quarta-feira, 30 de junho de 2010

COMO MORREM OS POETAS: Segunda parte: "A morte, sempre privada, também pública"

Possível local do fuzilamento de Federico García Lorca


É sempre fácil e tentador circundar de glamour a vida miserável e a morte triste de nossos poetas, especialmente quando se é um jovem poeta a sonhar com o que sonhamos ser uma vida-de-poeta. Naquele poema de Jack Spicer, que, como seu conterrâneo Edgar Allan Poe, bebeu até ser encontrado desacordado numa sarjeta e morreu mais tarde em um hospital público, praticamente indigente, ele fala sobre "The death / That young men hope for."


Thing Language
Jack Spicer

This ocean, humiliating in its disguises
Tougher than anything.
No one listens to poetry. The ocean
Does not mean to be listened to. A drop
Or crash of water. It means
Nothing.
It
Is bread and butter
Pepper and salt. The death
That young men hope for. Aimlessly
It pounds the shore. White and aimless signals. No
One listens to poetry.


Língua Coisa: Este oceano, humilhante em seus disfarces / Resiste a tudo. / Nem um sintoniza na poesia. O oceano / Emite ondas para a sintonia de ninguém. Gota / Ou tromba d´água. Omite / Significados. / É / Manteiga e pão / Pimenta e sal. A morte / Que os jovens almejam. Sem mira / Alveja as margens. Sinais sem mira, alvos. Nem / Um sintoniza na poesia. (tradução de Ricardo Domeneck)

§

Mas Wittgenstein escreveu, em uma de suas proposições que parecem indicar que só chegamos à verdade pela tautologia e então por suas implicações, que a morte não é um evento da vida, que não vivemos para ter a experiência da morte.

Nossa morte, então, pertence aos outros. Talvez a mais íntima de nossas experiências possa tão-somente ser experimentada por outrem. Ou seja, a nós mesmos isso significa que a própria morte pertence a ninguém.

Entre os muitos poemas elegíacos escritos por poetas para poetas, um dos meus favoritos é sem dúvida "In Memory of W. B. Yeats", de W.H. Auden. Imortalidade de poeta será isso?

Now he is scattered among a hundred cities
And wholly given over to unfamiliar affections,
To find his happiness in another kind of wood
And be punished under a foreign code of conscience.
The words of a dead man
Are modified in the guts of the living.


(fragmento de "In Memory of W. B. Yeats", de W.H. Auden)

§

Anjo nenhum desceu à terra para erguer Rilke aos céus. Benjamin morreu na fronteira, o Anjo da História o observou como observou a tudo, de olhos arregalados, assustados. Trasladados foram apenas Enoque e Elias, e há teólogos que afirmam que eles são as duas testemunhas que serão mortas durante o Apocalipse, pois também eles terão que passar pelo vale da sombra da morte. Como diz a canção meio assustadora de PJ Harvey com John Parish, chamada "Taut": "even the Son of God had to die, my darling."



("Taut", de PJ Harvey & John Parish)

§

Toda morte é então privada e pública? Algumas parecem ter se tornado símbolos do século, e talvez seja apenas cruel nossa necessidade de alegorizar estas mortes. Penso, por exemplo, em uma das mais famosas mortes-de-poeta do século XX, a de Federico García Lorca. Aquele que escreveu um dos poemas mais bonitos do século passado para lamentar a morte de alguém, em seu "Llanto por la muerte de Ignacio Sánchez Mejías", com aqueles versos lindos "No te conoce el toro ni la higuera, / ni caballos ni hormigas de tu casa. / No te conoce el niño ni la tarde / porque te has muerto para siempre." Ele próprio, Lorca, mais tarde fonte de inspiração para novos lamentos.

§

Alguém terá sido tentado, ao fim daquele ano, a ver em retrospecto na morte de Manuel Bandeira, no dia 13 de outubro de 1968, um augúrio tristíssimo de que tudo ainda haveria de ficar pior e mais horrendo no país, principalmente com o que seria escrito naquela sexta-feira 13, em dezembro de 1968, não um poema, mas o AI-5? Mas o que pode um poeta contra um governo, quando o poema de Auden a Yeats já nos alertava que:


...poetry makes nothing happen: it survives
In the valley of its making where executives
Would never want to tamper, flows on south
From ranches of isolation and the busy griefs,
Raw towns that we believe and die in...


Será que a única imortalidade ao escrever poemas é a de não ser, quando morto, carta completamente fora do baralho? O poeta morre e torna-se carta na manga dos vivos? Mesmo os que estão ocupados demais, absortos demais na vida?

Momento num Café
Manuel Bandeira

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes da vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.


Talvez possamos apenas nos lembrar de outros versos do poema de Auden a Yeats, que dizem, se poetry makes nothing happen, ao menos "it survives, / A way of happening, a mouth." Isso sempre me intrigou: que Auden dissesse da poesia que ela makes nothing happen, mas que é, ao mesmo tempo, a way of happening.

§

Algumas mortes, no entanto, parecem carregar tanto magnetismo em sua ânsia por narrativa, que é difícil não buscar nelas FIGURAS, mensagens-em-garrafa ao oceano dos tempos para entendermos nosso FIM. Penso então em um poeta desconhecidíssimo no Brasil, o húngaro Miklos Radnóti, que, prisioneiro em um campo de concentração nazista, carregou no bolso de sua camisa os últimos poemas que escreveu, até ser fuzilado por um soldado alemão. Mais tarde, ao exumarem a vala comum, puderam reconhecer o corpo desfigurado de Miklos Radnóti apenas pelos poemas que carregava no bolso da camisa.

Mas esta é uma experiência histórica IRREDUTÍVEL, não pode ser transposta em metáfora ou alegoria de uma outra experiência. A forma como a poesia de autores como Radnóti foi metaforizada e alegorizada, no Brasil por exemplo, não está longe de poder ser vista como o ato de barbárie de que falou Adorno. Refiro-me à alegorização por que a poesia destes autores passa, transformando-se em metáfora de algum sofrimento humano anônimo. A poesia e escrita de Simone Weil, Paul Celan, Edmond Jabès, Rose Ausländer, Dan Pagis, Etty Hillesum ou Primo Levi, entre outros artistas e autores do que passaria a ser estudado como "Literatura do Holocausto", são, como já disse e repito, experiências históricas irredutíveis, indivisas, que não podem ser lidas ou saqueadas como metáforas ou alegorias para a tal de "condição humana". Isso sim poderia ser chamado de ato de barbárie, especialmente se feito por poetas em busca da perdida "aura de autoridade", aquela auréola que Baudelaire perdeu na rua e que, ouso dizer, sem a qual vivemos e morremos melhor.

And so will I wonder...?
Miklos Radnóti (translated by Gina Gönczi)

I lived, but then in living I was feeble in life and
always knew that they would bury me here in the end,
that year piles upon year, clod on clod, stone on stone,
that the body swells and in the cool, maggot-
infested darkness, the naked bone will shiver.
That above, scuttling time is rummaging through my poems
and that I will sink deeper into the ground.
All this I knew. But tell me, the work--did that live on?



