terça-feira, 30 de novembro de 2010

Poetas da América Latina em Berlim: a quinta edição do Festival de Poesia Latino-Americana. Nota, com poemas de Erber, Zaidenwerg e outros autores.

Ocorreu no início deste mês aqui em Berlim a quinta edição do Festival Móvel de Poesia Latino-americana, com leituras e debates que têm sido sediados desde 2006 por instituições como o Instituto Cervantes, o Instituto Ibero-americano (Ibero-Amerikanisches Institut) e o Instituto para a América Latina da Universidade Livre de Berlim (Lateinamerika Institut der Freie Universität Berlin). Com direção dos alemães Timo Berger e Rike Bolte, o festival já trouxe ao país, sempre cuidando para que uma pequena seleção de seus poemas seja traduzida para o alemão, poetas do Chile, Argentina, México, Guatemala, Peru e, entre outros, até do Brasil. Participei com Douglas Diegues da primeira edição, em 2006. No ano seguinte, o festival trouxe a Berlim os poetas Carlito Azevedo e Angélica Freitas. Não houve poetas brasileiros nas edições de 2008 e 2009, mas este ano a poesia em língua portuguesa voltou a soar no festival com a vinda de Laura Erber.

Ainda que possamos discutir a tarjeta de "latino-americanos" reunindo poetas tão diversos em cultura/poética/língua, não se pode negar que o festival tem sido um portal importante para a divulgação do trabalho de jovens poetas do continente velho/novo aqui no continente novo/velho. Não só por isso, mas também por permitir o encontro e possível colaboração entre os próprios poetas latino-americanos, já que nem sempre é possível que se encontrem em outros festivais do próprio continente.

Quanto à tarjeta, há sim aquela velha discussão, que me parece ainda interessante: podemos realmente crer que um poeta em Buenos Aires compartilha da mesma cultura, poética e tradição de um poeta da mesma idade em Lima? Em Caracas? Até que ponto um poeta de Santiago do Chile compartilha da mesma língua usada por um poeta de Bogotá? Um poeta de São Paulo compartilha com um poeta do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte ou de Fortaleza a mesma língua?

Apesar das inevitáveis escolhas institucionais que um festival de poesia dependente do dinheiro público acaba por ter que fazer, Berger e Bolte conseguem trazer todos os anos alguns poetas realmente muito bons, que eu infelizmente não viria a conhecer de outra forma. Creio que mesmo no Brasil é difícil conhecer com amplidão a poesia sendo feita em outros países do continente, já que os próprios canais usuais da poesia hispânica no Brasil seguem as agendas publicitárias de grupos e "movimentos" específicos.

Um dos maiores prazeres, tanto de ordem pessoal como poética, foi poder reencontrar a poeta carioca Laura Erber e ouvir seus poemas recentes. Nascida no Rio de Janeiro em 1979, Erber já publicou três coletâneas de poemas: Insones (2002), Os corpos e os dias (lançado em edição bilíngue português /alemão em 2006, e em português/inglês em 2008) e Vazados & Molambos (2008). Sobre os dois últimos, escrevi o pequeno ensaio "A incerteza como princípio: dois livros de Laura Erber" para a revista Cadernos de Não-Ficção, editada por Antônio Xerxenesky. Publiquei uma versão do texto aqui. Erber leu poemas inéditos, além de textos do seu último livro. Gravei um vídeo com sua leitura, que pretendo publicar em breve na Hilda Magazine. Ela me deu a permissão gentil de reproduzir aqui um dos inéditos:

§

uma amiga não tem chaise longue
nunca teve
nem em Gotemburgo
nem em Lisboa
um dia descobriu que gostava muito
da palavra chaise-longue
sentia um arrepio bom estranho
espécie de sexo sem sexo
sem o homem e sem a mulher e sem os sexos
começou a freqüentar a Rua do Alecrim
decidida a testar a arbitrariedade do signo
colecionou inflexões tensas bruscas
suavíssimas da chaise longue
mas nada alterava (o frisson?)
pressionou vozes roucas contra a parede
graves contra o assoalho
agudas contra padrões fisiológicos
de veludo contra teóricos húngaros
e a posterioris
de tanta pressão adoeceu
foi então que descobriu a rádio Vox
uma rádio amarela num país cinzento
para ouvir numa chaise longue
debaixo do toldo


(poema inédito de Laura Erber)

§

O festival deste ano trouxe vários poetas dos quais jamais havia ouvido falar. Creio que o único de quem eu já conhecia alguns poemas era o guatemalteco Alan Mills, que viveu um período em São Paulo. Imagino que alguns dos leitores escassos mas generosos deste meu espacinho o conheçam, tenham suas opiniões, seus gostos.


