quarta-feira, 12 de maio de 2010

Colagem, apropriação, redirecionamento

Ontem à noite, após publicar a postagem em que comento minha visita à exposição das colagens e fotomontagens de Wangechi Mutu, comecei a pensar sobre a técnica da colagem, suas formas, suas funções, seus contextos. Sua possível eficiência nos dias de hoje. Isso uniu-se a uma meditação que me ocupa há algum tempo, sobre a necessidade, em minha opinião, de revermos nossos conceitos de cânone (com sua etimologia de implicações religiosas) e de vanguarda (com sua etimologia de implicações bélicas), mas creio que este artigo não será o espaço ideal para essa longa discussão. Quero, por ora, apenas qualificar e elaborar algo do que escrevi na postagem-comentário anterior, entrando aos poucos neste ninho de vespas.

Collage, como sabemos, tem seu nome tirado da própria estratégia principal de coller (colar) materiais à superfície da tela, ligada também à técnica da assemblage. Alguns autores afirmam que a prática já era comum entre poetas-calígrafos no Japão, há séculos, assim como algo dela pode ser encontrado nas técnicas de composição de painéis da arte sacra medieval. No entanto, nós associamos a colagem primordialmente com a arte visual modernista, quando Picasso, por exemplo, passa a introduzir pedaços de jornal em suas pinturas. A técnica assumiria suas características mais conhecidas com os dadaístas berlinenses, como Hannah Höch e Raoul Hausmann, em suas colagens e fotomontagens.


Hannah Höch (1889-1978) - "Cortado com a Faca de Cozinha DADA Através da Pança de Cerveja da Última Época Cultural da Alemanha de Weimar" (1919).


Quanto a seu trabalho formal, apesar dos preconceitos e clichês que buscam ver apenas falta de seriedade, caos e niilismo no trabalho dos poetas e artistas ligados a DADA, qualquer olho treinado percebe a clara preocupação e cuidado de composição nas colagens de Höch, Hausmann ou Kurt Schwitters, tanto quanto nas abstrações geométricas dos construtivistas.



Kurt Schwitters (1887 - 1948), Das Undbild(O Retrato-E), 1919


Enquanto a arte e literatura oficiais das Academias seguiam interessadas no "Belo", algo já estabelecido, com pendor neoclassicista, imerso em abstrações e das Ideal, ao mesmo tempo o mundo europeu naufragava na Grande Guerra. Os dadaístas (peço que o caro leitor atente para o verbo) usavam a colagem, apropriando-se do Histórico (trechos dos jornais), redirecionando-os em uso, para satirizar e recusar a cultura belicista e hipócrita de sua época, como os expressionistas compunham suas "canções para o Apocalipse", muitos deles unindo os esforços, como foi o caso de George Grosz. Apenas um pensamento artístico a conjugar estética e ética trabalharia nestas linhas. O que tento argumentar é que a colagem não era apenas o fruto de um pueril desejo de ser "original" ou de gerar alguma "novidade estilística"; ela tinha uma função pensada, em um contexto específico, como qualquer trabalho formal. A palavra apropriação ajuda-nos, aqui. Pois o nome "colagem" não deixa de ter seu caráter mais formalizante, se me permitem. Creio que, no pós-guerra, um dos grupos que melhor compreenderam o trabalho dos dadaístas em sua forma, função e contexto foi a Internacional Situacionista. Em Guy Debord, seu principal teórico e praticante, a colagem renasceria na técnica do détournement, algo que engloba a apropriação e o desvio-redirecionamento de material de contextos alheios. É claro que algo disso estava também em Marcel Duchamp, nunca realmente ligado aos dadaístas.


Guy Debord (1931 - 1994) - trecho inicial do filme La Société du Spectacle (1973)

O que Debord faz já havia aparecido, como técnica, na década de 60, com o cineasta canadense Arthur Lipsett (1936 - 1986), como nos deslumbrantes Very Nice Very Nice (1961) e 21-87 (1963).