Miklos Radnóti (1909 – 1944)

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sexta-feira, 25 de junho de 2010

COMO MORREM OS POETAS: Primeira parte: "Por que eu tento fazer com sinédoques o que se deveria fazer com metáforas"

Pasolini, o mestre, diante do túmulo de Gramsci


Quando penso em minhas memórias de infância, entre as que têm alguma ligação com a poesia, há uma que se sobressai. É claro que há a lembrança dos primeiros poemas lidos, todos descobertos em manuais escolares de Literatura Brasileira, os antológicos de poetas do século XIX, como Cruz e Sousa ou Alphonsus de Guimaraens, mas principalmente os poetas da primeira metade do século XX, como Augusto dos Anjos e os modernistas Manuel Bandeira, Oswald de Andrade e Murilo Mendes. Mas a memória a que me refiro é outra, algo mais presente e estranho. Eu me lembro por algum motivo esquisito, e esquisito porque eu tinha apenas 10 anos de idade, do anúncio televisivo sobre a morte de Carlos Drummond de Andrade, no dia 17 de agosto de 1987. Eu tenho esta memória-imagem (terei imaginado?) de estar sentado na frente da TV, quando o programa foi interrompido por aquela composição meio assustadora e um tanto ridiculamente frenética do Plantão do Jornal da Globo, que sempre lançava minha mãe em disparada da cozinha ou quarto para a sala, gritando "Ai, meu Deus! Quem morreu?!". Apesar de muito menino, o fato de que ele morrera doze dias após a sua filha, a cronista Maria Julieta Drummond, me deixou muito impressionado. Eu acho que o que me marcou nada tinha a ver com o fato de Drummond ser um poeta... eu tinha apenas dez anos, não me lembro se eu sequer sabia o que era um poeta. O que me impressionou naquele momento foi o fato de que ele morrera doze dias depois da filha, o fato de que ele morrera de tristeza, do que me pareceu de desespero. Creio que minha mãe disse algo assim na sala, algo como "Coitado, morreu de tristeza, de desespero". A ideia de que alguém podia morrer de tristeza (e eu acredito que Drummond morreu realmente de tristeza) me impressionou muito como criança.

Muitos anos depois, escrevendo os poemas do meu primeiro livro, Carta aos anfíbios, publicado em 2005, isto me voltou à mente enquanto escrevia talvez o poema mais seco do livro, o texto que o encerra, chamado "Lembrete". Creio que já o comentei aqui. Em seu artigo sobre o livro, o poeta Pádua Fernandes comentou este poema, num ensaio muito generoso, ainda que cheio de discordâncias, em que, curiosamente, mencionava que os versos sobre Drummond lhe pareciam o único momento em que o poema resvalava no sentimentalismo. Enquanto a morte dos outros poetas era apresentada de forma extremamente seca e crua, a de Drummond, talvez enraizada em minha "emocionalidade de criança", deixava vir pela fresta a comoção (sentimental?).

Lembrete

Cruz e Sousa
em vagões de
transporte
de gado.

Paul Celan
nas águas
do Sena.

Frank O’Hara
estirado n’areia.

Christine Lavant
crivada de camas
............e escamas.

Alejandra Pizarnik,
intolerância
a secobarbital.

Carlos Drummond de Andrade,
em meio à maior perda na vida,
doze dias após a filha.

Pier Paolo
a pau e pedra.

João Cabral de Melo Neto
...................................cego.

Orides Fontela
à beira da indigência.


(Carta aos anfíbios, 2005)


Este poeminha, que acho que passa bem despercebido no livro, tem na verdade uma importância muito grande para mim. Já escrevi aqui sobre o fato de que busquei trabalhar, durante a escrita do livro Carta aos anfíbios, com a noção de figura, que sempre tento explicar, em ensaios ou entrevistas, com esta definição pessoal: figura como conceito da teologia cristã, FIGURA, em que um acontecimento histórico liga-se a outro acontecimento histórico, prefigurando-o, dois fatos distintos e temporalmente segregados prevendo um último acontecimento que revelaria seus significados, ligado à ideia de parúsia. Isso é central para a composição (e compreensão) do meu trabalho, ligado ainda ao meu uso da metonímia, em especial a sinédoque, evitando a metáfora. É muito difícil conversar sobre isso sem cair em auto-exegeses, o que é sempre ridículo. Se comento isso aqui, é no espírito de conversa e debate com meus colegas-poetas e com meus colegas-leitores. Pois isso também explicita as discordâncias que tenho com algumas poéticas contemporâneas, por vezes hipermetafóricas em minha leitura pessoal. Mas isso seria apenas uma birra contra a metáfora? De maneira nenhuma. É simplesmente uma leitura pessoal, fincada em uma poética que não busca abstrair a historicidade do fazer poético, mas a ler, usá-la.

É como se a metáfora, que no mundo arcaico estava baseada fortemente na fé na ligação cósmica entre todas as coisas do Universo, passasse a perder sua eficiência por não encontrar mais nos leitores esta base e crença religiosa e mística. Eu acreditava que, equilibrando a metáfora com a sinédoque ou a metonímia em geral, talvez fosse possível seguir de maneira mais eficiente com o trabalho contemporâneo, já que muitas poéticas do passado buscaram este equilíbrio. Há ainda aí a crença de que as manifestações divinas estão às claras no mundo, nos próprios acontecimentos históricos, como o Velho Testamento prefigura o Novo. Se para isso eu tinha que recorrer mesmo à tautologia, buscando uma poética de implicações, que assim fosse.

É difícil falar sobre isso sem se tornar um candidato sério, aos olhos de muitos aqui, ao ingresso em um manicômio, mas durante a escrita do Carta aos anfíbios eu acreditava que era possível, se estivéssemos atentos para o ranger da roldanas da História, eu acreditava que era possível ouvir a Máquina do Mundo. Que talvez fosse possível, com esta música quase inaudível sob os barulhos do século, barulhos que eram ao mesmo tempo a própria música que escondiam, que fosse possível até mesmo prever o futuro. Eu acredito até hoje que é isso o que Orides Fontela chamava de "a lucidez que alucina", ou o que ela descreveu tão maravilhosamente bem nos versos:

A um passo
do pássaro
res
piro.


É por isso que durante aqueles anos eu evitava quase por completo o uso de neologismos ou palavras-valise, e preferia usar palavras "pobres", fossem concretas ou abstratas aos olhos dos cabralinos-noigandristas (esta separação ainda me espanta), concentrando-me na sintaxe, "relação entre as coisas", mais que em sua suposta "concretude" ou "objetividade". Pois essa noção de objetividade, em minha opinião, era de qualquer maneira minada pela relação entre estas tais objetividades, no contexto. Não estou dizendo nada de novo: isso é Wittgenstein da juba às patas, quando ele afirma, por exemplo, que "o significado de uma palavra é seu uso na língua". Eu acreditava que as manifestações e possíveis revelações estavam aos olhos de todos, não era necessário buscar "o indizível". Essa história de poeta "que busca dizer o indizível" sempre me cheirou a charlatanismo.

Talvez seja loucura maior o que eu buscava, já que eu acreditava, naquela época, que uma rima não era apenas uma ferramenta de embelezamento do poema. Eu acreditava que rimas flagravam as ligações cósmicas entre as coisas. Eu acreditava que a língua escondia, em suas malhas, revelações que não precisavam sequer das metáforas. Elas estavam já nas rimas que a língua nos provê, assim como a sintaxe era nosso momento humano de construção da realidade. Para mim era algo assustador poder rimar Celan com Sena, João Cabral de Melo Neto com cego, ecoar com assonâncias e aliterações em "à beira da indigência" o nome de Orides Fontela, ou, com "pau e pedra", o nome de Pier Paolo Pasolini.

Voltando ao poema, é acima de tudo um lembrete a mim mesmo, algo que diz:

Se estes, que eram infinitamente melhores que você, morreram como morreram, você espera fim melhor por quê?

Trata-se de uma vigilância como, por exemplo, a que Miguel de Unamuno preconizava em seu Do Sentimento Trágico da Vida (1933), um dos livros que, ao lado talvez das Investigações Filosóficas (1951) de Wittgenstein, mais marcaram minha vida (recomendo muito a vocês a leitura dos dois), lembrando-nos que somos o pó do pó do pó do pó do pó.


(continua)

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terça-feira, 22 de junho de 2010

Digitalizando as perguntas, digitalizando as respostas

"No fear", do duo AIDS-3D


Amanhã, quarta-feira, dia das intervenções semanais que nosso coletivo organiza, temos como convidados especiais em nossa SHADE inc o duo AIDS-3D, formado pelos jovens norte-americanos Daniel Keller, nascido em Detroit, e Nik Kosmas, nascido em Minneapolis, ambos em 1986. Eles vivem em Berlim há cerca de dois anos. O duo faz parte de uma geração de jovens artistas que primeiro tornou-se conhecida na Internet, conquistando seu primeiro espaço em revistas eletrônicas, plataformas digitais, para então passar a receber convites para galerias e bienais. Tem se tornado comum, por exemplo, que videoartistas mostrem primeiro em portais como o Youtube ou Vimeo suas intervenções em vídeo, para depois mostrá-las em galerias ou espaços institucionais.