Marca de agua

Lenta es la luz
cuando quiere alumbrar
los pozos de lo olvidado.
A Brodsky lo encerraron
por huevón/
por parasitismo social
y nadie supo entonces
nadie sabe ahora/
que muchos más quedaron
saludando muros eternamente.
Hay quienes esperan/
hay los que confían
en que sus huesos se abracen/
se froten y clamen por ellos.
Lenta es la luz y la luz es
la confirmación del abismo.
Estéril soñar con poetas apolíneos
que caminen/ lloren/ canten
con una marca de agua en el alma.
Inútil todo
y las bombas que amenazan
caer como cae la lluvia.

(poema de Alan Mills)

§


Gostei da leitura da porto-riquenha Mayra Santos-Febres. Não havia lido seus poemas antes e não sei se eles também funcionam na página tão bem quanto em sua voz. Deixo com vocês a decisão.




HOY SALE EL anuncio por la prensa
hoy se enteran las monjas del último colegio
hoy lo sabrán los enemigos
la cabeza de mayra santos tiene un precio
dice: sale, sale, venta, aproveche.
y habrá quien tenga cambio exacto
habrá quien haya ahorrado de su bono navideño
para tenerla en su casa y en su closet.
ya lo dicen hasta las abuelas:
oh hijos del expreso, oh señora de las bolsas repletas
le compraría usted a su nietocito núbil
a esa que se agarra el pipicito sin saber de su ceguera futura
esta bella cabeza con pelo
bella, sí bella
reluciente cabeza que palabrea sin necesidad de baterías.
y usted, señor de las papayas
quien vende con la balanza arreglada
como la cabeza de nuestra protagonista. seguramente un día
tendrán que hacer sus niños sobre ellas.
a usted, sí, como a tantos
esta cabeza es un verdadero negocio.
la asociación de mujeres embarazadas han avisado su interés
para que la cabeza juegue con sus niños que,
según últimas predicciones, serán grandes futbolistas.
la comisión de asuntos para la preguntas la quiere
para su programa de educación continuada a la comunidad
tal así una firma de cosméticos, best copies, y calzado kinneys.
pero a usted, señor transeúnte, señor desempleado de atunera,
se la vendo.
existen especificaciones sobre su manejo que deberán ser respetadas, no faltaba más.
oh, señor guaguero mire lo que traigo en esta bolsa,
es la cabeza de mayra santos
escojimos su casco para esta venta pre-inventario.
seso rebosado y tierno, dicen que de ámbar.
usted sabrá cuando la abra y vea
que es de ver esta cabeza, una maravilla
mayra santos la donó, dijo que ya no la necesitaba
su cabeza marcaba precaución, peligro y ella
de rabia, llamó a sus amigos,
“póngale precio a mi cabeza
pónganle precio a este azote eléctrico
a esta ponchador de a tres minutos”.
así sale en la etiqueta, así
SALE, SALE, VENTA que se acaba
asegúrese de tener seso para cuando no haya.
la cabeza de mayra santos tiene precio
cómprela, cómprela,
quién la quiere, quíen.

(poema de Mayra Santos-Febres)

§

Dentre os poetas que descobri aqui, posso mencionar em especial um deles, que me parece um poeta realmente bom e inteligente, com quem gravei um vídeo para a minha Hilda Magazine: o argentino Ezequiel Zaidenwerg, nascido em Buenos Aires em 1981. Ele mantém um blogue muito bom com suas traduções poéticas, e uma pesquisa rápida pela Rede indica que ele tem recebido bastante atenção crítica na Argentina. O festival o apresentou como "um dos melhores poetas argentinos contemporâneos". Estas nominações em geral causam apenas mal-estar e problemas, então prefiro simplesmente mostrar-lhes seu trabalho, para que cada um chegue à sua conclusão. Abaixo, veja o vídeo de sua leitura para os poemas "Doxa" e o esperto "Lo que el amor les hace a los poetas", dos quais reproduzo os textos em seguida.



Ezequiel Zaidenwerg lê os poemas "Doxa" e "Lo que el amor les hace a los poetas", nos originais em castelhano.


O vídeo começa pelo poema "Doxa", mas sigo aqui a ordem inversa: primeiro o inédito "Lo que el amor les hace a los poetas", e então "Doxa", publicado na coletânea de estreia e de mesmo nome de Zaidenwerg.

