sexta-feira, 28 de maio de 2010

"Frangalhos de um discurso, amoreco" ou "A paixonite segundo R.D."


Como andei falando sobre lírica amorosa e também lendo ultimamente muitos poetas que se lambuzaram nela, quis entrar no fim-de-semana imerso na dita cuja, como leitor, como poeta, e, como algumas postagens atrás, compartilhando, com os leitores generosos deste espaço, quatro poemas meus desta tal lírica amorpsicótica, tirados do meu primeiro livro, Carta aos anfíbios, e do terceiro, Sons: Arranjo: Garganta, terminando com um "quase inédito" de plurilíngua, que foi publicado apenas no Diário de Poesía, de Buenos Aires. Que venha o fim-de-semana, que traga novos começos para nossa vidinha . Nós somos, afinal, nada mais que fragmentos de um discurso amoroso.


O pão partido

Houvesse um telefonema,
haveria uma voz; eu
emagreço, que prazer
ajustar-se melhor
aos ossos. Levitar
até o teto; basta mover-se
na direção certa
para viver de inverno
em inverno. Meu corpo
seu estrado, o colchão
a falta, em concha
peito e costas
aconchegam-se
em útero: e a falta
redobrada.
O cordão umbilical uma
ausência explícita, que
digestão suporta
uma hóstia?
A boca abre-se à
expectativa,
saliva
produzida nas glândulas
da anunciação.
Pão partido, corpo prurido
every single time.
Mas separam-nos
o jejum e as
orações de minha mãe,
a possibilidade
de um oceano
e seu condiloma
imaginado.
É 1654 e cavalos
(oito) tentam separar
as duas metades de
uma esfera unidas
pelo vácuo; em apenas
dois por cento das caças
um urso polar
tem sucesso mas
seu pêlo é branco! e oco
para conduzir melhor o sol;
brilhar e desaparecer:
camuflagem perfeita e o único
predador a fome.
A hóstia sempre
um prelúdio,
não uma rememoração.


de Carta aos anfíbios (2005)


§


A pele medrosa cicatriza-se: e recomeça


1.

esta perturbação inicial, garfo
que não encaixa na boca
e a comida cai, num prato
assustado; o copo
d’água vai de encontro
ao dente. A garganta
estende as palmas
de vontade.

2.

O algodão úmido
na testa eriça-me
o quebranto; o soluço
acelera o ritmo.

Visto o casaco alheio
e me perco no cheiro,
um instante,
um instante.

O flagrante
do dono
perturba-me
o sono.

3.

Timidez
de pés

em casa
estranha,

que ao
ensaio

da distribuição nova
do peso descobrem

a levitação.

4.

O chão é um convite
recorrente, constante; algo em nós espera
o reencontro. Até que o vento.


de Carta aos anfíbios (2005)



§

Autorretrato para agência de acasalamento

a-
pós
a noite
em claro com
Antonioni / Plath / Radiohead
você pergunta-me
pela vida humorosa?
(cf. O. de A.)
auto-devastar-se
a única
art we master,
só nos entendendo
via subtração,
nossos encontros
fantásticos!, cavalheiros,
como anseio
por ele
que piora tudo;
horas
para arrumar-se
e no fim
estes trapos?
ornam,
combinam,
caem
tão bem;
aguardo o dia
em que tudo
o que disser-me
o ventríloquo
seja a citação
de alguém algures,
como desaparecer 
completamente;
nosso amor durou
quinze hematomas 
e a incubação
da escabiose,
minha herança!;
quando acordei,
cada coisa em seu 
lugar onde
eu, eu, eu
deixara;
ah! amar é
inter-
ferir,
salvar
se de si

de Sons: Arranjo: Garganta (2009)


§

Cantiga de ninar para amante surdo


Eres the plague meiner fauna,
my allerdearest passerculus
infenso al questionnaire
dos meus needs, do quê

tens angst, nha kretxeu,
if otros páxarus planam
alrededor d´your caixola
toraxique like girassóis

or schmetterlinge y
hay keine delicatessen
full d´engrunes
nel malheur di toalha

da vuestra távola que
balança wie manzanas
dil otonio u soçobram
sin solaciolum al soluço

meu y el plenu século est
aranearum a memorandar
le gravity ou statistics
entre epiderm y shampoo,

bicho-da-seda of my own
cheveux, my holzpferdchen
di carroussel, sussurro-te
questo lullaby, quirinsiozo

nonchalant y taube
sorda of mi olvido:
ecco ichyojeu
sobjective,

mon callboy, j´am deine
mullah, et con one sonrisa
sur la fresse cargo tu planetoid,
heavy hecho plumas y paese,

mio xodó, tal qual un atlas
avec avlas y árvulis y
everything di solombra
sur riachos, mein benzinho

gauche de pampers da vita,
basia mille, deinde centum
y tremblo trotzdem dibaxu
der sonne, hasta que deslizes

under los lençóis di camomila
sur tua llit, oh! l´alba assovia,
de morsus a ictus glutona-se
teu focinho avec mis tatters,

ronron meu,
si hay rincão
more londji
von mim,

mendigo-te:
do not go,
ay paura da
departure,

baby bobo


de Dossier de poesía brasileña reciente (Buenos Aires: Diário de Poesía, 2008)

.
.
.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Um poema que nos transporta para o inverno russo de 1812

Foi Ezra Pound quem disse que o quanto um poema nos marca a memória pode servir de indicador, ou algo do gênero, de sua qualidade. Entre tantos jargões inventados por ele, alguns bem prejudiciais (mais por nossa culpa), eu diria que este ainda segue útil, talvez por sua grande simplicidade, assim como o bonito "only emotion endures". Há poemas que ficam na memória por nos emocionarem com grande potência, outros por se tornarem marcas de um momento que passou, bom ou ruim, outros por nos ajudarem às vezes a sair da cama. Já escrevi sobre isso aqui. Vários poemas destes me acompanham, falo sempre, como exemplos, sobre o "Autotomia", da Szymborska, que me salvou a vida, com o seu "Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida. / Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou"; o "This world", do Creeley, que me ajudou a sair da cama em manhãs de tristeza de todos os break-ups, sussurrando seu "let light // as air / be relief"; o "Amar", do Drummond, com o conselho de quem já carregava mais cicatrizes do que a possibilidade de se inflamar: "e na secura nossa / amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita." Esses são os poemas que nos acompanham. Por mais que falemos em estéticas e poéticas e políticas, no fim e ao cabo de tudo, é por causa destes poemas que escrevemos poesia e é, principalmente e mais importante, por causa destes poemas que queremos ler poesia. Nós queremos no fundo e na superfície, nos ossos e à flor da pele, ser arrebatados. É claro que há poéticas que exigem outras gamas de emoções e até mesmo a ausência delas. Precisamos de todos. Mas a maneira como muito da poesia brasileira do pós-guerra pareceu recusar-se a fornecer este arrebatamento está ligado ao parco público leitor que hoje temos. Afinal de contas, que obrigação os leitores têm de se interessarem por nossas meditações metalinguísticas? Nenhuma. Para acabar com o sentimentalismo, parecemos decidir obliterar a emoção. Sou o primeiro a vestir a carapuça, sei que muito de meu trabalho já foi chamado de frio e abstrato e intelectualizado.

Acho muito interessante notar que nem estou falando, aqui, dos poemas mais importantes ou famosos destes autores. "Amar" e "This world" são quase marginais na obra de seus autores. Poderia também falar sobre aqueles gigantes poéticos que praticamente transformam nossa maneira de pensar e imaginar, como, no meu caso particular, os sublimes e lindos "The Wreck of the Deutschland", de Hopkins, e "Janela do caos", de Murilo Mendes, sem mencionar livros como Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, Silence, de John Cage, ou as Investigações filosóficas, de Wittgenstein... estou me referindo aqui, na verdade, a poemas que são quase discretos. Minúsculos, marginais, carregam algo de tão poderoso em seu bojo que nos marcam como uma explosão.

Faço todo este preâmbulo para retornar à minha lista de all time favorites, e falar de um dos poemas que jamais saíram de meu crânio desde que o li, um pequeno poema de um poeta menor: trata-se de um texto do britânico Walter de la Mare (1873 - 1956), chamado "Napoleon".

Napoleon

'WHAT is the world, O soldiers?
.......It is I:
I, this incessant snow,
This northern sky;
Soldiers, this solitude
Through which we go
.......Is I.'


Walter de la Mare


Não sei se este poema é perfeito. Sei que me parece uma maravilha de intensidade. Lembro-me da primeira vez que o li. Era 1997, eu estava em São Paulo, para ser mais preciso, em um café do bairro da Liberdade, lendo uma antologia de poesia britânica, e eu me senti transportado para o inverno russo de 1812, para os campos nevados da retirada francesa, para dentro da cabeça de Napoleão. Quase tive uma vertigem. O poema, em seus sete versos, parece-me um épico de concisão. Sua tessitura sonora é bem mais interessante que as rimas simples poderiam indicar, com aquele "soldiers", repetido, ecoando em "solitude". A música que parece circundar o céu-da-boca naquele primeiro verso, "Whaaaat is the woooorld, oooh soooldiers?", sempre me dá vontade de declamar, de subir na mesa do café & address the multitude. Ele encena, de certa forma, a self-importance de seu personagem. Parece-me um retrato ao mesmo tempo jocoso e pungente, de um tirano, de um megalomaníaco, de um humano como você e eu, mas também de um romântico a projetar suas psicoses e neuroses e ego e paixão e mortalidade sobre a natureza e tudo ao redor. Não seria impossível ver neste poema uma espécie de diatribe em irrisão para o Romantismo. E - por que não? - para o poeta. Eu amo este poema.