(O duo AIDS-3D na Bienal de Veneza, em 2009)

O trabalho dos meninos do AIDS-3D é um tanto inclassificável. Em sua página eletrônica, encontramos faixas de música, fotos de instalações e esculturas, mas sua "fama" reside mais em suas instalações em 3D, investigando novas (e também velhas) possibilidades através da arte digital. As discussões aqui seriam intermináveis, sobre mimese, simulacro, e todos conceitos que já se tornaram comuns em discussões da arte contemporânea. Amanhã, eles prometem um concerto sobre nosso palco, mas com elementos visuais e digitais.


("Jerusalem 2012", performance holográfica do duo AIDS-3D)

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As possibilidades da arte digital me interessam muito, assim como aos meus colegas no coletivo. O vídeo digital é central, por exemplo, para o trabalho do meu comparsa de coletivo Niklas Goldbach, que o usa para criar alertas pré-distópicos, numa espécie de Apocalipse Yesterday, contra a sociedade uniformizada e gentrificada que está se formando, clara distopia que tenta esconder-se sob lemas como o de "liberdade de mercado".


("Intruders", de Niklas Goldbach, 2007)


No trabalho de outro comparsa do coletivo, Daniel Reuter, a arte digital mistura-se com a performance e a instalação. No meu caso específico, tenho usado as possibilidades digitais, na verdade, para retornar a antigas poéticas da tradição, que acabaram desprestigiadas pela cultura literária, que Paul Zumthor chamaria, na verdade, de livresca. Meu uso das possibilidades digitais ocorre na tentativa de pesquisar elementos que estão na tradição poética há séculos. Alguns críticos ainda se prendem muito à questão do "novo", quando falam das "novas possibilidades digitais", mas não creio que haja contradição em usar as novas possibilidades digitais para investigar poéticas milenares, ligadas à oralidade e à performance. Já tentei cunhar os termos "multimedieval" ou "mídiaval", para deixar claro que minha poética está ligada à poética medieval, uma tradição que foi esquecida ou muitas vezes distorcida pelas ondas de neoclassicismo posteriores. Uso a arte digital para pesquisar uma est-É-tica que remonta a poetas como Taliesin (534 - 599), Guilherme IX da Aquitânia (1071 – 1126), Arnaut Daniel (1150 - 1210) ou Guido Cavalcanti (1250 - 1300), e então, a partir deles, até chegarmos aos grandes resgatadores da poética medieval: os dadaístas, como Hugo Ball e Kurt Schwitters.


(Ricardo Domeneck - "Six songs of causality", ao vivo no Espai d´Art Contemporani, em Castelló, Valência, Espanha) ---- poética que eu gostaria de crer "multimedieval", ou pelo menos herdeira, mesmo que indigna, dos poetas medievais, seja de um "britânico" como Taliesin, um islandês como Egill Skallagrímsson ou um occitano como Raimbaut de Vaqueiras.)

É um pouco irritante quando críticos perdem tanto tempo com essa discussão sobre o que é "novo" e o que não é, como se isso encerrasse o debate crítico ou fosse o valor mais importante de um trabalho, essa crença confusa e ingênua de que as vanguardas históricas eram meras buscas por cheap thrills novidadeiros. Muitos destes críticos sequer têm um conhecimento verdadeiro da poesia medieval, das poesias fora dos centros europeus, ou da poesia sonora contemporânea.

A noção de vanguarda propagada no Brasil ainda se concentra nesta militarização linearizante da história poética, algo que os poetas concretos, por quem tenho tanto respeito, não ajudaram a dissipar.

Entre os poetas brasileiros trabalhando com novas possibilidades tecnológicas, alguns as usam para retornarem a poéticas milenares, da oralidade e performance, como é o caso do poeta mineiro Ricardo Aleixo, que usa o vídeo muitas vezes para registrar trabalhos poéticos que passam pelas vanguardas históricas para se alojarem em poéticas ligadas, por exemplo, aos griots africanos. Isso ocorreu, no Brasil, muito mais entre "artistas visuais" que entre poetas, e penso aqui em Arthur Bispo do Rosário, Hélio Oiticica, Lygia Clark e José Leonilson. Dentre os poetas trabalhando nesta linha, poderíamos mencionar Marcelo Sahea, Márcio-André, Wladimir Cazé, entre alguns outros.



(Ricardo Aleixo, "descontinuidades número 1")


Augusto de Campos foi, entre os concretistas, o que mais investigou as possibilidades de uso de novas tecnologias e técnicas. Em alguns casos, como em poemas como "lygia finge" e outros daquela época, sua poética está completamente ligada à est-É-tica medieval, creio, algo que Eduardo Sterzi discutiu de forma muito interessante em seu ensaio para o volume Sobre Augusto de Campos (Rio de Janeiro: 7Letras, 2004), com organização de Flora Süssekind e Júlio Castañon Guimarães.


("dias dias dias", texto de Augusto de Campos, oralizado por Caetano Veloso)


Philadelpho Menezes (1960 - 2000), assim como hoje em dia Ricardo Silveira e André Vallias, entre outros, pesquisam de forma bastante assídua o que se poderia chamar de renovação com o uso das novas tecnologias, seja em termos de criação como de distribuição. A revista Errática, editada por Vallias, é uma plataforma valiosa para esta poética no Brasil.

Na Europa, o uso de novas tecnologias passa por alguém como Henri Chopin, que usou fitas magnéticas para retornar ao elemento mais primordial da poesia: a respiração antes da palavra, ou sua união em vocábulo.


(Henri Chopin no Festival de Poesia de Berlim, em 2003)

Outros, ainda na França, como o veterano Bernard Heidsieck e os mais jovens Christophe Fiat e Anne-James Chaton, usam a poesia oral e sonora para praticar uma poética que já chamei de pós-bárdica.


(Anne-James Chaton, "évênement nº1", ao vivo em Barcelona, 2001)


E há ainda os que têm investigado poéticas que são, ao mesmo tempo, milenares e novas, como é o caso do austríaco Jörg Piringer. Este vídeo-poema abaixo, de 2004, parece-me uma peça de poética pré-distópica, e bastante assustadora, pessoalmente, desde a primeira vez que a vi. É uma das maneiras como imagino o fim do mundo.



(Jörg Piringer, "Broe Sael", 2004)


Novos ou tradicionais, estas são todas poéticas NECESSÁRIAS. Junto com aqueles poetas excelentes que se mantêm sobre a página, pesquisando as muitas e múltiplas possibilidades da escrita, como Juliana Krapp, Angélica Freitas, Érico Nogueira, Dirceu Villa, Marco Catalão, João Filho, Eduardo Jorge, Marília Garcia, Fabiano Calixto, Diego Vinhas, Carlito Azevedo, Marcos Siscar, e tantos outros. Este texto não é proposta de canonização. Parafraseando Drummond:

PRECISAMOS DE TODOS.




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sábado, 19 de junho de 2010

Monumento ao ibuprofeno e outros irmãos químicos



Após os excessos de ontem à noite, nada melhor que litros de água e uma bela dieta de ibuprofeno, na falta de minha querida aspirina. Não é apenas a dor de cabeça cabralina que me assola, mas também aquela deliciosa garganta que decide tornar dolorosa a mera tentativa de engolir uma sopa. Senti vontade de reler aquele poema brilhante do João Cabral, "Num monumento à aspirina", do livro A Educação pela Pedra (1966).

Num Monumento à Aspirina
João Cabral de Melo Neto

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.