Lo que el amor les hace a los poetas

no es trágico: es atroz. Les sobreviene
una luctuosa ruina a los poetas que el amor captura,
sin importar su orientación o identidad
poética. El amor lleva al total desastre
de la uniformidad a los poetas gay,
a los poetas pansexuales y bisiestos,
y a las poetas y poetrices feministas, fementidas o veraces;
a los obsesionados con el género
y a los degenerados por igual, y a los perversos polimorfos:
y hasta los fetichistas de los pies
del verso capitulan a las plantas del amor,
que no distingue ideología,
programa ni poética. A los vates de la torre de marfil
los precipita del penthouse ebúrneo
directo a planta baja. A los apóstoles
del Zeitgeist, que proclaman sin empacho que la lírica está muerta,
les permite insistir en el error
y en sus prolijas parrafadas. Les produce una hemorragia palatal
a los que comban parcos aforismos diagonales,
a los herméticos de lata, a los que envasan
sus versos al vacío, a los falsarios del silencio,
y a los que fraguan haikus castellanos
al itálico modo. A los puristas de la voz les corta en seco
su dulce lamentar, y a los maniáticos del ritmo
les quiebra las falanges, y estropea
el íntimo metrónomo que llevan junto al corazón
para marcar el paso de sus versos. Les compone el sensorio
a los videntes y malditos y demás
rebeldes e insurrectos sin razón ni causa
poética, y les cura el desarreglo razonado
de todos los sentidos. Desaloja de su noche oscura
a los que piden luz para el poema
en las cavernas del sentido, y los devuelve sin escalas
a la trasnoche de la carne literal. Lo que el amor
les hace a los poetas, con paciencia y mansedumbre,
mientras las mariposas lentamente les ulceran el estómago
y el páncreas poco a poco deja de funcionar,
es harto inconveniente. A los que buscan con ahínco
y precisión de cirujano la palabra justa les arruina
el pulso, y en lugar de dar la vida, la aniquilan en su afán.
Y a los que con ardor y devoción persiguen
un absoluto en el poema, como un grial
todo de luz, tirante, diáfana y febril,
les nubla las certezas, y el deseo mismo
de saciar su ansiedad. Lo que el amor
les hace a los poetas, inadvertidamente,
mientras cosen y cantan y se atoran de perdices, es agudo, terminal
y fulminante. Es un torrente arrollador
de prosa, que espolea y multiplica, en progresión exponencial,
a los zopencos y palurdos de la poesía:
a los que cortan sin razón sus versos diminutos;
a los jinetes compulsivos;
a los diseñadores tipográficos del verso;
a los que quiebran la sintaxis sin saber
torcerla; a los que escarban en el éter a la busca de inauditos neologismos inaudibles;
a los modernos sin pretexto; a los que creen descubrir
la pólvora en sus versos balbucientes;
a los contestatarios automáticos y a los porno-poetas;
a los que sueltan grandes nombres por la densa
fronda de sus poemas, como Hansel y Gretel arrojaban
migas; a los que impostan en su voz
vacante los mohines de una infancia lobotomizada;
a los poetas bellos y felices, caprichosos;
a las tribus urbanas y los groupies de la poesía pubescente;
a los poetas pop y los rockstars del verso; a los videopoetas y performers;
a los ovni-poetas, voladores o rastreros, identificados;
a los objetivistas sin objeto
ni vista; a los que exigen que el poema
se vista de mendigo; a los filósofos poetas;
y a los cultores convencidos
de la “prosa poética”. El amor,
que mueve el sol y a los demás poetas,
los lleva hasta el postrero paroxismo: los convierte
en tierra, en humo, en sombra, en polvo, etcétera:
en polvo enamorado.
Y si resulta todavía que entre ellos
se aman amorosos los poetas pares,
felices en su amor solar sin escansión,
como si fueran en verdad el uno para el otro
un agujero negro de opiniones nebulosas,
tácitas palmaditas en la espalda y comentarios al pasar,
enanos, enfriándose, se absorben entre sí
y desaparecen.

(poema inédito de Ezequiel Zaidenwerg)