Napoleão

O que é o mundo, ah! soldados?
.......Sou eu:
Eu, esta neve inextinguível,
Este norte, este céu;
Soldados, esta saudade
Que nos cerca como túnel
.......Sou eu.


(tradução de Ricardo Domeneck)


Walter de la Mare é mais conhecido como escritor de histórias infantis e algumas histórias de terror. Pertenceu a um grupo de poetas que, no início do século, tentaram reunir-se em antologias sob o título de Georgian poets (por escreverem sob o reinado de George V), tentando talvez imputar-se a importância dos Elizabethan poets. Não eram, alas, uns elizabetanos, ainda que eu tenha grande apreço por alguns deles, como D.H. Lawrence e Isaac Rosenberg.

Estas antologias incluíam, além de Walter de la Mare, outros poetas que seguem sendo lidos, como o ótimo (e obscuro no Brasil como poeta) D. H. Lawrence, os jovens Rupert Brooke e Isaac Rosenberg, o insuportável Siegfried Sassoon (em minha opinião), T. Sturge Moore e até mesmo Vita Sackville-West. O termo não é mais usado com muita frequência. O grupo via-se como "modernista", mas acabou alvo dos ataques de modernistas mais militantes, como Ezra Pound e Wyndham Lewis, que os viam como parte dos "conservadores" ou filhotes dos Yellow Nineties, como Pound gostava de dizer. Alguns dos poetas passariam, além do mais, a ser conhecidos como Great War Poets, por terem lutado na Primeira Grande Guerra, como Siegfried Sassoon, alguns nela tombando, como foi o triste caso de Rupert Brooke e Isaac Rosenberg. Já escrevi sobre estes poetas da Grande Guerra, num artigo tipicamente intitulado "Guerras Mundiais, utopia e distopia nas vanguardas, poesia e historicidade, função poética e referencial e outras obsessões, aos que encontram tempo para minhas loucuras.

No Brasil, teriam sido provavelmente chamados de "pré-modernistas", este rótulo que nos impede de ver a grande modernidade de um poeta des-lum-bran-te como Augusto dos Anjos, sem mencionar a maneira como esta narrativa crítica varre para debaixo do tapete nossos melhores poetas simbolistas da chamada "segunda geração", como Marcelo Gama e Pedro Kilkerry. Mas isso já é outra história.

.
.
.

sábado, 22 de maio de 2010

Retratos e uma conversa com Adelaide Ivánova

A fotógrafa brasileira e amiga queridona Adelaide Ivánova escreveu um artigo simpático até os cotovelos sobre os meus retratos-em-vídeo singelinhos para o site do festival de fotografia Paraty Em Foco, comentando também a fotografia do alemão Timo Klos. A aproximação que ela faz entre os trabalhos é bem perspicaz e legal. Não conhecia o trabalho do alemão, vou acompanhar o rapaz. Quem tiver interesse, dê uma passada pelo site, que tem alguns artigos bem legais.

Fico feliz, é claro, que estes vídeos despertem interesse. Já foram mostrados em galerias e clubes de Barcelona, Basel e Bruxelas. Comecei a fazê-los sem qualquer pretensão, era quase um exercício de aprendizado com luz, enquadramento, mas gostei do resultado de alguns a ponto de mostrá-los. Depois fui percebendo certas possibilidades, algumas implicações que me interessavam e segui com eles. A senhora Ivánova fez uma pequena entrevista informal comigo, conversamos um pouco sobre meu trabalho com vídeo em geral e sobre os retratos em particular. Reproduzo abaixo, como pequeno artigo fragmentário, sem as perguntas, as respostas que dei para a colega e três dos vídeos.

Conversa com a senhora Adelaide Ivánova

Naquele primeiro vídeo, chamado Garganta com texto (2006), eu estava tentando unir o dizer e o fazer, defendendo a oralidade pela própria oralidade e não com um texto escrito, além de começar a tentar resgatar, no meu trabalho, o caráter de performance que a poesia um dia teve com mais força. Uma referência muito importante para toda a minha "investigação" nesse campo é o trabalho do coreógrafo mineiro Klauss Vianna, que guiou o trabalho de pesquisa corporal de um grupo do qual fiz parte, com direção de Luzia Carion, e ainda com Verônica Veloso, Paulina Caon, Lígia Borges e alguns outros. Há ainda videoartistas que tiveram seu impacto no meu trabalho, como Pipilotti Rist, Joan Jonas, Vito Acconci e outros pioneiros da década de 60. Tenho muita paixão também pela forma como o francês Bruno Dumont filma.

Mas esses retratos-em-vídeo são diferentes, eu acho, dos meus outros trabalhos. Talvez neles haja um diálogo maior com fotógrafos germânicos como Walter Pfeiffer, Wolfgang Tillmans, Juergen Teller e Heinz Peter Knes, há uma certa tradição do "realismo" aqui na Alemanha que por certo me influenciou muito, algo que remonta a August Sander e o casal Bernd & Hilla Becher.




A esta altura do campeonato, as referências são tão variadas e múltiplas que já não conseguiria ordenar uma lista de influências no meu trabalho, seja em escrita ou vídeo. Há diálogos com poetas sonoros como Henri Chopin, dadaístas como Hugo Ball e Kurt Schwitters e artistas brasileiros como Lygia Clark e Leonilson, todos muito importantes para mim como GENTE, como bicho humano, não só como "artista", essa palavra que me soa às vezes meio esquisita.





Quem me interessa muito hoje em dia entre os contemporâneos é a galera que trabalha entre os gêneros, misturando referências, os inclassificáveis, gente como os meninos do coletivo americano AIDS-3D ou a britânica Janine Rostron, que é mais conhecida como Planningtorock. Mas também gosto muito de videoartistas como o alemão Niklas Goldbach, a brasileira Janaina Tschäpe e a britânica Lenka Clayton, e poetas como a brasileira Angélica Freitas e o catalão Eduard Escoffet.

Agora, 3 dos all-time-favorites, para ficar apenas entre brasileiros:

- Arthur Bispo do Rosário
- Lygia Clark
- José Leonilson





Uma das coisas de que mais gosto quando faço estes retratos é justamente o SILÊNCIO... como trabalho primordialmente com palavras, sendo poeta e escritor, às vezes eu me canso imensamente das palavras e estes retratos são como um momento de quietude, sem implorar pela atenção do OUTRO com poemas, versos, rimas... mas apenas estar ali, com alguém, em silêncio, vendo-o desdobrar-se em si mesmo... talvez nem seja bom falar muito sobre esses retratos, porque eles têm um equilíbrio muito delicado, eu penso, que seria fácil afogar com palavras. Todas essas possibilidades que você mencionou estão nos vídeos. Há certa violência no resto do meu trabalho poético e em vídeo, cheios de referências a secreções e cicatrizes, mas nesses vídeos eu sempre tive muito prazer na busca justamente da delicadeza, da fragilidade, do quieto, como nos trabalhos de Leonilson, por exemplo, uma espécie de lirismo que não tem medo de ser apenas singelo e nada mais. Há esta relação entre tempo e espaço, confundindo fotografia e vídeo, há uma certa abordagem muito levemente erótica, talvez, mas no fundo são só momentos de "aproximação" do OUTRO, quando esqueço um pouco meus pesadelos apocalípticos e tento estar em silêncio com alguém.


.
.
.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Morre, aos 79 anos, o poeta italiano Edoardo Sanguineti

Mesmo que o título desta postagem imite o estilo das manchetes de jornais brasileiros, o que se segue não é exatamente um artigo sobre Sanguineti e sua morte. Trata-se mais do relatório de uma surpresa. Estava em correspondência eletrônica com o tradutor Maurício Santana Dias, conversando sobre sua futura postagem para o ciclo crítico sobre Guido Cavalcanti na Modo de Usar & Co., quando ele me informou sobre a morte do poeta genovês. O baiano Maurício Santana Dias, nascido em Salvador e residente em São Paulo, onde leciona Literatura Italiana na USP, é hoje, ao lado de Geraldo Holanda Cavalcanti, um dos tradutores brasileiros mais atentos e produtivos no trabalho de manter-nos informados sobre o que ocorreu na poesia italiana do século XX. No ano passado, publicou-se no Brasil sua tradução para o importantíssimo Lavorare Stanca (1936), de Cesare Pavese (1908 - 1950), com o título Trabalhar Cansa (São Paulo: Cosac Naify, 2009), que eu desejo de todo o coração que venha a ter no país a mesma influência que as traduções de Creeley e Celan tiveram na década de 90. A notícia da morte de Edoardo Sanguineti trouxe-me a constatação de como eu conhecia pouco de seu trabalho e da poesia italiana do pós-guerra.

