o trabalho artístico no século XX se bifurca entre a missão do artista como artesão e a do artista como interventor. Este último afasta-se de certa leitura da tradição greco-latina, a tradição neoclássica, em prol de tradições outras em que o papel do artista se afasta da analogia que se faz entre este e o artesão, e se aproxima, por exemplo, de uma possível analogia entre o artista e o xamã nas sociedades arcaicas. Jerome Rothenberg argumenta algo parecido em suas antologias de etnopoesia há anos. No trabalho poético, gosto de usar o termo `poeta-Cassandra´, já que este se mostra em geral incapaz de impedir as catástrofes. O artesão busca a produção de objetos que possam `permanecer´, enquanto o interventor usa ações e busca criar situações que tenham efeitos transformadores sobre a comunidade em que vive. Não se pode recorrer facilmente à tekhné grega para analisar trabalhos como "I like America and America likes me" ou "Como explicar imagens a uma lebre morta", de Joseph Beuys; trabalhos como "Cut piece", de Yoko Ono; a "arte terapêutica" de Lygia Clark; ou todo o trabalho de Marina Abramović."

Hoje, eu faria um adendo a esta proposta, também para evitar qualquer mal-entendido de uma adesão minha a um discurso dualista ou mesmo evolutivo, ao escrever que essa bifurcação se dá "a partir do trabalho da vanguarda histórica ligada ao Cabaret Voltaire". Ao mesmo tempo, este adendo permite-me entrar na conversa sobre alguns pontos do debate com Nogueira e Villa. Esse papel do poeta/artista como interventor não é novidade do século XX. No artigo, tento ligá-lo a outros papéis do poeta, em outras épocas, culturas e comunidades, chegando a remeter ao xamã, como poderíamos remeter mesmo à maneira como os bardos celtas e griots africanos estavam inseridos em suas comunidades. Aqui, entramos por exemplo no ponto central do argumento de Nogueira, com sua proposta recorrente de basearmo-nos, nesta discussão, na proposição de Kant, que cito a partir de seu artigo: "porque o juízo de gosto não se define por conceitos e prescrições universais e necessários, é o que mais necessita do exemplo daquilo que, no desenvolvimento da civilização, tem recebido mais longo assentimento". Não sei se a questão aqui seria a de refutar ou não a proposta de Kant, mas de analisarmos a maneira como ela pode ser usada. No caso de Nogueira, por sua posição est-É-tica neste debate, sabemos que ela se manifesta para defender o uso da "tradição" como única forma eficiente de avaliação estética de qualidade, como também do estabelecimento de parâmetros críticos. Lembremo-nos que, como disse no início deste artigo, este parece ser um dos pontos mais complicados desta discussão, algo que também aparece, de certa forma, no artigo de Dirceu Villa. Portanto, o uso do argumento de Kant é extremamente coerente nesta discussão. Para não cairmos no mero discurso dos gostos pessoais, teríamos que depender do "estabelecido", daquilo que recebeu por mais tempo o "assentimento" do coletivo. O uso que Nogueira faz aqui desta proposta manifesta-se, eu diria, na estratégia de salvaguardar a legitimidade de uma leitura classicista da arte. Ele próprio levanta o problema, de que este "estaria precisamente em fazer uma espécie de 'crítica do assentimento', estudando as variáveis -- lógicas, psicológicas, morais, políticas, religiosas... -- que têm presidido ao juízo estético e, pois, ao estabelecimento de um cânon." Eu diria que este é um dos problemas, como Érico nota com perspicácia, mas há um outro que eu levantaria aqui. Trata-se da maneira como esta proposta acaba por equivaler "tradição" e "cânone", transformando-os em sinônimos, quando eu diria que este é justamente um dos questionamentos que poderíamos levantar, o da necessidade de separarmos, como organismos e sistemas distintos, o que chamamos de "cânone" e o que chamamos de "tradição". Assim, eu perguntaria se a proposta de Kant seria menos passível de refutação que de objeção à sua eficiência para uma possível solução, digamos assim, neste debate.