Arthur Lipsett (1936 - 1986) - Very Nice Very Nice (1961)


A que trabalhos literários poderíamos ligar estas técnicas, de colagem e apropriação? De certa forma, ao Bouvard et Pécuchet (1881), de Flaubert, como já foi argumentado, com outras perspectivas, por Augusto de Campos e Haroldo de Campos, que ligariam ainda algo da escrita de Oswald de Andrade, por exemplo, também ao readymade de Duchamp. Creio que poderíamos invocar Oswald de Andrade para uma discussão do trabalho da colagem e montagem, e, principalmente, o de apropriação e redirecionamento.


A descoberta
Oswald de Andrade

Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra



Os selvagens
Oswald de Andrade

Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam por a mão
E depois a tomaram como espantados



O trabalho poético reúne em si, por sua junção entre o visual e o sonoro (oralidade e escrita), a possibilidade de pesquisar o espacial (como a arte visual) e o temporal (como a música). Assim, algo da forma e função da colagem pode ser transposto a um trabalho, por exemplo, com a sintaxe, em justaposições, em uma composição em parataxe. Essa junção entre o espacial e o temporal pode ser sentido com força no método ideogrâmico de Pound e na poesia de e.e. cummings, por exemplo.



Podemos pensar também no cut-up method do poeta Brion Gysin, método que seria celebrizado por William Burroughs em muitos de seus livros, especialmente Naked Lunch (1959). No Brasil, as justaposições verbais, mesmo que não usem o chamado "branco da página" como campo de composição, podem ser vistas também em poemas de Murilo Mendes (1901 - 1975), principalmente em As Metamorfoses (1944), ou no fenomenal "Janela do caos", publicado em Poesia Liberdade (1947), poema (e poeta) que é dos meus principais guias e mestres.


Três fragmentos iniciais de "Janela dos Caos"
Murilo Mendes

1

Tudo se passa
Num Egito de corredores aéreos,
Numa galeria sem lâmpadas
À espera de que Alguém
Desfira o violoncelo
- Ou teu coração?
Azul de guerra.


2

Telefonam embrulhos,
Telefonam lamentos,
Inúteis encontros,
Bocejos e remorsos.

Ah! Quem telefonaria o consolo,
O puro orvalho
E a carruagem de cristal.


3

Tu não carregaste pianos
Nem carregaste pedras,
Mas tua alma subsiste
- Ninguém se recorda
E as praias antecedentes ouviram -
O canto dos carregadores de pianos,
O canto dos carregadores de pedras.




Nos dias de hoje, algo da técnica da collage, com suas apropriações do histórico, ressurge, por exemplo, no trabalho de googlagem, entre nós, de Angélica Freitas.

Love
googlagem de Angélica Freitas

During a drunken argument in Brussels, Verlaine
shot atRimbaud, hitting him once in the wrist On 10
July 1875, in a drunken quarrel in Brussels,
Verlaine shot Rimbaudin the wrist, and was
imprisoned for two years at Mons. Together again in
Brussels in the summer of that year, Verlaine shot
Rimbaud in the wrist following a drunken argument.
Verlaine, drunk and desolate, shot Rimbaud in the
wristwith a 7mm pistol after a quarrel. At one
point, the tension between them became so great
thatVerlaine shot Rimbaud in the wrist. about 2
o'clock,when M. Paul Verlaine, in his mother's
bedroom, fired a shot of revolver. the subject of
various books, films, and curiosities, ended July
12, 1873 when a drunken Verlaine shot at Rimbaud and
injured him in the wrist. Verlaine shot Rimbaud in a
fit of drunken jealousy.



O trabalho com portais como o Google se tornaria o carro-chefe do grupo norte-americano conhecido como flarfistas, por terem primeiramente se reunido na Flarflist Collective. K. Silem Mohammad é um dos teóricos principais do grupo, e, dos que conheço, meu favorito é Michael Magee, que publicou, em 2006, o ótimo My Angie Dickinson.


Poem #153
googlagem de Michael Magee

Faith is a prison dentist,
The most legitimate cop,
Studying a riding crop.
“Try it more pissed” — —
Goons taping a gurney
Roots from the Attorney.