Enquanto isso, vou também escutando o novo álbum dos nerds britânicos Chemical Brothers. Eu já estava achando que seu trabalho estagnara, depois dos dois últimos álbuns sofríveis, mas este Further (2010), com oito faixas e vídeos, mostra que os master nerds de álbuns inovadores para a música pop como Exit Planet Dust (1995) e Dig Your Own Hole (1997) ainda estão em plena capacidade de fazer dançar. Comento e mostro o vídeo para o primeiro single, além da minha faixa favorita no álbum, chamada "Escape velocity", com 12 minutos, na plataforma digital de nossa SHADE inc, assinando como Kate Boss, meu codinome de DJ. Mostro aqui o primeiro single e vídeo oficial, para a faixa "Swoon".



"Swoon", do álbum Further (2010), dos Chemical Brothers.


Agora acho que vou tomar mais um ibuprofeno, querido irmão químico.

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quinta-feira, 17 de junho de 2010

Vídeo novo de Uli Buder, mais conhecido como Akia, para celebrar a chegada do sol

A cidade que eu costumo chamar de Berlimbo existe em um espaço geográfico específico, mas principalmente no tempo: trata-se da cidade que você encontra pelas coordenadas 52° 31′ N, 13° 24′ O no espaço-tempo que se manifesta nestas paragens entre setembro e maio, quando o frio impera. Não se trata, porém, apenas da temperatura, que pode ser horrorosa, chegando às vezes a 20 graus abaixo de zero. O problema principal é a falta de luz. As cidades do norte da Alemanha são escuras e cinzentas durante o inverno. O céu permanece nublado de forma quase incessante.

O inverno berlinense é particularmente brutal, e eu creio por vezes que a única coisa que mantém as pessoas nesta cidade é saber que entre junho e agosto, pelo menos, teremos sob nossos pés uma das cidades mais deliciosas do mundo. Pois, se Berlim pode ser inclemente por cerca de 9 meses, tornando-se o Berlimbo, quando chega o sol esta cidade se torna um dos lugares mais bonitos e prazerosos que você possa imaginar.

Meu caro comparsa Uli Buder, que se apresenta como Akia (e é um dos músicos mais talentosos que tenho a sorte de conhecer) acabou de postar em seu canal um vídeo novo, para uma faixa recente intitulada "Kuku", que mostra a luz solar gloriosa que está sobre nossas cabeças e circundando nossos corpos no momento.



"Kuku", de Uli Buder, mais conhecido como Akia.


Conheci Uli no início de 2009, quando ele estreou como DJ na festa de um amigo. Algumas semanas mais tarde, convidei-o para fazer um live set com sua música no nosso evento às quartas-feiras. Desde então, ele já tocou inúmeros live sets e DJ sets em nosso palco. Gosto bastante da delicadeza do seu trabalho, que pode também ser violentamente dançante quando ele se apresenta como DJ. Mas o mais bonito do que ele faz, em minha opinião, está nas faixas delicadas em que ele mistura de forma bem alemã o minimal techno e o electro. O trabalho de artistas conterrâneos como Apparat e Alva Noto são referências, creio.




Temos trabalhado juntos e tenho muito respeito por seu talento sonoro. Colaboramos até agora em apenas uma única peça, que já mostrei aqui, um vídeo que havia rodado com o tatuador Julian Greif alguns meses antes e que estava encalhado em meu computador. Uli editou o vídeo e também o texto oral que escrevi para o trabalho, fazendo uma paisagem sonora interessante com os sons do meu corpo (voz-língua) e os sons da máquina sobre o corpo de Julian Greif, enquanto este tatua a si mesmo.



Date of manufacture (2009). Imagem, texto e voz: Ricardo Domeneck. Edição e composição sonora: Uli Buder. Tattoo artist: Julian Greif.

Conheça mais do trabalho de Uli Buder, ou Akia, em sua página no portal Myspace.

Abaixo, o texto que oralizo no vídeo.

Date of manufacture

to become or not to
become
the item
one is
supposed to
describe
specific aching
and etching
only to appreciate
the design
of the time
we share
with fellow machines
for whom expiring
is a verb
of action
oh skin
against mass
customization
aid
us while our intestines
question ownership
& predate
our fabrics and tissues
for our predators


Ricardo Domeneck, 2009.


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quarta-feira, 16 de junho de 2010

Hoje é Bloom-feira, 16 de junho de 2010.

De banho tomado, café na goela, trabalho sofrido, obrigações urgentes sob controle, o sol explodindo acima, vou posicionar meu Ulysses debaixo do braço direito, capa apontando obviamente para o exterior para que todos vejam o que estou carregando, e darei então os cerca de 467 passos que separam meu apartamento do parque mais próximo. O clima hoje aqui no Berlimbo? Os alemães diriam que é um herrlicher Tag, um dia glorioso.

Mesmo que não seja o delicioso Finnegans Wake, ler Joyce em demasia pode causar elefantíase semântica, então levarei comigo, sob o braço esquerdo, o antídoto perfeito: meu The Making of Americans, da Gertrude Stein! Além de ler, posso também praticar, com os dois catataus, levantamento de peso! Oh bliss! Mens Sana in Corpore Sano! Os livros gigantes de dois dos maiores egos do século XX! Deslumbre!

domingo, 13 de junho de 2010

Os jovens poetas mortos

Creio que todo país carrega em sua tradição poética aqueles jovens mortos, os que partiram ou se retiraram cedo, deixando obras inacabadas e lendárias para aqueles que ficaram. Quando se trata dos poetas do século XIX e antes dele, isso é comum, já que todos morriam tão cedo. Pensamos em todos aqueles jovens poetas românticos, afogados, afundando no mar com seus cachos loiros e tudo, derretidos por febres em suas camisas brancas, tossindo sangue sobre penas e tinteiros; John Keats, morto aos 26 anos; Percy Bysshe Shelley, com 29; nosso Álvares de Azevedo, autor do admirável "Ideias íntimas", morto aos singelos 21; sem esquecer o antiquíssimo jovem Caio Valério Catulo, morto aos 30; o enfant terrible / ousider / marginal dos primórdios, antes que os românticos fundassem o mito-obrigação para os poetas pós-1789 --- François Villon, o de "En l'an de mon trentiesme aage", antes de desaparecer dos registros da História aos trinta-e-poucos.

Se entramos na primeira metade do século XX, a lista de jovens poetas mortos nas guerras e revoluções e prisões e expurgos e extermínios e Holocausto cresce como coluna de fumaça neste nosso céu contemporâneo de primavera. Há uma famosa antologia de poesia modernista publicada aqui na Alemanha, editada por Hans Magnus Enzensberger, com páginas de biografia para os poetas incluídos que mais parecem uma genealogia ao inverso, uma espécie de tanatologia incessante de "morto no bombardeio de...", "desaparecido no expurgo do...", "assassinado no campo de extermínio da...", e etc., se um etc for eticamente permitido em uma oração como esta última.

Nomes nos inundam a mente, os que se suicidaram por se recusarem a firmar pactos com os demônios de suas épocas, os que sucumbiram a metralhadoras, fome e enfermidades, de Guillaume Apollinaire a Ossip Mandelshtam, de Augusto dos Anjos a Georg Trakl, de Marina Tsvetáieva a Isaac Rosenberg, de Miklos Radnóti a Velimir Khlébnikov, de August Stramm a Pedro Kilkerry, de Vladimir Maiakóvski a Simone Weil, tantos, tantas, que nossa pobreza se torna inexprimível. Menciono aqui apenas europeus e americanos. Se conhecêssemos mais da poesia africana ou árabe, quantas mortes violentas ou tristes acrescentaríamos a esta lista? Vem-me à mente o nome do poeta nigeriano Christopher Okigbo (1932–1967), de quem li alguns belos poemas recentemente.

No pós-guerra, houve ainda o suicído de tantos, sejam os suicídios instantâneos ou as mortes lentas dos que se afogaram em uma garrafa de uísque. No Brasil, basta pensarmos no suicídio de Ana Cristina Cesar e na morte lenta de Paulo Leminski.


já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo

morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma

morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma


( Paulo Leminski )


No número 20 da revista Inimigo Rumor, há um ensaio muito interessante de Flora Süssekind, em que ela analisa o processo de canonização via martírio nos discursos críticos sobre Leminski e Cesar.