§

Poema de Edoardo Sanguineti (1930 - 2010),
do livro Reisebilder (1971),
em tradução de Maurício Santana Dias:


à funcionária da aduana em minissaia, que me escolheu com seus
[olhos de sibila
e de pomba, de dentro de uma fila interminável de viajantes em
[trânsito, eu disse
toda a verdade, confinado num
séparé-confessionário de madeira
compensada:
.................disse que tenho um filho que estuda russo e alemão;
que
Bonjour les amis, curso de língua francesa em 4 volumes, era
para minha mulher;
.................e estava pronto a dizer mais: sabia que foi
[Rosa Luxemburgo
quem lançou a palavra de ordem "socialismo ou barbárie"; e podia
fazer disso um madrigal estrepitoso:
........................mas suava, vasculhando os bolsos,
buscando em vão a conta do Operncafé; e então você irrompeu
arrastando atrás de si até os meninos, maravilhosos e maravilhados:
(a expulsávamos com os mesmos gestos duros, eu e minha beatriz
democrática de farda):
.................mas para mim o irreparável já se tinha consumado,
ali, na fronteira entre as duas Berlins: quarentão aos pés da guarda.


§


Com a exceção da poesia de Pier Paolo Pasolini (1922 - 1975), que li sempre com muita paixão e interesse, conheço apenas poemas esparsos de Edoardo Sanguineti e de alguns de seus companheiros do chamado Gruppo 63, como Nanni Balestrini, Amelia Rosselli, Elio Pagliarani e Antonio Porta.

§


Poema, no original italiano, de Amelia Rosselli (1930 – 1996),
do livro Variazioni belliche (1964):

Tutto il mondo è vedovo se è vero che tu cammini ancora
tutto il mondo è vedovo se è vero! Tutto il mondo
è vero se è vero che tua cammini ancora, tutto il
mondo è vedovo se tu non muori! Tutto il mondo
è mio se è vero che tu non sei vivo ma solo
una lanterna per i miei occhi obliqui. Cieca rimasi
dalla tua nascita e l'importanza del nuovo giorno
non è che notte per la tua distanza. Cieca sono
chè tu cammini ancora! cieca sono che tu cammini
e il mondo è vedovo e il mondo è cieco se tu cammini
ancora aggrappato ai miei occhi celestiali.



§


O que me surpreendeu também é que não houvesse me ocorrido, até então, pesquisar a chamada Neovanguardia italiana para o nosso debate sobre as retomadas das estratégias das vanguardas do início do século XX, assim como o trabalho do Gruppo 63 parece ser um campo frutífero para a meditação sobre a conjunção entre ética e estética, e as implicações políticas do trabalho poético.

§

Poema, no original italiano, de Nanni Balestrini (n. 1935),
do livro Il pubblico del labirinto (1992)


PROLOGO EPICO

Eccomi qua ancora una volta
seduto di fronte al pubblico della poesia
che seduto di fronte a me benevolmente
mi guarda e si aspetta la poesia
come sempre io non ho niente da dirgli
come sempre il pubblico della poesia lo sa benissimo
certamente non si aspetta da me un poema epico
visto anche che non ha fatto niente per ispirarmelo
l’antico poeta epico infatti come tutti sappiamo
non era il responsabile della sua poesia
il suo pubblico ne era il vero responsabile
perché aveva un rapporto diretto
con il suo poeta
che dipendeva dal suo pubblico
per la sua ispirazione
e per la sua remunerazione

la sua poesia si sviluppava dunque
secondo le intenzioni del suo pubblico
il poeta non era che l’interprete individuale
di una voce collettiva che narrava e giudicava

questo non è certamente il nostro caso
non è per questo che siete qui oggi in questa sala
purtroppo quello che state ascoltando non è
il vostro poeta epico

e questo perché da tanti secoli
come tutti sappiamo
la scrittura prima
e successivamente la stampa
hanno separato con un muro di carta e di piombo
il produttore e
il consumatore della poesia scritta
che si trovano così irrimediabilmente separati
e perciò oggi il poeta moderno
non ha più un suo pubblico da cui dipendere
da cui essere ispirato e remunerato
solo pubblici anonimi e occasionali
come voi qui ora di fronte a me
non più una voce collettiva
che attraverso la sua voce individuale
racconta e giudica

il suo rapporto col pubblico ha perso ogni valore dicono
non gli rimane che concentrare il suo interesse
sui problemi dell’individuo singolo
sui suoi comportamenti particolari

il poeta moderno è autosufficiente
praticamente mai remunerato
non pronuncia alcun giudizio
ciò che conta per lui ci dicono

è soltanto il suo
immaginario
le sue ossessioni consce
e inconsce
perché per lui non esiste ci dicono
che l’individuo come singolo
irriducibilmente diverso
e separato dagli altri
e così il poeta moderno
solo
o anche davanti al pubblico della poesia
dialoga individualmente con la sua poesia
la immagina naturalmente come un’affascinante signorina
e vorrebbe che anche voi la immaginaste così
che si trova in questo momento qui di fianco a lui
cioè a me e cioè dunque lì di fronte a voi.



§


Meu trabalho de pesquisa sobre as estratégias ético-estéticas do pós-guerra concentrou-se nos grupos do pós-guerra imediato, como o Grupo de Viena, os Lettristes de Paris, o Dau al Set de Barcelona, o Noigandres de São Paulo, a Escola de Nova Iorque, ativos entre o fim dos anos 40 e o início dos anos 60, quando começa o trabalho de alguns dos poetas incluídos na antologia I Novissimi (1961), talvez uma das antologias mais famosas do mundo, ao lado da New American Poetry (1960), editada por Don Allen.

§

Poema, no original italiano, de Antonio Porta (1935 - 1989),
do livro Passi passaggi (1980):


Amleto, 3

che cosa significa dunque che il linguaggio tende
ad agghindarsi
che lo scrivente stia in calzamaglia a controllare
un’erezione che non c’è che non ci sarà

la madre vuole essere penetrata e apre, ecco
sul pavimento la sua vulva fiorita
lei ha preparato il momento e tu richiudilo
Ofelia nel pelo della tua mente seppellendoci
il padre sotto il pavimento

e a me stesso, infine:
se hai coraggio l’insemini, fra nove mesi
in questa stessa ora potrai riconoscere, allora
sì fingere sul serio di essere vivo
se un non-nato può nascere.
Nessuno può raggiungere Ofelia
(ancora non mi chiamo: Nessuno)
chi le toglie l’ingombrante verginità la rende
uguale alla madre
il ciclo della riproduzione riprende il suo corso
la specie è salva.



§

Estudei italiano por seis meses, para poder ao menos ler os poemas de Cesare Pavese e Pier Paolo Pasolini no original. Meu conhecimento da língua é mais que sofrível, mas é a única maneira de ter contacto com a poesia do país, já que as editoras no Brasil decidiram matar-nos de subnutrição.



§

Poema, no original italiano, de Elio Pagliarani (n. 1927)
do livro La Ballata di Rudi (1995)

A spiaggia non ci sono colori


A spiaggia non ci sono colori
................................la luce quando è intensa uguaglia
la sua assenza
................perciò ogni presenza è smemorata e senza trauma
acquista solitudine
.............................Le parole hanno la sorte dei colori
disteso
sulla sabbia parla un altro
.................................sulla sabbia supino con le mani
dietro la testa le parole vanno in alto
............................... chi le insegue più
bocconi con le mani sotto il mento
..............................le parole scendono rare
chi le collega più
................... sembra meglio ascoltare
in due
............. il tuo corpo e tu
............................... ma il suono senza intervento è magma è mare
non ha senso ascoltare
...................Il mare è discreto il sole
non fa rumore
..............................il mondo orizzontale
..................è senza qualità
.................................. La sostanza
è sostanza indifferente
..............precede
................................. la qualità disuguaglianza.



§


Encerro esta postagem com a reprodução de um artigo de Alfonso Berardinelli, publicado por ocasião da morte de Edoardo Sanguineti.



"Così Sanguineti cambiò il clima della poesia"

Alfonso Berardinelli ricorda il poeta scomparso oggi a 79 anni

Bisogna ammettere che il suo arrivo sulla scena letteraria italiana ha cambiato il clima, tra la fine degli anni Cinquanta e gli anni Sessanta. Sembrava che sapesse tutto, che avesse letto tutto, che fosse in grado di avere l’idea giusta – la sua – su tutto. Ideologo e poeta marxista, come del resto Pier Paolo Pasolini. Ma più marxista di Pasolini, e in più sembrava ‘senza cuore’, un distruttore della continuità letteraria e della tradizione. Le sue poesie erano come schegge aliene, meteoritiche. Sembravano scritte per non essere capite o per essere studiate. Spaventava la sua capacità di mescolare e combinare le parole in una forma mai vista. Era l’avanguardia in laboratorio. Ma in lui c’era anche l’accademico, il lettore interprete di Dante, l’erudito e soprattutto il dialettico, capace di dimostrare che era vera anche una cosa, se non falsa, comunque quasi insostenibile.

