quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Seguindo com a última postagem, retorno à série DAS MINHAS CANÇÕES FAVORITAS: "It´s a wonderful life", de Mark Linkous (Sparklehorse)

Na postagem anterior, com poemas para O Moço, dediquei a ele em seu aniversário uma de minhas canções favoritas, chamada "It´s a wonderful life", do álbum de mesmo nome da banda americana Sparklehorse, liderada pelo poeta cantor Mark Linkous, que se suicidou este ano, em março. Uma grande perda, que dá à canção uma carga emocional ainda mais forte quando acompanhamos sua voz delicadíssima, com aquele texto tão bonito e conciso. Certamente tem a ver com o fato de ser poeta, mas a maioria de minhas canções favoritas apresenta sempre textos que poderiam se sustentar sozinhos, mas que obviamente se tornam poesia na voz do poeta cantor. Poesia mesmo, em sua conjunção entre texto, voz, música, performance. Calma: não vou voltar à minha ladainha sobre as diferenças entre poesia e literatura. Quero apenas lembrar mais uma vez que minha reivindicação de que a literatura é um dos ramos da poesia (não o contrário) não é mero capricho ou debate sobre a primazia do ovo ou da galinha. Para alguns, isso talvez seja como o famoso dizer daquele biscoito que não sabemos se "vende mais porque é fresquinho, ou é fresquinho porque vende mais". Talvez. Insisto nisso porque acredito que essas perspectivas trazem consequências muito distintas para a nossa crítica e também para a nossa poesia. É completamente legítimo estudar a poesia apenas em sua manifestação literária, como fazemos até mesmo com aqueles poetas que não pensavam em sua poesia apenas em termos literários, como Arnaut Daniel, Bertran de Born e todos os outros trovadores provençais. Mas a hierarquia que hoje seguimos me parece pouquíssimo saudável. De qualquer forma, vamos à canção, que vale mais.

Como já mostrei a canção, com aquele vídeo que me corta o coração, começo agora pelo seu texto, que me parece tão tão tão bonito:


It´s a wonderful life
Mark Linkous, com a banda Sparklehorse

I am the only one
Can ride that horse
Th'yonder

I´m full of bees
Who died at sea

It's a wonderful life

I wore
A rooster's blood
When it flew like doves

I'm a bog
Of poisoned frogs

It's a wonderful life

I'm the dog that ate
Your birthday cake

It's a wonderful life



Não é qualquer um que atinge tamanha intensidade com tão pouco. É poesia lírica no sentido mais completo do termo, indo de sua definição técnica, digamos, de poesia musicada, até outras mais recentes entre os românticos. A preponderância da assonância na vogal O, unida à voz delicadíssima de Linkous, dá à canção, seu texto e música, uma espécie de abertura diáfana e etérea, de quem parece querer evaporar na presença do ser amado, muito delicada, até mesmo com certa exasperação, aquela de quem está se entregando. O jogo entre consoantes fricativas e oclusivas cria um jogo interessante entre a voz e a expiração do poeta em performance, criando uma atmosfera de certo cansaço e ao mesmo tempo alívio, como o que eu ousaria chamar de uma resignação feliz. O amor talvez deva sempre pronunciar-se por modos de articulação obstruinte?

Os dísticos são particularmente bonitos: como resistir a um poeta que se define como "a bog / of poisoned frogs", ou "the dog that ate / your birthday cake"? Sem mencionar a metáfora algo aterrorizante e forte de "I am full of bees / Who died at sea".

Momento de ouvir novamente a canção, desta vez com outro vídeo:


(It´s a wonderful life", de Mark Linkous. Vídeo de Guy Maddin.)

Fiz um pequeno exercício de tradução, tentando reconstruir o texto, salvando ao menos suas rimas, mesmo que não tenha conseguido manter todos os jogos sonoros. É uma tradução completamente livre, tenham paciência comigo. Vamos chamar de paráfrase. É, talvez seja um bom título até: "Paráfrase para uma vida maravilhosa segundo Mark Linkous". Mudei também certa diagramação e métrica, e dísticos foram quebrados, formando tercetos e quartetos arrebentados, capengas como qualquer apaixonado.