Psicografia

Também eu saio à revelia
E procuro uma síntese nas demoras
Cato obsessões com fria têmpera e digo
Do coração: não soube e digo
Da palavra: não digo (não posso ainda acreditar
Na vida) e demito o verso como quem acena
E vivo como quem despede a raiva de ter visto.


( Ana Cristina Cesar )

É muito bom o ensaio, e nos deixa com várias perguntas na mente, se esta canonização heroicizante atrapalha nossa compreensão dos trabalhos destes poetas, ao mesmo tempo que os mantém editados. No ensaio, Süssekind discute ainda o poeta Cacaso, por quem não consigo me interessar muito. Teria ficado mais instigado se o trio fosse completado por Torquato Neto (1944 - 1972).


Let’s Play That

quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando a minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let’s play that


( Torquato Neto )


Talvez seja inevitável. Nós vivemos em busca de heróis. Mas será necessário que sejam mártires? Será que nós os martirizamos para que possamos amá-los? Não podemos amar um poeta vivo e feliz? Banhá-lo em alegria? Não me esqueço que mesmo nós, poetas, em momentos de pobreza e miséria tentamos dar certo glamour à incompreensão, murmurando algo como:

"Minha vida é uma merda, mas isso tudo ficará lindo em minha biografia."

Assim, os obscuros seguem na espera de sua inclusão na martirologia futura, caso de poetas esquecidíssimos como Décio Bar (1943-1991)? Tudo o que posso dizer é que, pelos pouquíssimos poemas que pude descobrir, ele não merece o esquecimento.

Idades
Aos 45 do primeiro tempo,
que molde
        toma
                a vaidade?
Mais 1 minuto
          e o jogo
               pára
Mais 15, ele recomeça
Só que
    então
já serão
os semifinais da morte

( Décio Bar )

Na Alemanha, talvez possamos ver um desses jovens heróis na figura principal do ótimo Rolf Dieter Brinkmann, desconhecido no Brasil, mas talvez um dos mais populares poetas alemães nos últimos 20 anos, morto aos 35 em 1975 (ele nascera em 1940), atropelado enquanto bêbado, em Londres, onde estava para fazer leituras de seus poemas, além do heróico e popularíssimo Hubert Fichte (1935–1986). Traduzi um bonito poema de Rolf Dieter Brinkmann para o segundo número impresso da Modo de Usar & Co.. Outros poetas que têm, nos últimos anos aqui na Alemanha, vagarosamente alcançado esta posição de glória contraditória como marginais ou malditos, aos poucos santificados, são também Jörg Fauser (1944 - 1987) e Ronald M. Schernikau (1960 - 1991), este último vítima da epidemia de AIDS que nos roubou tanto, e nos deixou tão pobres como o fizeram, antes, a sífilis, a tuberculose e as guerras dos séculos. Além destes, na minha lista de prioridades como tradutor está também a necessidade de começar a traduzir poemas de Inge Müller (1925 - 1966), excelente e delicadíssima poeta lírica que se suicidou aos 40 anos, a esposa do dramaturgo e poeta Heiner Müller, cuja obra acabaria sob sua sombra. Onde estão as feministas de plantão quando precisamos delas, para manter a obra de uma boa poeta sob os holofotes, como fizeram com Sylvia Plath, a autora do lindo Ariel (1962)?

Digressões fúnebres, talvez. Ora, na verdade este artigo teve início porque estava relendo, esta manhã enquanto O Moço ainda dormia, o poeta canadense Barrie Phillip Nichol, mais conhecido como bpNichol (1944 - 1988), que traduzi e tentei apresentar a um público maior no Brasil há um par de anos, na Modo de Usar & Co. eletrônica. É que alguns paralelos chamaram-me a atenção, como toda vez que o leio:

Nichol (1944 - 1988) foi contemporâneo exato de Leminski (1944 - 1989), e parece assumir no Canadá uma espécie de posição parecida com a de Leminski na poesia brasileira contemporânea, assim como Brinkmann (1940 - 1975) aqui na Alemanha.

Talvez como Frank O´Hara (1926 - 1966) nos Estados Unidos, Alejandra Pizarnik (1936 - 1972) e Néstor Perlongher (1949 - 1992) na Argentina, ou Juan Luis Martínez (1942 - 1993) no Chile?

El Cisne Troquelado (el Encuentro)

Nombrar / signar / cifrar: el designio inmaculado:
su blancura impoluta: su blanco secreto: su reverso blanco.
La página signada con el número de nadie:
el número o el nombre de cualquiera: (LA ANONIMIA no nombrada).
El proyecto imposible: la compaginación de la blancura.
La lectura de unos signos diseminados en páginas dispersas.
(La Página en Blanco): La Escritura Anónima y Plural:
El Demonio de la Analogía: su dominio:
La lectura de un signo entre unos cisnes o a la inversa.


( Juan Luis Martínez )

Poderia ousar criar um paralelo entre estes e o poeta mexicano Mario Santiago Papasquiaro (1953- 1998)? Será mesmo que uma vida insana de inadequação nos aproxima da morte, an untimely death, como dizem as biografias de jovens poetas mortos de língua inglesa?


Comienza a vomitar la luz

El Amor no es una ecuación mental,
el Odio sí que raspa las rodillas
enmudece labios / encanece niños;
por lo pronto
ningún dibujito fálico
en la pizarra de una escuela es la vida/
porque mientras la muerte
camina ya sobre nosotros:
"Tarantula´s Power",
la Vida no puede seguir siendo
un mero manchón de comida
sobre la ropa limpia.
Ni ésto,
ni un póster de Raquel Welch
o Emiliano Zapata reducido a póster;
De una vez:
Ni las fábulas de
Stalin o Samaniego.


( Mario Santiago Papasquiaro )


Tudo isso, as ideias sobre a martirização dos jovens poetas mortos, estes paralelos arbitrários meus entre os heróis de diferentes tradições poéticas, inundaram minha mente enquanto lia poemas do belo livro de bpNichol, chamado The Martyrology, longo poema em 9 livros / 5 volumes que ele começou a publicar em 1972, do qual traduzi dois ou três poemas e reproduzo um aqui:


Poema do primeiro livro de The Martyrology

dos santos que conhecemos a listagem segue

santinhoca desposou santoró
deu à luz santisse e santave

das famílias eis a mais antiga

santisse desposou santrio
deu à luz santlector
que desposou santagnes
deu à luz santargem

santave desposou santeto
deu à luz santrangulo
que não desposou

das outras famílias
estas mencionamos

santoente desposou santova
deu à luz sanjunção & santesta

sanjunção não desposou

santesta desposou santan
deu à luz seu filho
o sem registro


a esposa de santadaga caiu no olvido
deu à luz santruco & santeneja
deu à luz nenhúguem
perecendo no fogo que lector ateara


(tradução de Ricardo Domeneck)



§§§

from Martyrology 1

of those saints we know the listing follows

saint orm married saint rain
gave birth to saint iff and saint ave

this is the oldest family

saint iff married saint rive
gave birth to saint reat
who married saint agnes
gave birth to saint rand

saint ave married saint raits
gave birth to saint ranglehold
who did not marry

of the other families
these we mention

saint ill married saint ove
gave birth to saint and & saint rike

saint and did not marry

saint rike married saint ain
gave birth to their son
the nameless one

saint aggers wife is now forgotten
gave birth to saint ump & saint rap
gave birth to noone
dying in the fire reat had set


( bpNichol )



E você, meu querido poeta jovem, quer também ser um mártir ou um finado que nós canonizamos no glamour da morte? Espero que não, já nos empobreceu demais a tristíssima perda de Leonardo Martinelli (1971 - 2008), sem mencionar a da obra-em-sombras de Hilda Machado (1952 - 2007). Desejo a você, jovem poeta, uma vida longa, produtiva, com muitos poemas lindos, e então uma morte feliz, como quer que você a imagine.