E sembrava anche che Sanguineti avesse in mano la formula per risolvere una volta per tutte il problema del rapporto giusto fra marxismo rivoluzionario e avanguardie irrazionaliste, fra materialismo dialettico e psicanalisi. Il suo momento sono stati gli anni Sessanta, quando i suoi competitori e avversari, dotati degli stessi strumenti ma con animo diverso, erano gli altri due poeti ideologi: Pasolini, appunto, e Franco Fortini, a loro volta in polemica ma con un maggiore rispetto reciproco. Sanguineti invece ha sempre voluto essere e restare solo con la sua idea dell’avanguardia come unico tipo di letteratura novecentesca che avesse prodotto qualcosa di buono.

Come critico ai suoi esordi sembrò un grande, imbattibile critico. Una delle punte della neoavanguardia italiana, con caratteristiche analoghe, come tipo di intellettuale, ad Arbasino e a Eco, straordinari divoratori di cultura. I loro articoli, i loro libri, rispetto a quelli dei letterati precedenti, sembravano usciti direttamente da un seminario universitario, da esplorazioni sconfinate di tutto il sapere e dell’attualità contemporanea. Critico apprezzatissimo, dunque. Ma anche, cosa che lo ha danneggiato, prigioniero delle sue formule dialettiche alle quali è rimasto sempre molto affezionato. E se in lui una revisione dei presupposti marxisti e avanguardisti avrebbe potuto esserci, con il passare degli anni, quella è un’operazione che non ha voluto fare. Ha mantenuto una quasi incredibile, avara coerenza, che in un certo senso lo ha fatto rimanere (come forse lui voleva, perché si sentiva uomo d’avanguardia) per sempre giovane.

Non è mai cambiato. In ogni dibattito, anche fino a poco tempo fa, era difficile sentirgli dire qualcosa di diverso da quello che aveva detto nel corso dei decenni precedenti. Questo da un lato ha ipnotizzato certe ondate generazionali di seguaci assoluti, dall’altro lo ha molto isolato, perché nel frattempo sono cambiati tutti i fondamenti del ragionamento sulla letteratura. Credo che negli ultimi anni si sentisse piuttosto fuori. Con soddisfazione, probabilmente, perché era bravissimo a giustificare con le sue categorie di letterato rivoluzionario qualsiasi cosa gli capitasse o capitasse nel mondo”. (testo raccolto dalla redazione)


di Alfonso Berardinelli - © - FOGLIO QUOTIDIANO

§





.
.
.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Na companhia de DJs, coletivos e outros performers

§ - Na companhia de DJs, coletivos e outros performers.

Nosso novo projeto semanal /// chamado SHADE inc ///, produzido com o coletivo de que faço parte e, como o anterior, ainda às quartas-feiras, entrou em seu segundo mês. Tenho prometido escrever a respeito aqui, indicando alguns dos performers e músicos experimentais que têm se apresentado at our own sweet Cabaret Voltaire, mas ando tão atarefado, sem um segundo de respiro, sem ao menos poder editar os vídeos que tenho feito às quartas-feiras, com os DJs e artistas convidados. Estou muito feliz com o trabalho, voltamos a nos conectar com o que há de mais interessante e ponta-de-lança acontecendo em música eletrônica e performance no Berlimbo.

No primeiro mês, convidamos alguns veteranos como Wolfgang Müller (do coletivo Die Tödliche Doris, da década de 80), Peaches (XL Recordings), Ellen Allien (BPitch Control) e Heartthrob (M_nus Records).

Nesse mês de maio, teremos alguns excelentes jovens, alguns já bastante conhecidos, como o parisiense Thomas Muller, dividindo as turntables com o jovem alemão Florian Pühs. Uma das melhores performances até agora foi a "Lecture on the Intellectual History of Cannibalism", da britânica Leila Peacock. No mês que vem, algumas lendas e novas estrelas, como Apparat, os Gebrüder Teichmann e o coletivo AIDS-3D.

Nosso website já está no ar e servirá também como revista e blog, com sugestões de artistas e músicos e novas bandas. Quem estiver interessado em música eletrônica e performance produzida no Berlimbo, tem novo endereço na Rede: a página da nossa SHADE inc.

Vou tentar desaguar algo do material por aqui também.

Abaixo, a filipeta para maio de 2010. Todo mundo reconhece a foto que parodiamos/reencenamos?





.
.
.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Com poetas espanhóis e alemães

§ - Na companhia de poetas espanhóis e alemães.


Ocorreu na semana passada, aqui em Berlim, entre a quarta-feira e o sábado, um festival/encontro de poetas jovens da Espanha e da Alemanha. Nomearam o festival Brücke/Puentes, como a antologia brasileira/argentina da editora do Fondo de Cultura Económica. Participaram alguns dos poetas alemães mais conhecidos e respeitados a surgirem nesta década que se encerra, como Monika Rinck (1969) - de quem traduzi dois poemas para a Modo de Usar & Co., Hendrik Jackson (n. 1971) e Daniel Falb (n. 1977). Entre os espanhóis estava uma das poetas de que mais gosto na Espanha, a excelente Sandra Santana (n. 1978), de quem traduzi vários poemas, e que dirige um dos mais interessantes projetos poéticos da Rede, pesquisando o "livro por vir", com seu coletivo El Águila Ediciones. Sua poética parece unir-se, por veios poéticos subterrâneos, a outros contemporâneos espalhados pelo mundo, poetas que aprecio muito, como a argentina Lucía Bianco (n. 1979), a brasileira Juliana Krapp (n. 1980), ou o belga Antoine Wauters (n. 1981) --- uma espécie de perplexidade perante a linguagem e perante esse jogo divertido e ao mesmo tempo assustador de signi --- ficar.


Do livro Es el verbo tan frágil (2008), de Sandra Santana


El médico le rogó que tratase de ser más concisa: “Exactamente, ¿dónde le duele?”. Pero, en el transcurso del movimiento del dedo índice hacia la rodilla, aquel dolor metálico se disolvía en una especie de cosquilleo burbujeante en el talón izquierdo. Detuvo la mano avergonzada y empezó de nuevo, tratando esta vez de prestar un poco más de atención.

.

O médico pediu-lhe que tentasse ser mais precisa: “Onde dói, exatamente?”. Mas, no trajeto em movimento do dedo indicador ao joelho, aquela dor metálica se dissolvia em uma espécie de cócega borbulhante no calcanhar esquerdo. Deteve a mão constrangida e começou de novo, tentando prestar desta vez um pouco mais de atenção.

(tradução de Ricardo Domeneck)

§


Dos outros poetas espanhóis presentes, gostei muito de conversar e ouvir o poeta madrilenho Carlos Pardo (n. 1975), autor de El invernadero (1995), Desvelo sin paisaje (Pre-Textos, 2002) - /// Premio de Poesía Emilio Prados///, e, recentemente, Echado a perder (2008) - /// Premio Internacional de Poesía Generación del 27 ///.


El muerto y su referente
Carlos Pardo

DEDUCE mi estatura:
un palmo por encima del
idéntico perímetro craneal.
Mira si tengo bultos.
Quizá me reconozca por su nombre
y sea el de la silueta
en el diván.
Es mi padre, le hablo
de mí al borde de una orografía que
podría ser colina y de una hilera
de olivos hacia la pendiente
del horizonte. Persevero
como bien consumible
y, después, ese trozo
que nadie quiere una vez sacudido
el mantel, ni los pájaros
ni el viento,
ese trozo soy yo.

Era cuando la espiga
iba a dar a un arroyo, a su pequeña
comunidad.
El día del entierro
de un familiar me acompañabas, Padre,
por un sendero de granito.
Repasábamos
la cepa genealógica,
la niñez de tu esposa y la ruptura
con la anterior.
Y ya no había muerto
ni tierra ni real
olor a tierra.
El paisaje,
un inventario de diminutivos.


.
.
.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Hoffmann na sacola

§ - Na companhia de E.T.A. Hoffmann, no Mercado dos Gendarmes.


A editora Cosac Naify lançou este ano, pela primeira vez no Brasil, o último relato do alemão E.T.A. Hoffmann (1776 - 1822), intitulado Des Vetters Eckfenster (1822), traduzido por Maria Aparecida Barbosa como A janela de esquina do meu primo (São Paulo: Cosac Naify, 2010), com ilustrações de Daniel Bueno, quarta-capa de Modesto Carone e posfácio de Marcus Mazzari.

