domingo, 13 de junho de 2010

Os jovens poetas mortos

Creio que todo país carrega em sua tradição poética aqueles jovens mortos, os que partiram ou se retiraram cedo, deixando obras inacabadas e lendárias para aqueles que ficaram. Quando se trata dos poetas do século XIX e antes dele, isso é comum, já que todos morriam tão cedo. Pensamos em todos aqueles jovens poetas românticos, afogados, afundando no mar com seus cachos loiros e tudo, derretidos por febres em suas camisas brancas, tossindo sangue sobre penas e tinteiros; John Keats, morto aos 26 anos; Percy Bysshe Shelley, com 29; nosso Álvares de Azevedo, autor do admirável "Ideias íntimas", morto aos singelos 21; sem esquecer o antiquíssimo jovem Caio Valério Catulo, morto aos 30; o enfant terrible / ousider / marginal dos primórdios, antes que os românticos fundassem o mito-obrigação para os poetas pós-1789 --- François Villon, o de "En l'an de mon trentiesme aage", antes de desaparecer dos registros da História aos trinta-e-poucos.

Se entramos na primeira metade do século XX, a lista de jovens poetas mortos nas guerras e revoluções e prisões e expurgos e extermínios e Holocausto cresce como coluna de fumaça neste nosso céu contemporâneo de primavera. Há uma famosa antologia de poesia modernista publicada aqui na Alemanha, editada por Hans Magnus Enzensberger, com páginas de biografia para os poetas incluídos que mais parecem uma genealogia ao inverso, uma espécie de tanatologia incessante de "morto no bombardeio de...", "desaparecido no expurgo do...", "assassinado no campo de extermínio da...", e etc., se um etc for eticamente permitido em uma oração como esta última.

Nomes nos inundam a mente, os que se suicidaram por se recusarem a firmar pactos com os demônios de suas épocas, os que sucumbiram a metralhadoras, fome e enfermidades, de Guillaume Apollinaire a Ossip Mandelshtam, de Augusto dos Anjos a Georg Trakl, de Marina Tsvetáieva a Isaac Rosenberg, de Miklos Radnóti a Velimir Khlébnikov, de August Stramm a Pedro Kilkerry, de Vladimir Maiakóvski a Simone Weil, tantos, tantas, que nossa pobreza se torna inexprimível. Menciono aqui apenas europeus e americanos. Se conhecêssemos mais da poesia africana ou árabe, quantas mortes violentas ou tristes acrescentaríamos a esta lista? Vem-me à mente o nome do poeta nigeriano Christopher Okigbo (1932–1967), de quem li alguns belos poemas recentemente.

No pós-guerra, houve ainda o suicído de tantos, sejam os suicídios instantâneos ou as mortes lentas dos que se afogaram em uma garrafa de uísque. No Brasil, basta pensarmos no suicídio de Ana Cristina Cesar e na morte lenta de Paulo Leminski.


já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo

morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma

morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma


( Paulo Leminski )


No número 20 da revista Inimigo Rumor, há um ensaio muito interessante de Flora Süssekind, em que ela analisa o processo de canonização via martírio nos discursos críticos sobre Leminski e Cesar.


Psicografia

Também eu saio à revelia
E procuro uma síntese nas demoras
Cato obsessões com fria têmpera e digo
Do coração: não soube e digo
Da palavra: não digo (não posso ainda acreditar
Na vida) e demito o verso como quem acena
E vivo como quem despede a raiva de ter visto.


( Ana Cristina Cesar )

É muito bom o ensaio, e nos deixa com várias perguntas na mente, se esta canonização heroicizante atrapalha nossa compreensão dos trabalhos destes poetas, ao mesmo tempo que os mantém editados. No ensaio, Süssekind discute ainda o poeta Cacaso, por quem não consigo me interessar muito. Teria ficado mais instigado se o trio fosse completado por Torquato Neto (1944 - 1972).