Receitas para engolir e curar o fracasso

Origem, compra, preparo e sabor

1. Ave sertaneja
de porte médio
fibrosa, rija
de vida noturna

Preços: vinte e
sete contos o quilo
no Mercadão de
Madureira ou

trinta e sete
(ágio de dez paus)
nos açougues febris
da rede Mundial

O jeito é pegar
um 254 na madruga
ou encarar de frente
o trem da Central


2. Embrulhe o fracasso
com jornal de ontem


3. Afogue duas postas numa
panela de barro contendo
dois litros de vinho barato

Salgue e asse
em fogo alto

Enfeite o prato
com uma dúzia de

amóreas secas + 100 g
de fios de óvulos


4. Aí vai ele
numa baixela dourada
ridícula - duas
palavras
em francês fajuto
farão sorrir amarelo

o rapaz de
meia-idade e enrubescer
as bochechas
gentis suburbanas
à mesa

Rende
para uma duas três
mil pessoas


Posologia

Uma vez
hiperdosada
vai-se a bula ao
mar de bile



( Leonardo Martinelli )

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sexta-feira, 11 de junho de 2010

Horas felizes na companhia de um ótimo poeta e gigantesco amigo

Eduard Escoffet


Uma das minhas alegrias pessoais, ligada ao Festival de Poesia de Berlim, é a certeza de que pelo menos uma vez por ano eu poderei encontrar o poeta catalão Eduard Escoffet (Barcelona, 1979), que se tornou um cúmplice, um companheiro, um amigo na alegria e na tristeza, desde que nos conhecemos neste mesmo festival, em 2007. Menciono-o com frequência neste espaço, já cruzamos caminhos em vários festivais europeus, e seu apartamento, a algumas quadras da Sagrada Família de Gaudí, é um dos meus portos seguros quando preciso sair de Berlim por um tempo, para arejar a existência. Como organizador de alguns dos mais importantes festivais de poesia da Catalunha, e, a partir deste ano, diretor oficial do imponente Festival de Poesia de Barcelona, Escoffet está sempre entre os convidados do festival berlinense. Aprendi muito com ele e eduquei-me infinitamente sobre a História da poesia oral e sonora em sua biblioteca e discoteca pessoais, em Barcelona, creio que a única cidade que já chegou a tentar-me fortemente a deixar Berlim, com exceção talvez de Buenos Aires. Bela ponte de poesia, aliás, este BBB, Berlimbo Barna BAires, as cidades onde moram alguns dos meus contemporâneos prediletos, além de amigos insubstituíveis. Passamos várias horas conversando, mais uma vez, nesta sua passagem por Berlim, caminhando ao longo do rio Spree, trocando ideias, descobertas de novos poetas sonoros, falando sobre nossos grandes ídolos compartilhados, como Gil J. Wolman, Bernard Heidsieck, Bartomeu Ferrando, os dadaístas, os trovadores medievais occitanos/provençais e catalães, além de recomendar um ao outro os nomes de jovens poetas que descobrimos, conhecemos e apreciamos.

Convido vocês a conhecerem mais do trabalho de EDUARD ESCOFFET, visitando sua página no portal Myspace. Abaixo, reproduzo um poema seu que traduzi, além de alguns vídeos.


§


(Eduard Escoffet, apresentando-se com o coletivo Bradien, na Catalunha)

§


(Eduard Escoffet no Poesiefestival Berlin, em 2007, quando nos conhecemos)

mtp 1

a)

"um escritor é aquele que impõe silêncio à palavra" – Maurice Blanchot


b)

quase às vezes / quase quase sempre
quase às vezes / quase quase sempre
o texto que digitas:
cada letra escrita tem o traço
de um corpo: os cabelos e a pele vão tomando forma:
a letra. e um nome que é desintegrado.
quase às vezes / quase quase sempre.

c)

nada há a dizer e contudo necessitamos escrever.
as palavras sulcam a necessidade e contudo as reiventamos como calafetadores:
a madeira, a madeira que já não é madeira:
madeira no crânio, madeira no tórax, madeira nas entranhas.

hoje qualquer corpo / ele é a madeira
(a de um outro escrito)

d) agora agito as mãos e se move um pouco o ar.


(tradução de Ricardo Domeneck)



mtp1


a)

"un escriptor és aquell que imposa silenci a la paraula" maurice blanchot


b)

quasi de vegades / quasi quasi sempre
quasi de vegades / quasi quasi sempre
el text que estàs picant:
cada lletra escrita té la traca
d´un cos: els cabells i la pell van prenent forma:
la lletra. i un nom que es desdibuixa.
quasi de vegades / quasi quasi sempre

c)

no hi ha res a dir, i tanmateix necessitem escriure.
les paraules solquen la necessitat, i tanmateix les reinventem talment calafatadors:
la fusta, la fusta que ja no és fusta:
fusta al cervell, fusta al cor, fusta a les entranyes.

avui qualsevol cos / ell és la fusta
(la d´un altre escrit)


d)

ara bellugo les mans e es mou un poc l´aire.


mtp, 1-viii-02


§




(Entrevista de Eduard Escoffet para a televisão espanhola, em catalão)

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quinta-feira, 10 de junho de 2010

Outra noite no Festival de Poesia de Berlim, com poetas alemães, italianos e espanhóis

Na terça-feira, houve uma leitura no Poesiefestival Berlin com os poetas deste ano no projeto Versschmuggel, algo como "contrabando de versos", uma oficina de tradução em que pares de poetas, sempre um germânico e o do país ou língua "convidada", diferente a cada ano, passam uma semana traduzindo um ao outro, mesmo sem conhecer a língua do colega, com a ajuda de um tradutor profissional. A ideia se assemelha, talvez, a descrições que li sobre a maneira como Boris Schnaiderman, Haroldo de Campos e Augusto de Campos trabalharam nas traduções de poetas russos modernistas, ou a forma como W.H. Auden traduziu, em parceria, poetas de línguas que desconhecia. Chama-se o conceito, aqui na Alemanha, de Nachdichtung, em que um tradutor faz uma primeira versão literal, respeitando apenas o tal de "sentido", e faz então, para o poeta que vai "pós-poetizar" o texto, anotações sobre o contexto em que o texto se insere, sobre eventuais referências intertextuais, jogos de palavras, informações sobre o registro, se culto ou coloquial, para que, juntos, os dois poetas então recriem o poema na outra língua. Em 2008, quando a Última Flor do Lácio foi a convidada do festival, fui pareado com a poeta alemã Sabine Scho, Angélica Freitas com o também alemão Arne Rautenberg, Paulo Henriques Britto com o austríaco Hans Raimund, e Marco Lucchesi com o alemão Nikolai Kobus. Havia ainda poetas portugueses e africanos. No ano passado, a oficina pareou poetas germânicos e poloneses, e este ano, como o foco do festival recai sobre os países mediterrâneos, os pares dos alemães eram poetas italianos. Fui à leitura pois um dos convidados era Nanni Balestrini (Milão, 1935), e queria a oportunidade de ouvi-lo pela primeira vez.

Depois desta leitura, houve outra com poetas espanhóis e cantores de flamenco contemporâneos, que musicaram textos de poetas como Ibn Arabi (1165 - 1240), Jorge Luís Borges (1899 – 1986) e Joan Brossa (1919 - 1998). Meu querido Eduard Escoffet (Barcelona, 1979), um dos melhores jovens poetas da Catalunha, acabou participando da leitura, lendo poemas do interessante poeta catalão Biel Mesquida (Castelló de la Plana, 1947), que não pôde comparecer por motivos de saúde e pediu a Escoffet que o representasse. A outra poeta era María Eloy-García (Málaga, 1972), e os cantores eram Curro Piñana e Ginesa Ortega. Saí de lá com algumas impressões e ideias, geradas pelas leituras, mas ainda preciso matutar mais antes de borrá-las por aqui. Deixo vocês com um vídeo de Curro Piñana, cantando textos de poetas árabes.