O relato é bem diferente do que nos acostumamos a associar com Hoffmann, sendo considerado um precursor da literatura realista que se tornaria hegemônica em pouco menos de duas décadas. O relato seria também uma das primeiras instâncias em que a "multidão" se torna personagem do texto literário, influenciando Edgar Allan Poe e seu "The Man of the Crowd" (1844), mais uma vez mostrando-se precursor do que passaríamos a associar com a modernidade, a partir, por exemplo, do trabalho poético de Charles Baudelaire. De qualquer forma, não é sobre isso tudo que vou escrever aqui. Como o relato se passa em Berlim, mais precisamente na praça do Gendarmenmarkt (Mercado dos Gendarmes), a Cosac Naify convidou-me para escrever um texto sobre o local hoje. Há duas semanas, com o livro de Hoffmann na sacola, peguei o bonde e fui para a praça, onde passei umas horas e alguns copos de vinho na antiga taverna onde Hoffmann costumava se embebedar. A editora publicou este fim-de-semana, no blog que mantém, o texto que produzi naquela tarde. Convido os generosos leitores deste espaço a visitarem o blog da editora e, caso se interessem, podem ler abaixo meu pequeno relato.


Mercado dos Gendarmes


No Berlimbo, abril é o mais temperamental dos meses. Após alguns dias de primavera enganosa, retorna o fim de inverno úmido, e os berlinenses e metecos preparam-se para mais uma ou duas semanas de hibernação. Como dizem os alemães, April macht was er will, abril faz o que quer. Ponho na sacola a edição brasileira do último conto de E. T. A. Hoffmann, o esquisito, e me ponho em marcha para o Gendarmenmarkt, ou Mercado dos Gendarmes, onde tanto se passa a história do alemão, como também é onde viveu o próprio Hoffmann nos últimos anos de sua vida, na esquina da Charlottenstrasse com a Taubentrasse. Havia, até então, estado duas únicas vezes no Gendarmenmarkt. A primeira delas para um concerto, no qual meu amigo Ulrich Grau tocava a trompa, com a Nona Sinfonia inacabada de Anton Bruckner e a estreia mundial do Concerto para violino do compositor contemporâneo alemão Jörg Widmann no programa daquela noite, na Konzerthaus. A segunda vez em que estive na praça que abriga, além da Casa de Concertos, a Igreja Alemã e a Igreja Francesa, foi para visitar com amigos o tradicional Weihnachtsmarkt que ocorre ali todos os natais, um costume que teria um paralelo com as festas juninas no interior de São Paulo e outros estados, com as barracas de bebidas quentes.

Segui com o bonde M1 até a Friedrichstrasse, lendo Hoffmann e pensando sobre os antigos gendarmes que deram nome ao local, há muito desaparecidos. De qualquer forma, outro nome de caráter militar, numa cidade onde ainda encontramos crateras das últimas loucuras militares. É pensando em Hoffmann, nas mudanças vertiginosas por que passou esta cidade desde os seus dias, transformações e catástrofes marcadas por ensandecidas campanhas militares, de gendarmes ou não, que eu desço a Friedrichstrasse, área por onde passo com pouca frequência.

Há uma cãibra no ar, uma tensão estranha, policiais espalhados por todos os cantos. Lembro-me então de que estamos muito próximos do dia 1° de maio, este gracioso “Dia Internacional do Trabalho”, mas também chamado, pelos moradores desta que é a cidade onde Rosa Luxemburgo foi assassinada, de Kampftag der Arbeiterbewegung (Dia de Luta do Movimento Trabalhista), quando ocorrem as manifestações anuais, choques por vezes violentos entre protestantes e a polícia que se aglomera na capital do país. Caminho com os olhos buscando as placas que sinalizam a direção para o Gendarmenmarkt, quando ouço alguns gritos e vejo um aglomerado em frente a uma das boutiques típicas nesta rua principal da cidade. Talvez guiado por aquela vertigem de rua, chego mais perto e vejo, entre as pernas dos transeuntes, agora espectadores, quatro policiais rendendo, com violência, um homem que segue gritando em uma língua que não conheço. Um dos policiais tem o joelho nas costas do homem, quase à sua nuca, e o homem, já algemado e ainda gritando, tem ainda outros dois policiais com os joelhos sobre si, abaixo da cintura e sobre suas pernas, na dobra dos joelhos. Meu corpo estrangeiro se encolhe todo, como um animal acuado, reflexo de imigrante, meu estômago revira-se em ressaca de asco por aqueles policiais. Se o aglomerado de transeuntes estivesse olhando para o alto, eu teria esperado o Anjo de Benjamin, ou ainda melhor, o do Apocalipse.

Chego ao Gendarmenmarkt com o frio cortando a cara e o estômago ainda nublado, e começo a procurar a antiga taverna Lutter & Wegner, que fica bem abaixo de sua antiga janela e onde Hoffmann costumava se embebedar. A esta altura, um copo de vinho tinto gritava em minha imaginação, pedindo para ser ingerido, quem sabe até o nível alcoólico permitido. Pela lei? Não, apenas pela minha capacidade de escrevinhar. Demorou um pouco para que encontrasse a taverna, porque buscava a que existia em minha imaginação, alguma sala escura, algo saído dos próprios contos de Hoffmann, não aquele restaurante sofisticado que hoje ali existe sob o mesmo nome. De qualquer maneira, aquilo espelhava, para mim, as próprias transformações por que passou esta parte da cidade desde a época do escritor. Se o último conto de Hoffmann descrevia a movimentação vivíssima de uma área residencial, as ruas que cercam hoje o Gendarmenmarkt conhecem, de mercado, apenas o que grandes lojas de designers internacionais têm a oferecer, além dos hotéis mais caros da cidade, como o Hilton e o Regent. Sabendo que não teria dinheiro para comer naquele lugar, entrei mesmo assim na então-taverna-boêmia, hoje-restaurante-rico, com a efígie de Hoffmann em homenagem à entrada. Que o leitor perdoe o hábito folclórico de escritor jovem, esta vontade de estar entre as mesmas quatro paredes que abrigaram um antepassado grande e famoso. Sonho de osmose.

O garçom com cara de tédio demorou, como sempre acontece em Berlim, até que eu pudesse pedir o idolatrado salve-salve copo de vinho tinto. Com o livro na mão, pus-me à janela, à espera e esperança que passassem, se eu tivesse sorte, alguns jovens moços alemães, bonitos como potros. Mas eu tinha pouca esperança e mesmo esta se frustrou. No restaurante, apenas senhores e senhoras antiquíssimos, com certa auréola de bolor, provavelmente fingindo viver ainda na década de 30 ou 40. Quando vejo estes velhotes alemães, com suas estruturas ósseas de cristal que parecem poder se quebrar ao toque da brisa, é justamente a pergunta que não consigo evitar: estavam onde, meus queridos, lá pelos idos de 1939, jubilavam pelas ruas ou se escondiam em porões? Depois do número de copos de vinho que meu parco orçamento de poeta permitia, saí da taverna, com o delírio de talvez ter inspirado algum vírus que resistira desde os tempos de Hoffmann, despregando-se das paredes e narinas adentro. Decidi caminhar alguns minutos pela praça, apesar do vento insuportável, indo da Igreja Alemã à Francesa e vice-versa, cercado por turistas, com seus exemplares atualíssimos de Let´s Go Germany, e eu por fim penso Let´s Go, Germany. Nem um moço sequer na praça, me pergunto se Hoffmann era bonito. As pinturas não prometem muito. Caminho então de volta para a minha caverna na antiga Berlim Oriental, cortando caminho pela multidão, que se mudara do Gendarmenmarkt para a sucessão de boutiques nas ruas adjacentes, entre o consumo e a consumação.

Ricardo Domeneck
Berlim, abril de 2010


.
.
.


NOTA: Leituras do fim-de-semana, como sugestões:

§ - o poeta latino Marco Valério Marcial; os mexicanos Xavier Villaurrutia e Salvador Novo; uma antologia de 1955, encontrada num sebo, que reúne os expressionistas germânicos, intitulada Lyrik des expressionistischen Jahrzehnts, ou "Poesia da Década Expressionista", com introdução de Gottfried Benn; e o último livro do brasileiro Marco Catalão, chamado O Cânone Acidental (2009).

Essa semana devo finalmente começar a ler o famoso Ferdydurke (1937), de Witold Gombrowicz, numa edição que trouxe de Buenos Aires há 4 anos.

.
.
.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Colagem, apropriação, redirecionamento

Ontem à noite, após publicar a postagem em que comento minha visita à exposição das colagens e fotomontagens de Wangechi Mutu, comecei a pensar sobre a técnica da colagem, suas formas, suas funções, seus contextos. Sua possível eficiência nos dias de hoje. Isso uniu-se a uma meditação que me ocupa há algum tempo, sobre a necessidade, em minha opinião, de revermos nossos conceitos de cânone (com sua etimologia de implicações religiosas) e de vanguarda (com sua etimologia de implicações bélicas), mas creio que este artigo não será o espaço ideal para essa longa discussão. Quero, por ora, apenas qualificar e elaborar algo do que escrevi na postagem-comentário anterior, entrando aos poucos neste ninho de vespas.

Collage, como sabemos, tem seu nome tirado da própria estratégia principal de coller (colar) materiais à superfície da tela, ligada também à técnica da assemblage. Alguns autores afirmam que a prática já era comum entre poetas-calígrafos no Japão, há séculos, assim como algo dela pode ser encontrado nas técnicas de composição de painéis da arte sacra medieval. No entanto, nós associamos a colagem primordialmente com a arte visual modernista, quando Picasso, por exemplo, passa a introduzir pedaços de jornal em suas pinturas. A técnica assumiria suas características mais conhecidas com os dadaístas berlinenses, como Hannah Höch e Raoul Hausmann, em suas colagens e fotomontagens.