Let’s Play That

quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando a minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let’s play that


( Torquato Neto )


Talvez seja inevitável. Nós vivemos em busca de heróis. Mas será necessário que sejam mártires? Será que nós os martirizamos para que possamos amá-los? Não podemos amar um poeta vivo e feliz? Banhá-lo em alegria? Não me esqueço que mesmo nós, poetas, em momentos de pobreza e miséria tentamos dar certo glamour à incompreensão, murmurando algo como:

"Minha vida é uma merda, mas isso tudo ficará lindo em minha biografia."

Assim, os obscuros seguem na espera de sua inclusão na martirologia futura, caso de poetas esquecidíssimos como Décio Bar (1943-1991)? Tudo o que posso dizer é que, pelos pouquíssimos poemas que pude descobrir, ele não merece o esquecimento.

Idades
Aos 45 do primeiro tempo,
que molde
        toma
                a vaidade?
Mais 1 minuto
          e o jogo
               pára
Mais 15, ele recomeça
Só que
    então
já serão
os semifinais da morte

( Décio Bar )

Na Alemanha, talvez possamos ver um desses jovens heróis na figura principal do ótimo Rolf Dieter Brinkmann, desconhecido no Brasil, mas talvez um dos mais populares poetas alemães nos últimos 20 anos, morto aos 35 em 1975 (ele nascera em 1940), atropelado enquanto bêbado, em Londres, onde estava para fazer leituras de seus poemas, além do heróico e popularíssimo Hubert Fichte (1935–1986). Traduzi um bonito poema de Rolf Dieter Brinkmann para o segundo número impresso da Modo de Usar & Co.. Outros poetas que têm, nos últimos anos aqui na Alemanha, vagarosamente alcançado esta posição de glória contraditória como marginais ou malditos, aos poucos santificados, são também Jörg Fauser (1944 - 1987) e Ronald M. Schernikau (1960 - 1991), este último vítima da epidemia de AIDS que nos roubou tanto, e nos deixou tão pobres como o fizeram, antes, a sífilis, a tuberculose e as guerras dos séculos. Além destes, na minha lista de prioridades como tradutor está também a necessidade de começar a traduzir poemas de Inge Müller (1925 - 1966), excelente e delicadíssima poeta lírica que se suicidou aos 40 anos, a esposa do dramaturgo e poeta Heiner Müller, cuja obra acabaria sob sua sombra. Onde estão as feministas de plantão quando precisamos delas, para manter a obra de uma boa poeta sob os holofotes, como fizeram com Sylvia Plath, a autora do lindo Ariel (1962)?

Digressões fúnebres, talvez. Ora, na verdade este artigo teve início porque estava relendo, esta manhã enquanto O Moço ainda dormia, o poeta canadense Barrie Phillip Nichol, mais conhecido como bpNichol (1944 - 1988), que traduzi e tentei apresentar a um público maior no Brasil há um par de anos, na Modo de Usar & Co. eletrônica. É que alguns paralelos chamaram-me a atenção, como toda vez que o leio:

Nichol (1944 - 1988) foi contemporâneo exato de Leminski (1944 - 1989), e parece assumir no Canadá uma espécie de posição parecida com a de Leminski na poesia brasileira contemporânea, assim como Brinkmann (1940 - 1975) aqui na Alemanha.

Talvez como Frank O´Hara (1926 - 1966) nos Estados Unidos, Alejandra Pizarnik (1936 - 1972) e Néstor Perlongher (1949 - 1992) na Argentina, ou Juan Luis Martínez (1942 - 1993) no Chile?

El Cisne Troquelado (el Encuentro)

Nombrar / signar / cifrar: el designio inmaculado:
su blancura impoluta: su blanco secreto: su reverso blanco.
La página signada con el número de nadie:
el número o el nombre de cualquiera: (LA ANONIMIA no nombrada).
El proyecto imposible: la compaginación de la blancura.
La lectura de unos signos diseminados en páginas dispersas.
(La Página en Blanco): La Escritura Anónima y Plural:
El Demonio de la Analogía: su dominio:
La lectura de un signo entre unos cisnes o a la inversa.