É claro que muito das discordâncias nasce precisamente de nossas divergências quanto à importância da historicidade para um debate eminentemente estético. Parece-me também interessante, por exemplo, que no estimulante comentário-artigo de Ricardo Leal, a expressão tenha retornado como "historicismo". Há, realmente, várias implicações na maneira como invoquei o Anjo de Benjamin nesta conversa, às quais creio que só poderei retornar em outro artigo. Em primeiro lugar, eu aqui argumentaria que este "longo assentimento", no "desenvolvimento da civilização", não é uniforme ou unânime. Ignorando o contexto e a função das formas, acabamos por discutir a poesia grega sob o influxo do Romantismo alemão ou, em outras palavras, corremos o risco de debater a "poesia lírica" como se Safo (c. 612 a.C.- 570 a.C.), Taliesin (c. 534 - 599) ou Arnaut Daniel (c. 1150 - 1210) houvessem lido Kant. Nosso conceito atual de "lírica" está muito distante da prática poética que primeiro recebeu este nome. Essa leitura, que privilegia a legitimação estética por parâmetros clássicos, pode também acabar privilegiando, em grande parte, intervenções críticas posteriores, seja a da Poética de Aristóteles ou a das propostas estéticas de Kant, mais que os próprios textos, sempre anteriores. Não quero questionar a validade e valor dos parâmetros de qualidade possíveis de leituras neoclássicas. Pergunto-me apenas se elas promovem, não apenas o privilegiar de certos gêneros (sejam gender ou genre), mas, principalmente, uma leitura interessada e cerrada da tradição para o estabelecimento do cânone, com o uso de valores por vezes extra-literários, como o louvor de conteúdos mais nobres, da Beleza e da Harmonia, para, por exemplo, declarar Horácio e Virgílio superiores a Catulo e Marcial, assim como o épico acaba por sobrepor-se ao lírico ou ao satírico, por hierarquias muitas vezes morais, e não realmente pelo emprego eficiente das variadas técnicas pelos poetas. Portanto, pergunto-me se recorrer somente ao assentimento do cânone pode ser a única solução ou estratégia. Talvez isso tenha que ser unido justamente ao questionamento simultâneo deste assentimento, algo como uma positiva "crise crônica", uma releitura constante e contextual deste assentimento.

Um problema/explicação possível é que a tradição (não o cânone, que tende a uniformizar-se) acumula em seu bojo "papéis", "funções" e "contextos" para o trabalho poético que são muitas vezes conflituosos. Quando nos concentramos apenas no estudo formal, este acúmulo é pacífico e não gera cancelamentos. Ignorar as diversas funções que o poeta e o poema exerceram em suas comunidades, as transformações de cada contexto, gera um debate nivelador, que é bem menos rigoroso do que se quer fazer passar. Este longo assentimento do cânone tem camadas muito distintas, que se debruçam umas sobre as outras, e que apenas uma consciência da historicidade poética pode vir a destrinchar para sequer permitir que cheguemos à possibilidade de uma crítica realmente formalista. Ou, pelo menos, é o que tenho tentado defender.

É por isso que tenho insistido que não se trata de fazer os conceitos de "função" e "contexto" superiores ao de "forma", um equívoco recorrente em departamentos de estudos literários, mas de buscar um equilíbrio em nosso trabalho crítico, para realmente sermos capazes de uma avaliação crítico-formal que não distorça a própria forma que tanto queremos salvaguardar e estudar. É aqui que eu questionaria a melhor maneira de analisar e julgar o que Villa chama, em seu artigo, de uma obra que "deve ficar em pé por si, como obra."

Confesso que a questão de gender sequer me interessa tanto. Minha discussão primordial tem sido a de analisar a maneira como o poeta deve inserir-se em sua comunidade ou momento histórico, se quiser realmente ter qualquer relevância. É claro que o problema nem mesmo existe se decidirmos que o poeta não precisa ter esse tipo de "relevância". A discussão hoje tende para isto. No debate do qual tenho tentado participar, me importa e interessa questionar a ideologia da "trans-historicidade" e o mito romântico do poeta como "outsider", que me parece uma resposta às mudanças na relação do poeta com sua comunidade, a partir das transformações posteriores à Revolução Francesa, por exemplo. Também parece-me necessário um debate sobre o discurso contemporâneo da "inutilidade da poesia", que, se é compreensível em um mundo onde queremos proteger a arte da palavra dos discursos e mecanismos utilitaristas do presente sistema econômico, em suas largas implicações isto tem gerado uma prática poética realmente inútil e inoperante, com a produção de meros bibelôs textuais, completamente desligados de qualquer possibilidade de intervenção ou importância, mesmo formal, onde o artesanato poético torna-se tão relevante quanto o de souvenirs das várias praças públicas de São Paulo. Não estou acusando ou generalizando. Há exceções, há contradições, há oposições.

Talvez eu esteja apenas cansado de pertencer à classe dos artistas absolutamente inofensivos, como os poetas parecem ter se tornado nas últimas décadas. Aparentemente, muito longe do perigo que poetas como Óssip Mandelshtam pareceram oferecer. Isso ocorre por transformações sobre as quais não temos controle, ou por escolhas até mesmo formais dos próprios poetas? A discussão é longuíssima, mas resistirei à minha tendência-de-polvo, a de estender-me em várias direções numa única postagem, retornando a isso em outro momento. Trata-se, além do mais, de um daqueles debates em que "certo" e "errado" tornam-se impossíveis de definir. Nossa única opção talvez seja apenas isso que fazemos aqui, entre poetas, uma discussão crítica plural, com a busca de saídas múltiplas para nós insetos, cavando e cavando, em país bloqueado, sem achar escape.

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6 comentários:

Sérgio M. disse...

Garoto,
vc escreve bem mas difícil, tem q escrever mais popular assim o povo entende, ok? Continue trabalhando firme.

Ricardo Domeneck disse...

Meu caro,
eu diria que a dificuldade aqui está mais no assunto que em minha escrita, ainda que "minhas maneiras" não sejam exatamente límpidas.
Mas agradeço a visita e o conselho!
abraço
Domeneck

Leonardo disse...