Hannah Höch (1889-1978) - "Cortado com a Faca de Cozinha DADA Através da Pança de Cerveja da Última Época Cultural da Alemanha de Weimar" (1919).


Quanto a seu trabalho formal, apesar dos preconceitos e clichês que buscam ver apenas falta de seriedade, caos e niilismo no trabalho dos poetas e artistas ligados a DADA, qualquer olho treinado percebe a clara preocupação e cuidado de composição nas colagens de Höch, Hausmann ou Kurt Schwitters, tanto quanto nas abstrações geométricas dos construtivistas.



Kurt Schwitters (1887 - 1948), Das Undbild(O Retrato-E), 1919


Enquanto a arte e literatura oficiais das Academias seguiam interessadas no "Belo", algo já estabelecido, com pendor neoclassicista, imerso em abstrações e das Ideal, ao mesmo tempo o mundo europeu naufragava na Grande Guerra. Os dadaístas (peço que o caro leitor atente para o verbo) usavam a colagem, apropriando-se do Histórico (trechos dos jornais), redirecionando-os em uso, para satirizar e recusar a cultura belicista e hipócrita de sua época, como os expressionistas compunham suas "canções para o Apocalipse", muitos deles unindo os esforços, como foi o caso de George Grosz. Apenas um pensamento artístico a conjugar estética e ética trabalharia nestas linhas. O que tento argumentar é que a colagem não era apenas o fruto de um pueril desejo de ser "original" ou de gerar alguma "novidade estilística"; ela tinha uma função pensada, em um contexto específico, como qualquer trabalho formal. A palavra apropriação ajuda-nos, aqui. Pois o nome "colagem" não deixa de ter seu caráter mais formalizante, se me permitem. Creio que, no pós-guerra, um dos grupos que melhor compreenderam o trabalho dos dadaístas em sua forma, função e contexto foi a Internacional Situacionista. Em Guy Debord, seu principal teórico e praticante, a colagem renasceria na técnica do détournement, algo que engloba a apropriação e o desvio-redirecionamento de material de contextos alheios. É claro que algo disso estava também em Marcel Duchamp, nunca realmente ligado aos dadaístas.


Guy Debord (1931 - 1994) - trecho inicial do filme La Société du Spectacle (1973)

O que Debord faz já havia aparecido, como técnica, na década de 60, com o cineasta canadense Arthur Lipsett (1936 - 1986), como nos deslumbrantes Very Nice Very Nice (1961) e 21-87 (1963).


Arthur Lipsett (1936 - 1986) - Very Nice Very Nice (1961)


A que trabalhos literários poderíamos ligar estas técnicas, de colagem e apropriação? De certa forma, ao Bouvard et Pécuchet (1881), de Flaubert, como já foi argumentado, com outras perspectivas, por Augusto de Campos e Haroldo de Campos, que ligariam ainda algo da escrita de Oswald de Andrade, por exemplo, também ao readymade de Duchamp. Creio que poderíamos invocar Oswald de Andrade para uma discussão do trabalho da colagem e montagem, e, principalmente, o de apropriação e redirecionamento.


A descoberta
Oswald de Andrade

Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra



Os selvagens
Oswald de Andrade

Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam por a mão
E depois a tomaram como espantados



O trabalho poético reúne em si, por sua junção entre o visual e o sonoro (oralidade e escrita), a possibilidade de pesquisar o espacial (como a arte visual) e o temporal (como a música). Assim, algo da forma e função da colagem pode ser transposto a um trabalho, por exemplo, com a sintaxe, em justaposições, em uma composição em parataxe. Essa junção entre o espacial e o temporal pode ser sentido com força no método ideogrâmico de Pound e na poesia de e.e. cummings, por exemplo.



Podemos pensar também no cut-up method do poeta Brion Gysin, método que seria celebrizado por William Burroughs em muitos de seus livros, especialmente Naked Lunch (1959). No Brasil, as justaposições verbais, mesmo que não usem o chamado "branco da página" como campo de composição, podem ser vistas também em poemas de Murilo Mendes (1901 - 1975), principalmente em As Metamorfoses (1944), ou no fenomenal "Janela do caos", publicado em Poesia Liberdade (1947), poema (e poeta) que é dos meus principais guias e mestres.


Três fragmentos iniciais de "Janela dos Caos"
Murilo Mendes

1

Tudo se passa
Num Egito de corredores aéreos,
Numa galeria sem lâmpadas
À espera de que Alguém
Desfira o violoncelo
- Ou teu coração?
Azul de guerra.


2

Telefonam embrulhos,
Telefonam lamentos,
Inúteis encontros,
Bocejos e remorsos.

Ah! Quem telefonaria o consolo,
O puro orvalho
E a carruagem de cristal.


3

Tu não carregaste pianos
Nem carregaste pedras,
Mas tua alma subsiste
- Ninguém se recorda
E as praias antecedentes ouviram -
O canto dos carregadores de pianos,
O canto dos carregadores de pedras.




Nos dias de hoje, algo da técnica da collage, com suas apropriações do histórico, ressurge, por exemplo, no trabalho de googlagem, entre nós, de Angélica Freitas.

Love
googlagem de Angélica Freitas

During a drunken argument in Brussels, Verlaine
shot atRimbaud, hitting him once in the wrist On 10
July 1875, in a drunken quarrel in Brussels,
Verlaine shot Rimbaudin the wrist, and was
imprisoned for two years at Mons. Together again in
Brussels in the summer of that year, Verlaine shot
Rimbaud in the wrist following a drunken argument.
Verlaine, drunk and desolate, shot Rimbaud in the
wristwith a 7mm pistol after a quarrel. At one
point, the tension between them became so great
thatVerlaine shot Rimbaud in the wrist. about 2
o'clock,when M. Paul Verlaine, in his mother's
bedroom, fired a shot of revolver. the subject of
various books, films, and curiosities, ended July
12, 1873 when a drunken Verlaine shot at Rimbaud and
injured him in the wrist. Verlaine shot Rimbaud in a
fit of drunken jealousy.



O trabalho com portais como o Google se tornaria o carro-chefe do grupo norte-americano conhecido como flarfistas, por terem primeiramente se reunido na Flarflist Collective. K. Silem Mohammad é um dos teóricos principais do grupo, e, dos que conheço, meu favorito é Michael Magee, que publicou, em 2006, o ótimo My Angie Dickinson.


Poem #153
googlagem de Michael Magee

Faith is a prison dentist,
The most legitimate cop,
Studying a riding crop.
“Try it more pissed” — —
Goons taping a gurney
Roots from the Attorney.

What burden, Italian-Armenian — —
The vista of Holy Smokes
The Powers that be
At ABC — —

What’s a democracy?
Some tepid Hind in the ebbs,
Licking heavenly true celebs,
As totally as a star — —
Ritalin for you kids,
And Zoloft for you are — —


Michael Magee, My Angie Dickinson (2006)

Um texto como este passa por Hans Arp (1886 - 1966), chega a Edward Lear (1812 - 1888), religa-se às fatrasies medievais do século XII e XIII e vai ancorar-se em Marco Valério Marcial (38 - 102). É, ao mesmo tempo, novíssimo e tradicionalíssimo.

Pessoalmente, tentei trabalhar com algumas destas técnicas, tanto usando as justaposições que, em parte, se baseiam naquele "gerador iterativo de sintagmas, que se escandem completos", nas palavras de Haroldo de Campos sobre Murilo Mendes, quanto na técnica de colagem dadaísta, de Tzara e Arp, em muito do meu último livro publicado, Sons: Arranjo: Garganta (2009), /// que o leitor perdoe a publicidade ///, especialmente nos poemas da primeira parte e no poema final, "jaula do caos cage of chance".

Para encerrarmos, mencionando um trabalho recentíssimo no Brasil, eu ousaria ligar, a esta discussão, o segundo livro do poeta paulista Marco Catalão, intitulado O Cânone Acidental (2009). Em minha opinião, não creio que a noção de "paródia" seja a melhor perspectiva para pensar criticamente sobre alguns destes textos. Creio que seria possível pensá-los nos termos do que venho chamando aqui de apropriação formal e redirecionamento, com claro intuito de crítica social e política, como a que vemos tanto nos dadaístas como nos melhores flarfistas. Vale mencionar, também, que alguns destes textos são muito superiores ao que se convencionou chamar de paródia na poesia da década de 70.


Non omnis moriar
Marco Catalão

Tu não verás, Marília, a tua foto
impressa nas colunas sociais;
tampouco encontrarás teu nome humilde
em letras garrafais.

Não verás
paparazzi em teu encalço
implorando o favor de uma entrevista;
nunca serás destaque da Mangueira
nem capa de revista.

Não verás nenhum
blog alimentar-se
dos detalhes da tua intimidade;
teus atos não despertarão polêmica
nem curiosidade.