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terça-feira, 8 de junho de 2010

Enquanto isso, no Berlimbo, canta-se e dança-se em meio às velhas crateras e os colapsos econômicos em redor.

§ - O músico alemão Apparat, como gancho para comentar o "Pop sintético" ou Synth-Pop, e a Música Eletrônica Alemã.

Amanhã, uma de minhas criaturas contemporâneas alemãs prediletas apresenta-se em nossa SHADE inc. Trata-se de Sascha Ring, o artista/produtor sonoro conhecido como Apparat. Já o apresentei em minha HILDA magazine há dois anos, não sei ao certo o quanto ele é conhecido no Brasil. Na Europa, ele é muito respeitado. Eu gosto muito do seu trabalho. Em um país onde as raízes com a música popular foram cortadas e arrancadas, por questões políticas (a suspeita de nacionalismo que imediatamente remetia aos crimes nazistas), a música teve que buscar espaço de intervenção e criação no sintético, digamos. Daí a excelência e caráter ponta-de-lança da música eletrônica alemã, com coletivos como Kraftwerk, Can ou Tangerine Dream, e, mais tarde, do Punk alemão e da chamada Neue Deutsche Welle (Nova Onda Alemã), com coletivos como Die Tödliche Doris, Die Goldenen Zitronen, Malaria!, Palais Schaumburg, Hans-A-Plast, etc.

Com a explosão do techno e outros gêneros da música eletrônica na década de 90, Berlim confirmou-se mais uma vez como um dos grandes centros musicais para a experimentação com sintetizadores e, mais tarde, programas de computador. Muito da música produzida na década de 90, em minha opinião, parece por vezes cerebral demais, ou, pelo contrário, dirigida tão-somente para a espinha dorsal - basta que você dance. O que eu aprecio em Apparat é que, mesmo quando ele está produzindo minimal techno, há emoção e delicadeza em sua música. A faixa que mostro aqui, chamada "Arcadia", é de seu último álbum. Em sua linda e delicada voz, ele canta uma pequenina peça lírica de poucos versos. O vídeo me parece muito lindo também.




Arcadia
Sascha Ring aka Apparat.

What's the point
Of waiting
For life to come
I could go further
And no one's surprised
Your plans collapse
Run off
Or fall apart



Outra composição de que gosto muitíssimo é esta "Fractales I & II", do mesmo álbum, também com um belo vídeo.


("Fractales I & II", Apparat, do álbum Walls, 2007)


§- O Synth-Punk da banda Herpes, do vocalista e poeta punk-satírico Florian Pühs.


Este ano foi lançado o primeiro álbum da banda Herpes, sobre a qual já escrevi aqui. Eu chamaria o que eles fazem de Synth-Punk. As letras de Florian Pühs são ótimas, inteligentes e com a dose necessária de sarcasmo ao lidar com a Alemanha e o Berlimbo. Já escrevi aqui sobre sua canção "Neue Dresdener Schule", que usa versos do poeta alemão Heinrich Heine. Esta canção que mostro hoje, a também satírica "Very Berlin", está tocando sem parar nas rádios daqui. Este é o vídeo que a gravadora insistiu em fazer. Na verdade, Florian Pühs havia idealizado outro, que chegamos a gravar e no qual eu dançava, reencenando uma das cenas mais famosas do primeiro filme de Jim Jarmusch, Permanent Vacation (1980), mas a gravadora achou que o que fizemos era "conceitual demais", e não o aprovou (a cegueira da maioria das gravadoras e editoras é a única coisa que me parece "universal"). Resta este aqui.




("Very Berlin", da banda Herpes, letra de Florian Pühs, 2010)
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sábado, 5 de junho de 2010

A noite de abertura do Festival de Poesia de Berlim

Ontem à noite ocorreu a abertura do Festival de Poesia de Berlim (Poesiefestival Berlin), o maior da Europa. Cada ano traz um enfoque. Em 2008, a língua portuguesa era a convidada, e o festival trouxe a Berlim alguns poetas brasileiros, portugueses e africanos, como Paulo Henriques Britto, Arnaldo Antunes, Claudia Roquette-Pinto, Angélica Freitas, Ana Luísa Amaral, Tony Tcheka, entre outros. Também pude participar e conhecer alguns destes poetas, além de rever queridos amigos. Este ano, o enfoque é o mundo cultural mediterrâneo.

A noite de abertura sempre concentra as "estrelas" do festival. A grande estrela deste ano, sem dúvida, era o cingalês-canadense Michael Ondaatje, que eu, sinceramente, nem sabia que escrevia poesia, sendo famoso como o autor de um romance que virou filme, The English Patient, de 1992. Uma pesquisa rápida mostrou-me esta semana que ele publicou, na verdade, mais volumes de poemas que romances, estreando como poeta no início da década de 60, com volumes como Social Call (1962) e The Dainty Monsters (1967). Seus textos e sua leitura me pareceram elegantes.


The Cinnamon Peeler
Michael Ondaatje

If I were a cinnamon peeler
I would ride your bed
and leave the yellow bark dust
on your pillow.

Your breasts and shoulders would reek
you could never walk through markets
without the profession of my fingers
floating over you. The blind would
stumble certain of whom they approached
though you might bathe
under rain gutters, monsoon.

Here on the upper thigh
at this smooth pasture
neighbor to your hair
or the crease
that cuts your back. This ankle.
You will be known among strangers
as the cinnamon peeler's wife.

I could hardly glance at you
before marriage
never touch you
-- your keen nosed mother, your rough brothers.
I buried my hands
in saffron, disguised them
over smoking tar,
helped the honey gatherers...

When we swam once
I touched you in water
and our bodies remained free,
you could hold me and be blind of smell.
You climbed the bank and said

this is how you touch other women
the grasscutter's wife, the lime burner's daughter.
And you searched your arms
for the missing perfume.
and knew
what good is it
to be the lime burner's daughter
left with no trace
as if not spoken to in an act of love
as if wounded without the pleasure of scar.

You touched
your belly to my hands
in the dry air and said
I am the cinnamon
peeler's wife. Smell me.





§


Para mim, no entanto, a grande atração da noite de abertura era o chileno Raúl Zurita. Traduzi um longo poema do chileno, intitulado "Áreas verdes", para o segundo número impresso da Modo de Usar & Co., publicado em 2009. Gosto bastante do trabalho dele, ainda que ele esteja um pouco distante da nossa sensibilidade poética brasileira do pós-guerra. Na verdade, sua leitura confirmou esta sensação. Ouvindo-o esbravejar seu poema para a sua "mátria" Chile, contra a ditadura, eu me encolhia na cadeira, sentindo em cada fibra do meu ser como a timidez elegante, discrição e postura sem ênfase de homens como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos influenciaram nossa recepção-expectativa para a poesia. Lembro-me de conversar com poetas argentinos no Festival de Poesia de Buenos Aires, em 2006, e ouvi-los reclamar que os chilenos lhes pareciam grandiloquentes demais. Quando perguntaram minha opinião, lembro de ter respondido: "Meus caros, eu sou brasileiro, para um brasileiro o simples ato de levantar-se da cadeira já parece grandiloquência poética demais." Lembrem-se que isto está vindo de alguém obcecado pelo assunto da importância da oralidade. Parece-me apenas muito interessante como nossas posturas são diferentes. O Chile abriga alguns dos poetas mais importantes da América Latina hoje, desde veteranos como Nicanor Parra, Gonzalo Rojas e o próprio Raúl Zurita, até chegar a poetas como Sergio Parra, o impressionante Yanko González e uma das figuras mais interessantes da jovem poesia latino-americana: o não menos impressionante Héctor Hernández Montecinos. Há um texto de Roberto Bolaño em que este revisita seus mestres, elogiando e se distanciando, em que ele menciona justamente o messianismo de Raúl Zurita, algo que incomodava Bolaño em relação à poesia chilena. O último livro de Montecinos, ao que tudo indica, parece voltar os olhos para esta mesma discussão, com o volume La Poesía Chilena Soy Yo (2009). Nós, brasileiros do século XXI, com mestres como Oswald, Drummond ou Cabral, parecemos ter uma relação muito diferente com nossa identidade nacional e também com a história recente do Brasil. No caso da relação com a ditadura, talvez as relações sejam opostas. Se o Brasil parece viver em constante negação de seu passado ditatorial, sem mostrar-se disposto a rever algumas das estruturas que permaneceram daquela época, o Chile parece não poder seguir adiante antes de curar cada ferida daquele período tenebroso. Não sei. Talvez as duas atitudes sejam pouco saudáveis, pois a sensação que tenho, por vezes, é que no Brasil faz-se com que a ditadura explique muito pouco e, no Chile, que ela explique demais. De qualquer maneira, Zurita segue sendo admirável.