Acho interessante essa discussão; mas me pergunto até que ponto ela deverá ser influênciada por um dado real de que hoje quase todos os que lêem poesia, de alguma forma, são ou se dizem poetas. Pergunto-me se isso não mudaria a posição do artista (poeta) e sua real função hoje em dia. O Bruno Tolentino costumava falar que poesia não deveria ter função, mas certa vez, conversando com ele, ele me disse que a função do poeta e de sua poesia, numa época onde poucos lêem poesia, seria o de (além de conversar com a tradição) resguardar linguagem e símbolos dos "senhoritos", sem, contudo, ficar engessado numa linguagem 'de ontem'. Acho que consigo perceber isso na poesia do Bruno, e hoje também na do Érico, que leio no momento.

Continue, a discussão é muito boa!

Ricardo Leal disse...

Caro Ricardo,

muita gentileza e boa mira na referência que você faz ao sentido de historicidade, dos seus regimes talvez ainda, e àquilo que eventualmente só aparece como historicismo. Sem tanto gume no corte reflexivo, meio às pressas acho que vale atentar para duas ou três articulações em torno do sentido que isso tem ou não em debate estético. Prosaicamente, porque se trata apenas de tornar explícitos uns contrastes bem singelos.

Poderíamos partir de um empréstimo garfado de Luiz Costa Lima, hors d´oeuvre. Se você pensa a respeito de história e verdade nesta conexão – assentimento, legitimidade, inserção do poeta “em sua comunidade ou momento histórico” - pode ser útil considerar que o tempo “não é só o que passa e nos dissolve. O tempo é constitutivo do que nele se faz” (LCL, seccionando in “História, Ficção, Literatura”; páginas 57 e 210-211 para quem gostar).

Nele, tempo, se faz também ficção, ie, ato de quem imagina produzindo (ou da imaginação criadora?...). Esta, ficção, poiesis de repente, ou in-scape do G. M. Hopkins, existe porque inscrita numa consciência trazida (ao menos de certo ângulo) pela mimesis, “viga que acolhe e seleciona os valores da sociedade e os converte em vias de orientação que circulam em suas obras”. Voltando à ficção, LCL aponta no entanto que, diferentemente da mimesis, ela tematiza “o ATO da imaginação produtora e não sua articulação com uma certa comunidade ou sociedade humana.”

LCC entende que ambas, ficção e mimesis, contrastam “com a demanda própria ao conceito – a busca de conhecer – e a demanda própria aos operadores – saber lidar com algo.” Ora, retomo, aí entra um grão de sal. Qual o status da ficção quando você começa a operar com a idéia de universo criado, sobreposta pelos pensadores cristãos ao antigo cosmos aristotélico? Muda a perspectiva, essa história de criação. E LCC pega apenas certo viés quando registra uma “hostilidade que o pensamento cristão desenvolverá quanto à ´fictio´”.

Hostilidade, hm, mas em termos. Se a) é no interior da pessoa humana que habita a verdade, como teorizou Agostinho ao refletir sobre livre arbítrio, e se b) faz sentido o cosmos no qual Aristóteles propõe sua mimesis, então c) mimesis e história, “cognitio” e “delectatio mentis”, “estético” e “não-estético” ganham/criam sentido na medida e no grau em que remetem à apreensão do que é realmente justo, bom e verdadeiro. A cidade e a história agostinianas – que vistas daqui de 2010 são também a de Dante, mas isto fica para outra – não são nada românticas e portanto não precisam excluir nem os seus desejos naturais, nem o direito natural. Afinam-se com uma realidade que até no plano do que é político se corresponde amorosamente com a ordem pessoal, e com o tempo resgatam ou viabilizam ficções as mais diversas.

E nelas, cidade e história cristianizadas, pessoalizadas, a ficção pode até contrastar com a “demanda própria ao conceito”, mas no plano da memória e da inteligência, do in-scape de quem escreve e de quem lê e recorda, também pode servir à filosofia. Nada a ver com trans-historicidades, ao menos não no viés...historicista. Para espanto de quem é refratário a certas peregrinações, não se pergunta a respeito da historicidade e seus regimes, ou não topa com a verdade re-velada. Não que seja fácil hoje: é ainda LCC quem evoca Broch e Arendt refletindo sobre Virgílio e a perda da antiga função da arte “por efeito da secularização do Ocidente” (ibidem, 303).

No mais, é a hora. Porque você tem razão; confundir artesanato poético e souvenir é apagar toda nuance e contraste, matar o que é tradicional e desarticular miseravelmente qualquer possibilidade de intervir. Insetos assim, cavamos.

Ricardo Leal disse...

Fazendo ponte também com o post de 21/4, link a seguir para um outro, de EN, do ano passado, sobre pensar com Adorno: http://ericonogueira.blogspot.com/2009/09/denken-wir-mit-adorno.html#comments

Aproveito para corrigir as iniciais do professor da PUC-RJ referido aí em cima, invariavelmente LCL.

Ricardo Domeneck disse...

Caro Leal,

vou responder com calma, assim que encontrar um segundo. De qualquer forma, quis dizer que me alegra muito que possamos todos estabelecer este diálogo.

até mais

Domeneck

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