Tu morrerás no mesmo obscuro bairro
onde passaste a tua infância obscura;
ninguém, além de mim, visitará
a tua sepultura.

Se vês um belo rosto na TV,
Marília, não invejes esse rosto;
pois tens alguém que pode celebrar-te
com mais graça e mais gosto.

Quem sabe, nalgum século vindouro,
alguém leia esta página modesta,
e ao ver teu nome aqui, sonhe
: Marília...
quem terá sido esta?

Marco Catalão, O Cânone Acidental (2009).


Não creio (parece-me claro) que Marco Catalão tenha sido guiado, nestes textos, apenas pelo desejo de emulação formal. Ainda que Érico Nogueira, no prefácio ao livro, recorra ao conceito de imitação, em Horácio, ele também menciona a velha tradição do escárnio na poesia, de Aristófanes e Marcial, passando pelos medievais - tradição que tinha, eu creio, clara consciência da função e importância do poeta em seu contexto histórico, além do simples artesanato formal. A matéria com que o poeta trabalha nestes textos demonstra uma preocupação formal e histórica.

Após essa discussão, retorno às colagens de Wangechi Mutu. Não são novas, como técnica. O que me importaria discutir é se o uso que ela faz da colagem ainda faz sentido em nosso contexto, ou se é eficiente para seus propósitos. Essa mesma discussão poderia ser usada para conversarmos sobre os textos de Hans Arp e Michael Magee, Tristan Tzara e Angélica Freitas, Marco Valério Marcial e Marco Catalão.

Peço, por fim, que o leitor arquive este artigo entre as minhas tentativas de participar do debate a discutir um trabalho poético e crítico que leve em conta, como tenho repetido à exaustão de vossa paciência, a forma, a função e o contexto de um poema, chegando a minhas atitudes perigosamente questionáveis, como quando sugiro unirmos, ao MAKE IT NEW de Pound, um MAKE IT NECESSARY.

.
.
.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Noite de segunda-feira com o último filme de Roman Polanski e a exposição de Wangechi Mutu no Deutsche Guggenheim

O último filme de Polanski

Assisti ontem à noite, com O Moço, ao último filme de Roman Polanski, The Ghost Writer (2009).

O filme me pareceu um bom suspense de conspiração. Pelo menos, manteve minha atenção o tempo todo e me divertiu muito com os diálogos.

Citação mais divertida:

(Ghostwriter) __ Didn´t you want to be a proper politician?

(Wife of former Prime Minister) __ Sure, didn´t you want to be a proper writer?




As personagens, quase todas britânicas, exercitam a wit no ego alheio o tempo todo. Poucas coisas me agradam tanto quanto um bom conjunto de diálogos, bem atuados. Há também as típicas atitudes de pirraça de Polanski, com suas alusões à administração Bush e Blair.


A admiração que O Moço e eu nutrimos pelo polonês vem em particular de Rosemary´s Baby (1968), um dos melhores filmes de terror já feitos. Este último filme ainda traz uma aparição-relâmpago do ótimo Eli Wallach, além da performance maravilhosa de Olivia Williams, candidata à lista de divas onipotentes em minha cabeça, depois deste filme.




§


A exposição de Wangechi Mutu


Antes disso, passamos pelo Deutsche Guggenheim, que tem entrada gratuita às segundas-feiras, para ver a exposição da artista plástica africana Wangechi Mutu, nascida em Nairobi, Quênia, em 1972. Mutu trabalha com nossa velha amiga e estimada técnica da colagem, em imagens que remetem sincrônica e sincreticamente às da alemã Hannah Höch (1889 - 1978).

Wangechi Mutu busca manter a técnica nos níveis de violência, apropriação e resistência, com sua função em diatribe, com um vigor que une a beleza e o grotesco, forma e deformação. Gosto bastante do resultado.

Seria interessante (e necessário) discutir o uso, em geral preguiçoso, que se faz do adjetivo novo na crítica contemporânea. O MAKE IT NEW de Pound segue sendo macaqueado. O conceito de vanguarda como mera fabricação de novidades estilísticas, sem discutir a função que estas novas formas assumiam em seus contextos, leva a essa atitude blasé dos críticos despreparados com que somos obrigados a lidar.

A função da colagem, tal qual foi criada pelos dadaístas, ainda pode fazer sentido em nosso contexto, pois não era mera novidade ou brincadeira para épater les bourgeois, mas crítica a um sistema que persiste, onde a Beleza torna-se, cada vez mais, apenas entretenimento para a elite, decoração para gigantescas salas-de-estar. Podemos discutir a eficiência crítica destas técnicas, mas seria mais interessante a discussão se evitássemos a atitude "de quem acha tudo tão déjà vu, mesmo antes de ver", como diz a canção. Aliás, quando ouço esta canção de Adriana Calcanhotto e Antonio Cicero, sempre me pergunto por que o que canta não joga aquela Água Perrier na cara do chato.





Abaixo, uma pequena seleção de imagens de Wangechi Mutu:








sexta-feira, 7 de maio de 2010

Traduzindo um soneto sutil, de um poeta paroquial

Passei os últimos dias trabalhando na tradução de um de meus poemas favoritos, o belo "Inniskeen Road: July Evening", do irlandês Patrick Kavanagh (1904 - 1967). Creio ter lido o poema pela primeira vez há cerca de dez anos, na seção de língua inglesa de uma grande livraria de São Paulo, onde encontrei a bonita edição da Penguin para os seus Selected Poems. O texto é o que gosto de chamar de soneto sutil, algo que encontramos com frequência em Kavanagh. Não se trata apenas da matéria de importância desinflada que compõe em grande parte o trabalho do irlandês, mas também algo de muito delicado no ritmo e andor do soneto, com seus enjambements e quebras-de-linha, que parecem, aos meus ouvidos, fazer com que as rimas não soem tão tonitruantes quanto se poderia esperar. Se decomposto, seria talvez possível, a alguns, dizer que nada há de novo (este adjetivo muitas vezes apenas preguiçoso da crítica contemporânea) ou especial no poema. Segue o esquema dos sonetos de Shakespeare, ABAB CDCD EFEF GG, assim como o iambic pentameter, com rimas simples como tonight/delight, contemplation/nation, king/thing. Mas trata-se de um daqueles exemplos de poemas que elidem as tentativas de mera decomposição formal. Afastando-se das belas meditações de Shakespeare, Kavanagh usa a forma para apresentar um quadro bastante telúrico, com uma estrada de província (algo como a "estrada de Minas, pedregosa" de seu contemporâneo, Carlos Drummond de Andrade), com a imagem tradicional do poeta solitário em meio à natureza, em aparente contemplação romântica, para então subverter o esperado louvor do natural com uma espécie de ânsia pelo cultural e humano.

Inniskeen Road: July Evening
Patrick Kavanagh

The bicycles go by in twos and threes -
There's a dance in Billy Brennan's barn to-night,
And there's the half-talk code of mysteries
And the wink-and-elbow language of delight.
Half-past eight and there is not a spot
Upon a mile of road, no shadow thrown
That might turn out a man or woman, not
A footfall tapping secrecies of stone.
I have what every poet hates in spite
Of all the solemn talk of contemplation.
Oh, Alexander Selkirk knew the plight
Of being king and government and nation.
A road, a mile of kingdom, I am king
Of banks and stones and every blooming thing.


Em meio à aparente simplicidade e até facilidade, encontramos algumas pérolas, como, por exemplo, o belo neologismo de "wink-and-elbow", que usa palavras comuns como "wink" (piscada) e "elbow" (cotovelo), trabalhando a partir da referência à expressão "a wink and a nudge", ou seja, algo como uma piscada e uma cotovelada, para criar uma bela imagem de cumplicidade e flerte entre os ciclistas que se cruzam na estrada, a caminho de uma festa. Em uma tradição tão forte como a do verso inglês, ele nos refresca com versos sublimes como "Upon a mile of road, no shadow thrown" e seu companheiro-de-rima em "A footfall tapping secrecies of stone". Além disso, Kavanagh combina o esquema de rimas shakesperiano ao uso italiano da oitava que propõe e o sexteto que contrasta ou responde, mas com uma leveza retórica que surpreende.

Confesso que meus olhos têm, hoje em dia, mais prazer no soneto inglês do que em seu irmão italiano, praticado com muito mais frequência no Brasil, e sei que essa diferença gráfica influi grandemente nesta sensação de sutileza, que tento aqui indicar no texto de Patrick Kavanagh. Qualquer olho minimamente treinado reconhece o soneto italiano como soneto antes mesmo de ler a primeira palavra, gerando toda uma série de expectativas que, após tanto debate modernista, acaba frustrando a individualidade essencial de todo e qualquer poema, independente da forma fixa a que se filia. Requer-se certa energia crítica (por vezes cansativa) para não fazer de todo e qualquer soneto uma espécie de arena estético-ideológica, a partir do século XX.