( Juan Luis Martínez )

Poderia ousar criar um paralelo entre estes e o poeta mexicano Mario Santiago Papasquiaro (1953- 1998)? Será mesmo que uma vida insana de inadequação nos aproxima da morte, an untimely death, como dizem as biografias de jovens poetas mortos de língua inglesa?


Comienza a vomitar la luz

El Amor no es una ecuación mental,
el Odio sí que raspa las rodillas
enmudece labios / encanece niños;
por lo pronto
ningún dibujito fálico
en la pizarra de una escuela es la vida/
porque mientras la muerte
camina ya sobre nosotros:
"Tarantula´s Power",
la Vida no puede seguir siendo
un mero manchón de comida
sobre la ropa limpia.
Ni ésto,
ni un póster de Raquel Welch
o Emiliano Zapata reducido a póster;
De una vez:
Ni las fábulas de
Stalin o Samaniego.


( Mario Santiago Papasquiaro )


Tudo isso, as ideias sobre a martirização dos jovens poetas mortos, estes paralelos arbitrários meus entre os heróis de diferentes tradições poéticas, inundaram minha mente enquanto lia poemas do belo livro de bpNichol, chamado The Martyrology, longo poema em 9 livros / 5 volumes que ele começou a publicar em 1972, do qual traduzi dois ou três poemas e reproduzo um aqui:


Poema do primeiro livro de The Martyrology

dos santos que conhecemos a listagem segue

santinhoca desposou santoró
deu à luz santisse e santave

das famílias eis a mais antiga

santisse desposou santrio
deu à luz santlector
que desposou santagnes
deu à luz santargem

santave desposou santeto
deu à luz santrangulo
que não desposou

das outras famílias
estas mencionamos

santoente desposou santova
deu à luz sanjunção & santesta

sanjunção não desposou

santesta desposou santan
deu à luz seu filho
o sem registro


a esposa de santadaga caiu no olvido
deu à luz santruco & santeneja
deu à luz nenhúguem
perecendo no fogo que lector ateara


(tradução de Ricardo Domeneck)



§§§

from Martyrology 1

of those saints we know the listing follows

saint orm married saint rain
gave birth to saint iff and saint ave

this is the oldest family

saint iff married saint rive
gave birth to saint reat
who married saint agnes
gave birth to saint rand

saint ave married saint raits
gave birth to saint ranglehold
who did not marry

of the other families
these we mention

saint ill married saint ove
gave birth to saint and & saint rike

saint and did not marry

saint rike married saint ain
gave birth to their son
the nameless one

saint aggers wife is now forgotten
gave birth to saint ump & saint rap
gave birth to noone
dying in the fire reat had set


( bpNichol )



E você, meu querido poeta jovem, quer também ser um mártir ou um finado que nós canonizamos no glamour da morte? Espero que não, já nos empobreceu demais a tristíssima perda de Leonardo Martinelli (1971 - 2008), sem mencionar a da obra-em-sombras de Hilda Machado (1952 - 2007). Desejo a você, jovem poeta, uma vida longa, produtiva, com muitos poemas lindos, e então uma morte feliz, como quer que você a imagine.


Receitas para engolir e curar o fracasso

Origem, compra, preparo e sabor

1. Ave sertaneja
de porte médio
fibrosa, rija
de vida noturna

Preços: vinte e
sete contos o quilo
no Mercadão de
Madureira ou

trinta e sete
(ágio de dez paus)
nos açougues febris
da rede Mundial

O jeito é pegar
um 254 na madruga
ou encarar de frente
o trem da Central


2. Embrulhe o fracasso
com jornal de ontem


3. Afogue duas postas numa
panela de barro contendo
dois litros de vinho barato

Salgue e asse
em fogo alto

Enfeite o prato
com uma dúzia de

amóreas secas + 100 g
de fios de óvulos


4. Aí vai ele
numa baixela dourada
ridícula - duas
palavras
em francês fajuto
farão sorrir amarelo

o rapaz de
meia-idade e enrubescer
as bochechas
gentis suburbanas
à mesa

Rende
para uma duas três
mil pessoas


Posologia

Uma vez
hiperdosada
vai-se a bula ao
mar de bile



( Leonardo Martinelli )

.
.
.