§


Voltando à noite de abertura do festival, outra poeta que me interessou muito na leitura foi a americana Cole Swensen. Ela nasceu na Califórnia, onde formou-se e ensina Literatura Comparada. Alguns a associam ao grupo de poetas da San Francisco Bay Area, muitos deles Language poets oficiais.

The Evolution of the Garden (As Albertus Magnus instructs us)
Cole Swensen


that shade is dearer than fruit        and the trees be not bitter ones        let them
not be
bitter please
pass me the sun

There were three distinct types of medieval garden: ornamental, orchard, and
ones populated by animals and birds where we’re allowed only in shadow and
falter

walking on windows: hortus in which viridarium; virgultum; Espalier the king
         or peach with its
branches so arranged
that the ripening fruit mimes
constellations and passes through the entire zodiac in all the proper steps
                        : must be grafted, apple, pear,
                                           manor, and
                                                 there go the deer! There were
carefully selected and ornamented spots for viewing
 all of geometry
devolved from planting
         the three:four:five triangular section                     sang at night: O
Master of the Embroidered Foliage painting his eyeball green we were walking
through the fine tissue of which the ripping sound at the back of the picture
on the bottom of the world that
we could live here
                   gardinum
                   hundreds
                   of acres set aside for watching animals.







§

Houve também uma apresentação da poeta sonora israelense Anat Pick. Para dar uma ideia de seu trabalho, encontrei este vídeo na Rede.



§



Os outros poetas foram os alemães Elke Erbe e Michael Krüger, o russo Dmitry Golinko, o excelente poeta chinês Yang Lian, com quem li no Festival Internacional de Poesia de Dubai e sobre o qual já escrevi neste espaço, e o congolês Nina Kibuanda.





Relatarei mais assim que puder.

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quinta-feira, 3 de junho de 2010

Poema inédito e entrevista

Caros, a nova edição da revista eletrônica Celuzlose está no ar. Conheci seu editor, o poeta Victor Del Franco, em minha passagem pelo Brasil em dezembro do ano passado, quando lancei o Sons: Arranjo: Garganta. Del Franco perguntou-me se eu daria uma entrevista para a edição de junho da revista; eu aceitei, mesmo sabendo que as pessoas já devem estar cansadas do que tenho a dizer sobre isto ou aquilo. De qualquer maneira, a entrevista foi muito legal e estimulante, tentei elaborar, da forma mais clara possível, algumas ideias que ainda parecem gerar certa antipatia, como minha crença na conjunção entre estética e ética, a historicidade do fazer poético, as relações entre oralidade e escrita. Quem se interessar, passe pela revista. Quem estiver cansado do que tenho a dizer, espero que encontre algum prazer no meu poema inédito, ao lado de três outros poemas, um de cada um dos meus livros publicados, assim como links para alguns dos meus vídeos, como o de minha performance na Espanha para as "Six songs of causality", meus "ensaios orais" Garganta com texto (2006) e A educação dos cívicos sentidos (2009), além de poemas-em-vídeo como o "Pequeno estudo sobre os ciúmes", uma das coisas que mais gosto de ter feito.


Motivo muito melhor para visitar a revista é a possibilidade de ler poemas inéditos de Érico Nogueira e da portuguesa Sylvia Beirute, além de poemas visuais de Arnaldo Antunes.


REVISTA CELUZLOSE - edição de junho de 2010. Editada por Victor Del Franco.

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terça-feira, 1 de junho de 2010

Das canções favoritas: "Metal heart", de Chan Marshall, ou Cat Power

Soube pelo Demônio Amarelo, espaço mantido pelo querido Dirceu Villa, que Cat Power esteve de passagem pelo Brasil e fez uma excelente apresentação em São Paulo. A notícia me trouxe velhas lembranças ligadas a Chan Marshall. Em primeiro lugar, lembrei-me imediatamente de sua apresentação em São Paulo em 2001, no SESC Vila Mariana, que foi um verdadeiro desastre. Cat Power era já famosa naqueles tempos por subir completamente bêbada no palco, incapaz de terminar qualquer canção, com problemas no violão, no piano. Aquela noite não manchou a admiração que eu tinha por ela, minha paixão por sua música, mas ficou na memória como uma noite triste. Era muito triste vê-la naquele estado, por mais que alguém pudesse tentar glamourizar o artista atormentado, bêbado, sofredor. Ela parecia imensamente infeliz, sozinha naquele palco enorme do SESC Vila Mariana, apenas com um piano e todo o álcool do mundo. Parafraseando o poeta polonês Zbigniew Herbert, que em seu poema sobre Tucídides falava sobre o "preço do exílio" nos versos "exiles of all times / know what price that is", eu diria aqui que "artistas bêbados de todos os tempos sabem que tristeza é esta."

Outra lembrança foi a da primeira vez que ouvi/vi Cat Power. Era tarde da noite, eu era ainda um adolescente, zapeando pela televisão, quando apareceu o vídeo para a estupenda canção "Nude as the news", do álbum What Would The Community Think, de 1996, com uma Chan Marshall novíssima, de cabelos curtos, claramente embriagada, em imagens em preto-e-branco, tagarelando, caminhando, ensandecida e ao mesmo tempo calma em sua loucura. Foi amor à primeira vista, e esta canção segue sendo uma de minhas all-time-favorites, com seu texto absurdo e enraivecidamente erótico.




("Nude as the news", Chan Marshall, ou Cat Power)


No entanto, o primeiro álbum de canções de Cat Power que comprei foi Moon Pix, de 1998. Do álbum, creio que minha canção favorita é aquela que a própria Cat Power declara ser uma de suas favoritas: "Metal heart", que vocês podem ouvir aqui neste vídeo, com Cat Power ainda muito moça, indie girl descabelada, em 1998.



("Metal heart", ao vivo em San Francisco)



Além das lindas canções de sua própria autoria, Chan Marshall é uma intérprete muito boa, que já lançou dois álbuns com versões para canções alheias. Minha favorita ainda é sua versão para a deslumbrante "Moonshiner", que já foi cantada, dentre outros, por Bob Dylan. A de Cat Power é de longe a mais linda.


("Moonshiner", canção popular, na versão de Chan Marshall)

"Moonshiner" é seguramente, ao lado de "O mundo é um moinho", do Cartola, a canção mais triste do mundo.

Moonshiner
tradição popular norte-americana

I've been a moonshiner
For seventeen long years
I spent all my money on whisky and beer

I go to some hollow
And set up my holy holy still
If drinking does not kill me
Then I don't know what will

I go to some bar room
And drink with my friends
If women and men would come to follow
To see what I might spend

God bless them handsome men
I wish they were mine
Their breath is as sweet as
The dew on the holy holy vine

You're already in hell, you're already in hell
I wish we could go to hell
When the bottle gets empty
Then life ain't worth the drown




Ela está cada vez mais bonita. A idade a transformou num mulherão. Desde que deixou de beber, suas apresentações, pelo que tenho lido, tornaram-se perfeitas, maravilhosas. Espero pela chance de vê-la/ouvi-la aqui no Berlimbo. Encerro esta postagem com a entrevista abaixo, mostrando uma Chan Marshall honesta, sincera, cândida, terna, singela, linda Chan Marshall.



(Chan Marshall em entrevista para o New York Times)

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