No Brasil, o soneto inglês teve poucos praticantes. Penso, entre os modernistas, em Manuel Bandeira (1886 - 1968), que escreveu o bonito "Soneto inglês n° 2":

Soneto Inglês no. 2
Manuel Bandeira

Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar um grito de ódio a quem o fez.
As delicias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao gênero sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.
Não tremer de esperança nem de espanto,
Nada pedir, nem desejar, senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé num mundo além do mundo. E então,
Morrer sem uma lágrima que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.



Neste novo século, um poeta que o pratica de maneira impressionante é o paulista Érico Nogueira, que publicou uma série com 24 deles em sua coletânea de estreia, intitulada O Livro de Scardanelli (São Paulo: É, 2008), série da qual reproduzo abaixo também o de número 2:

Soneto número 2 da série "Cancioneiro Inglês ou de Sandra Gama"
Érico Nogueira

Para que seja próprio, distinguido,
um mal precisa, não modificar
as vias que o têm feito se inflamar
desde um tempo remoto, há tempos ido.
Ele precisa, barco destemido
ante a borrasca e o furacão do mar,
ser com um câncer mau, que vai voltar
por quantas vezes seja removido.
Mal que adoece de causas ancestrais
e coalha o sangue que fervilha agora
e que fervilha para nunca mais,
fruta chupada, derretida amora.
A boca antiga, então, se mostra hábil
para falar do que corrói o lábio.



Publiquei na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., ontem, duas tentativas minhas de tradução para o soneto sutil de Patrick Kavanagh. Na primeira, afastei-me no terceiro quarteto do esquema de rimas shakesperiano, nem pude reproduzir muito do ritmo de Kavanagh.


Estrada em Inniskeen: Noite de Julho

As bicicletas rondam em trios e duplas -
Há festa no celeiro de Billy Brennan hoje
E há o código do mistério que sussurra
No prazer da língua de pálpebra-e-toque.
Oito-e-meia e não há mancha qualquer
Em uma milha de estrada, nem sombra
Que possa tornar-se homem ou mulher,
Sapato a arrancar segredos das rochas.
Eu possuo aquilo que todo poeta detesta
Apesar de elogios solenes da contemplação.
Ah, Alexander Selkirk conhecia a maldição
De ser o governado e o que governa.
Uma estrada, império de uma milha, sou mestre
De margens e rochas e tudo o que floresce.

(Patrick Kavanagh: tradução de Ricardo Domeneck)

Alexander Selkirk (1676 – 1721) foi o náufrago que teria inspirado a personagem de Daniel Defoe em seu Robinson Crusoe (1719). Se publico esta versão, é por ter tido prazer em algumas de suas soluções, tentando fazer com que o soneto funcione em português. Talvez tenha sido mais feliz, em termos de tradução, digamos, nesta outra versão:

Estrada em Inniskeen: Noite de Julho

As bicicletas seguem em trios e duplas -
Baile no celeiro de Billy Brennan à noite
E há o mistério que em código murmura
E a língua do piscar-e-gesto em posse.
Oito e meia e não há mancha qualquer
Em uma milha de estrada, nem gleba
Que venha a suster homem ou mulher,
Som de passos a tatear psiu de pedras.
Eu possuo aquilo que todo poeta abomina
Apesar de falas pomposas de contemplação.
Ah, Alexander Selkirk bem sabia da sina
De representar rei, parlamento e nação.
Estrada, uma milha de império, sou mestre
De margens e pedras e tudo o que floresce.


Deixo o julgamento aos leitores deste espaço, e a colegas muito mais competentes que eu, como Érico Nogueira, Dirceu Villa, João Filho e Marco Catalão. De qualquer maneira, eficiente ou não minha tentativa de tradução, espero que este artigo e o da Modo de Usar & Co. sirvam como incentivo a procurar mais do trabalho belíssimo de Patrick Kavanagh.

Há, porém e ainda, um outro aspecto do trabalho do irlandês que me parece muito interessante para o debate poético brasileiro, a que aludi no título deste artigo, chamando o irlandês de "poeta paroquial". Na apresentação do poeta na Modo, escrevo que Kavanagh está entre os poetas modernistas que se mantiveram, em certos aspectos, ligados à linguagem e à vida de sua província, algo como o brasileiro Carlos Drummond de Andrade, o americano William Carlos Williams, o espanhol Antonio Machado ou o italiano Guido Gozzano, o que os torna bastante conhecidos em suas comunidades linguísticas mas os mantém obscuros para a narrativa crítica oficial do chamado "Modernismo Internacional", que privilegiou a dicção tida como "cosmopolita", ou, digamos, "urbana" e "metropolitana" de poetas como Eliot, Ungaretti ou Apollinaire. No volume Da Poesia à Prosa (São Paulo: Cosac Naify, 2007), o crítico italiano Alfonso Berardinelli argumenta em favor da modernidade destes poetas "da província", no interessante ensaio "Cosmopolitismo e provincianismo na poesia moderna", tecendo seu "elogio do provincianismo" ao discutir poetas italianos como Marino Moretti e Guido Gozzano, com implicações interessantes também para uma discussão da poesia brasileira moderna. Lendo os poemas localistas do irlandês, seria fácil confundir tal escrita com as poéticas nacionalistas que frutificaram entre os vários modernismos nacionais, não apenas no Brasil. Patrick Kavanagh, porém, chegou a defender a ideia de uma poética paroquial, ou seja, um localismo que buscava salvaguardar as várias diferenças enriquecedoras, mesmo dentro de um pequeno país como a Irlanda, contra aquilo que ele via como a criação de uma simbologia genérica de unidade nacional fictícia, tornando-se um crítico feroz da geração anterior, a do Irish Literary Revival, de autores como Lady Gregory, J.M. Synge e o mais famoso deles: W.B. Yeats. Isso teria implicações muito interessants para a discussão de nosso modernismo, que também buscou criar uma simbologia genérica de identidade nacional, que hoje flagramos em toda a sua artificialidade e ficção. Não deixa de ser interessantíssima a maneira como Kavanagh combateria o nacionalismo com uma espécie tão intransigente de localismo, em um trabalho extremamente complexo e talvez cheio de contradições. Em 1942, o irlandês publicou o importante The Great Hunger, em que se alinha à tradição bárdica das ilhas, com antepassados como Taliesin (c. 534 - c. 599) e seu contemporâneo Aneirin. Mais tarde, Kavanagh rejeitou neste poema o que ele chamaria de sua "compulsão messiânica", criticando nele a "Tragédia", que o poeta, no fim da vida e na introdução de seus Collected Poems, descreveria como "Comédia subdesenvolvida". Para ele, o cômico passaria a ser alvo muito mais alto que o trágico, afirmando que todo grande poeta deveria possuir humorousity. Pessoalmente, encontro tanto o trágico como o cômico em The Great Hunger, e aprecio imensamente a maneira como ele vincula religiosidade e sexualidade, algo que, no Brasil, apenas Murilo Mendes e Hilda Hilst parecem ter praticado.

Maguire was faithful to death:
He stayed with his mother till she died
At the age of ninety-one.
She stayed too long,
Wife and mother in one.
When she died
The knuckle-bones were cutting the skin of her son's backside
And he was sixty-five.
O he loved his mother
Above all others.
O he loved his ploughs
And he loved his cows
And his happiest dream
Was to clean his arse
With perennial grass
On the bank of some summer stream


(excerto de The Great Hunger)

O louvor do localismo em sua poesia pode ser sentido em toda a sua inteligência em outro de meus all time favorites, seu soneto "Epic":


Epic
Patrick Kavanagh

I have lived in important places, times
When great events were decided, who owned
That half a rood of rock, a no-man's land
Surrounded by our pitchfork-armed claims.
I heard the Duffys shouting "Damn your soul!"
And old McCabe stripped to the waist, seen
Step the plot defying blue cast-steel -
"Here is the march along these iron stones."
That was the year of the Munich bother. Which
Was more important? I inclined
To lose my faith in Ballyrush and Gortin
Till Homer's ghost came whispering to my mind.
He said: I made the
Iliad from such
A local row. Gods make their own importance.



Conceitos como nacionalismo e localismo ainda são interessantes para uma discussão não apenas da poesia modernista brasileira, mas mesmo a das duas últimas décadas. O nacionalismo modernista brasileiro encontrou sua uncoolness de forma óbvia entre os poetas da década de 90, que pareceram querer evitar qualquer sombra dele ao se refugiarem em uma dicção que claramente se queria "universal", esta outra ficção. Nos últimos anos, em poetas tão distintos quanto os já mencionados Érico Nogueira, Dirceu Villa ou João Filho, assim como, de maneiras também divergentes, em Angélica Freitas, Marcus Fabiano Gonçalves ou Fabiano Calixto, acredito haver uma relação mais intricada a triangular o universal, o nacional e o local, relação que começou a receber elegias ou sátiras mais complexas, seja na impossibilidade que Érico Nogueira descobre ao tentar "encontrar faias na América do Sul", ou o samba que não chama Angélica Freitas pelo nome, para mencionar dois poetas quase opostos em atitude est-É-tica, mas que poderíamos discutir em aspectos formais, funcionais e contextuais, além da frequente descontextualização trans-histórica da poética que foi comum e oficial na década de 90.

.
.
.

Arquivo do blog