4 comentários:

marcio junqueira disse...

ricardo

fale um pouco mais sobre esse poeta décio bar, imediatamente antes de ler esse deslumbrante poema dele nessa postagem, tinha lido uma referencia a ele na introdução do claudio willer para a tradução de "uivo e outros poemas" do allen ginsberg. achei que esse foi um acaso significativo.

abraços


marcio junqueira

Ricardo Domeneck disse...

Márcio,

eu apenas descobri o Décio Bar há poucas semanas. É engraçado, o Calixto diz que eu mencionei o nome para ele, mas eu me lembro do Calixto mencionando o nome primeiro. De qualquer forma, Calixto e eu estamos caçando livros do Décio Bar para podermos avaliar com mais calma o trabalho dele. Ele esteve envolvido com aquelea galera que era publicada pelo Masso Ohno na década de 60, deve ser daí a ligação com o Claudio Willer.

Achei uma página na Rede com 3 ou 4 poemas do D. Bar, e me pareceram muito bons, tão bons quanto alguns do Roberto Piva. Não sei se tudo é bom, mas gosto disso:

Todas as manhãs —
mesmo as cavalgadas por astros
esporeados, as adormecidas em
noturnos abraços de serpentina,
as que vêm de naufrágios em
taças de magnésio, as que surgem
repentinas (aquelas em que
percebemos o crescimento da sombra
das unhas) —
Todas as manhãs
uma tempestade sai do mar e eu
sou o seu oco:

... — e não, ainda não se dá o tempo
da clarineta, e nem a tesoura recortando
os calendários de sangue entrevê
a água de espelhos, e assim
Todas as manhãs
com o sol dentro do copo, sondo os
cabos submarinos em busca de avarias,
indago de algum telegrafista desertor
roído de nostalgia, e vasculhando os
céus I’m just a man in a crowd — poor
cloud of birds and angels; e assim vou
— na trilha, nos trilhos — de uma parede
ao muro que me limita, com os olhos
muito longe de mim

E neste ritual
em que não faltam túmulos de jornais,
flautas enlanguescidas por carência de valsa
compulsando corpos que o inverno
reduziu da medida de meus delírios; aliando-me a
querubins alucinados sedentos
de ambigüidades; valendo-me de um
telefone de aço para uso psicotrópico;
deitando cartas no leito das formas
que se pode adivinhar no bojo das
nuvens, ou na epiderme da pólvora

Neste ritual espero
da outra manhã
que me sirva à mesa no meu banquete
de rebeldia

marcio junqueira disse...

lindo mesmo esse poema. eu também fui a cata de alguma coisa dele na rede e descobri que a filha dele fez uma reunião dos poemas dele.~o nome do livro é "escritos" e tem a produção dele dos anos 60 até a morte dele. loucamente eu acabei não anotando o nome da editora. se eu re-descobrir, te aviso.

vc já escutou o disco do thiago pethit "berlim-texas"...acho que ele deve ter sido seu contemporâneo em são paulo, já que ele faz teatro desde a decada de 90, mas só agora lançou o primeiro trabalho ligado a música. esse é o meu disco brasileiro preferido do primeiro semestre. se vc ainda não ouviu ele recomendo muito, tem todo um flerte com seus interesses com o cabaret voltaire (tanto que ele inverte o nome do filme do win wenders, subistituindo paris por berlim). acho que vc vai gostar. tem um blog bem legal de musica chamado "um que tenha" que tem o disco para baixar


marcio

Ricardo Domeneck disse...

Márcio,

o Calixto está tentando encontrar esse livro do Décio Bar em São Paulo, mas ainda não teve sorte.

Nunca encontrei o Thiago Pethit em pessoa, mas temos amigos em comum e já trocamos umas mensagens. Não sabia que ele havia lançado disco. Vou dar uma olhada.

abraços

Ricardo

Arquivo do blog