Paráfrase para uma vida maravilhosa segundo Mark Linkous
Ricardo Domeneck

Eu sou o único domado
Para montar este cavalo
Do outro lado

Estou cheio de abelhas
Mortas sobre as telhas

Que maravilha
De vida

A minha indumentária
É o sangue de galinhas
Quando voam como águias

Eu sou um charco
De sapos
Envenenados

Que maravilha
De vida

Sou o cachorro
Que devoraria
O teu bolo
De aniversário

Que maravilha
De vida



Infelizmente, não tenho a elegância lacônica de Mark Linkous. Várias letras do americano demonstram seu conhecimento poético. Trata-se ainda de um homem respeitadíssimo, que colaborou com criaturas como Tom Waits, David Lynch e Daniel Johnston, para citar três heróis meus. Trabalhou também com o Radiohead, com o poeta cantor Vic Chesnutt (que também se mataria, em 2009) e com P.J. Harvey. Com sua banda Sparklehorse, lançou discos com os títulos tão bonitos de Vivadixiesubmarinetransmissionplot (1995), Good Morning Spider (1998), It's a Wonderful Life (2001), e Dreamt for Light Years in the Belly of a Mountain (2006).

O último projeto de Mark Linkous, antes do seu tristíssimo suicídio em março deste ano (há algo em pessoas que decidem se matar na rua, em público, que realmente me atinge em cheio e me assombra) foi uma colaboração com o produtor musical Danger Mouse e o diretor David Lynch, além de outros dez vocalistas, para criar o álbum projetual Dark Night of the Soul (2009), creio que uma referência clara ao poema místico de San Juan de la Cruz (1542 – 1591), o essencial "Noche oscura del alma".

O projeto foi conduzido por Linkous, Lynch e Burton, mas com a colaboração, em cada faixa, de seus cantores: James Mercer (The Shins), Wayne Coyne (The Flaming Lips), Gruff Rhys (Super Furry Animals), Jason Lytle (Grandaddy), Julian Casablancas (The Strokes), Frank Black (Pixies), Iggy Pop, Nina Persson (The Cardigans), Suzanne Vega, Vic Chesnutt e Scott Spillane (Neutral Milk Hotel). O álbum trazia um livro com 100 páginas da fotografia de David Lynch, em uma edição limitada, de 5000 exemplares.

Mostro aqui uma das canções do álbum, justamente aquela que se chama "Dark night of the soul", com ninguém menos que David Lynch nos vocais.


(David Lynch, na canção "Dark night of the soul", do álbum de mesmo nome que ele produziu com Mark Linkous e Brian Burton a.k.a. Danger Mouse, para o qual publicou ainda um livro com 100 páginas de fotografia.)

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3 comentários:

Rafael Daud disse...

Nos encontramos Dirceu e eu esses dias e ambos comentamos como te odiamos por ter conhecido e bebido cervejas com o Michael Stipe ele-mesmo.

Dirceu Villa disse...

moi non, q eu não odeio ninguém. pas même fréron.

buenas, domeneck: v. não precisa se desculpar pela trad.

honestly, ficou melhor q o original.

penso q abelhas & telhas seja mucho mejor q bees & sea. ele queria uma rima fraca, v. está no universo do vovô éluard.

entre outras coisas espertas.

ta, ta,

d.

Ricardo Domeneck disse...

Villa,
querido, eu entendi a hipérbole de Daud, não achei que você houvesse odiado este poeta desterrado que teve a sorte de trombar com o herói nosso.
Quanto ao poema, não tinha pensado em Éluard, mas você tem, como sempre, razão. Lembra mesmo o Murilo Mendes francês.
Mas não acho fraco o texto do Linkous, a gente precisa adicionar a força da voz, mas aí entraríamos naquela nossa velha e interminável conversa.
beijo grande a você e ao Daud,
Ricardo

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