What burden, Italian-Armenian — —
The vista of Holy Smokes
The Powers that be
At ABC — —

What’s a democracy?
Some tepid Hind in the ebbs,
Licking heavenly true celebs,
As totally as a star — —
Ritalin for you kids,
And Zoloft for you are — —


Michael Magee, My Angie Dickinson (2006)

Um texto como este passa por Hans Arp (1886 - 1966), chega a Edward Lear (1812 - 1888), religa-se às fatrasies medievais do século XII e XIII e vai ancorar-se em Marco Valério Marcial (38 - 102). É, ao mesmo tempo, novíssimo e tradicionalíssimo.

Pessoalmente, tentei trabalhar com algumas destas técnicas, tanto usando as justaposições que, em parte, se baseiam naquele "gerador iterativo de sintagmas, que se escandem completos", nas palavras de Haroldo de Campos sobre Murilo Mendes, quanto na técnica de colagem dadaísta, de Tzara e Arp, em muito do meu último livro publicado, Sons: Arranjo: Garganta (2009), /// que o leitor perdoe a publicidade ///, especialmente nos poemas da primeira parte e no poema final, "jaula do caos cage of chance".

Para encerrarmos, mencionando um trabalho recentíssimo no Brasil, eu ousaria ligar, a esta discussão, o segundo livro do poeta paulista Marco Catalão, intitulado O Cânone Acidental (2009). Em minha opinião, não creio que a noção de "paródia" seja a melhor perspectiva para pensar criticamente sobre alguns destes textos. Creio que seria possível pensá-los nos termos do que venho chamando aqui de apropriação formal e redirecionamento, com claro intuito de crítica social e política, como a que vemos tanto nos dadaístas como nos melhores flarfistas. Vale mencionar, também, que alguns destes textos são muito superiores ao que se convencionou chamar de paródia na poesia da década de 70.


Non omnis moriar
Marco Catalão

Tu não verás, Marília, a tua foto
impressa nas colunas sociais;
tampouco encontrarás teu nome humilde
em letras garrafais.

Não verás
paparazzi em teu encalço
implorando o favor de uma entrevista;
nunca serás destaque da Mangueira
nem capa de revista.

Não verás nenhum
blog alimentar-se
dos detalhes da tua intimidade;
teus atos não despertarão polêmica
nem curiosidade.

Tu morrerás no mesmo obscuro bairro
onde passaste a tua infância obscura;
ninguém, além de mim, visitará
a tua sepultura.

Se vês um belo rosto na TV,
Marília, não invejes esse rosto;
pois tens alguém que pode celebrar-te
com mais graça e mais gosto.

Quem sabe, nalgum século vindouro,
alguém leia esta página modesta,
e ao ver teu nome aqui, sonhe
: Marília...
quem terá sido esta?

Marco Catalão, O Cânone Acidental (2009).


Não creio (parece-me claro) que Marco Catalão tenha sido guiado, nestes textos, apenas pelo desejo de emulação formal. Ainda que Érico Nogueira, no prefácio ao livro, recorra ao conceito de imitação, em Horácio, ele também menciona a velha tradição do escárnio na poesia, de Aristófanes e Marcial, passando pelos medievais - tradição que tinha, eu creio, clara consciência da função e importância do poeta em seu contexto histórico, além do simples artesanato formal. A matéria com que o poeta trabalha nestes textos demonstra uma preocupação formal e histórica.

Após essa discussão, retorno às colagens de Wangechi Mutu. Não são novas, como técnica. O que me importaria discutir é se o uso que ela faz da colagem ainda faz sentido em nosso contexto, ou se é eficiente para seus propósitos. Essa mesma discussão poderia ser usada para conversarmos sobre os textos de Hans Arp e Michael Magee, Tristan Tzara e Angélica Freitas, Marco Valério Marcial e Marco Catalão.

Peço, por fim, que o leitor arquive este artigo entre as minhas tentativas de participar do debate a discutir um trabalho poético e crítico que leve em conta, como tenho repetido à exaustão de vossa paciência, a forma, a função e o contexto de um poema, chegando a minhas atitudes perigosamente questionáveis, como quando sugiro unirmos, ao MAKE IT NEW de Pound, um MAKE IT NECESSARY.

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