§

Doxa


Me quedé y me olvidé de que tenía que haberme quedado,
trabajando, quizás. Y abrí los ojos, grande,
hice una carpa con los codos y el encuentro de las manos.
Puse la cara encima. Esa película abrasiva,
el halo capilar que empieza a titilarme entre las palmas, eso
no puede ser mi gloria. No me glorío en nada
que avise cuando va a manifestarse;
o nunca me glorié, o nunca supe en qué gloriarme,
y cómo. Y estos ojos,
la piel de la nariz, el caracol de los oídos,
el breve vaso de agua de la conciencia, eso,
sólo lo puedo ver cuando me miro en el espejo,
o lo ven los demás sin que yo mire,
o me miro en los otros. Y está bien que así sea,
supongo. ¿Adónde está mi roca,
me pregunto, mi fuerza, mi peñasco, entonces?
Tiene que haber alguna cosa en mí que brille más
allá de mí, o vaya a hacerlo alguna vez, o lo haya hecho,
quizás sin darme cuenta yo. Y se me ocurre algo:
cuando era un embrión, cuando me hicieron,
la bola de epitelio que intentaba, ajena a mí,
actuar la simple forma que era yo, miraba toda para afuera,
un tubo dado vuelta, dado vuelta de nuevo,
con el estómago y el hígado indistintos, y los oídos y la boca:
la misma superficie, un guante solo,
única esponja-flor posada sobre el mismo, único, eje,
fisonomía pura en el abigarrado aire del vientre de mamá.
Debía haber un brillo ahí que se perdió cuando la cara ya formada
se tragó todo el resto, cuando por un pudor que no me dieron a elegir
–¿acaso el artificio le reclama al artífice: “¿por qué me hiciste así?”?–
un resto de esa gracia se ocultó en las sucesivas dimensiones desplegadas,
aquel aumento sordo de espesor y de entidad
que me permitiría ver el mundo como un mundo, luego.
Y ahora estoy pensando en esa parte que quedó indigesta,
y hay algo que me arrastra, una corriente subcutánea o algo
menos solemne acaso, al nombre que me dieron
para darme la fuerza. Taparon con un nombre
irreprochablemente israelita una mitad de mí.
¿Qué era lo que querían, que supiera
que si quería ser más parecido a lo que fuera a ser,
iba a tener que ser distinto de eso?
Mi gracia: un trabalenguas perfectamente hebreo.
¿Acaso se trataba de algo así como un Scrabble de la identidad,
pensaban que a su hijo le darían más puntos en la vida
por tantas zetas y esa cu y la doble ve?
Si había alguna cosa en mí que no era idéntica a sí misma,
¿no era mejor, acaso, hacer visibles las costuras?
Si a fin de cuentas la matriz que me engendró
jamás escuchó hablar, de chica, sobre el ghetto,
ni tuvo que saber qué cosa es el exilio en carne propia
hasta que, bueno, se exilió papá.
Si además, fueron ellos los que me criaron,
los de la parte árabe, del Líbano,
católica, o católica a su modo, que borraron de mi nombre.
Ellos también tenían a su hijo en el exilio:
acaso también él estableció su alianza en el desierto,
y lo llevaron como a Elías. Pero pagó la sangre,
porque era de otro pueblo. Y el sarcoma
le recubrió la espalda como un mapa.
¿Querían que yo fuera su Eliseo, que tomara
las dos terceras partes de su gracia?
Hasta les daba, a veces, por llamarme con su mismo apodo.
Fue demasiado para mí, un árabe imposible;
para un judío errado, un circunciso fraudulento,
que consagró su alianza en el quirófano
con el celoso dios de la fimosis
(me acuerdo lo que era, una campana henchida,
un girasol de agua si orinaba).
Fue demasiado para mí. Pensé que era mejor hacer
como con una herida que quisiera suturarse desde adentro
para dejar la cicatriz cubierta y proteger mejor
la piel. Se me rompió de todos modos. Engordé y se me rajó,
como una copa de cristal muy burdo. Se llenó de estrías,
una retícula delgada, discontinua, sobre el plano vertical
de las axilas a las nalgas, mezcla del diseño
de un árbol genealógico desnudo de su fronda
y el mapa del genoma. ¿A qué o a quién
había que culpar, a la genética, a la frágil epidermis de mamá,
o a aquella fuerza primigenia desatada,
esa dispepsia primordial que haría de la indigestión
la principal de mis pasiones? La respuesta
pugnaba por caer en saco ciego, disfrazada de un confiado
escepticismo sin objeto que, después,
demostraría ser una nesciencia temerosa, replegada
sobre su propia falta: ¿la eludía o solamente
la estaba difiriendo? No sabía que sabía. Y elegí aferrarme
a la intuición, un poco frívola y pueril,
de que mi centro geográfico, mi casa, no podían ser
el fuelle alveolar y el abanico delicado del espíritu.
Y ahora, que me quedo y que me olvido, que clavé
mi tienda con los codos y los brazos, y la cara sumergida
entre las palmas, como un cántaro que cae dado vuelta
y que se quiebra, sin saberlo, al lado de la fuente,
estoy cayendo en una edad en la que necesito
un sustituto digno para el alma:
para ponerme en marcha, y recordar
y recordarme. Un sucedáneo digno de un prosélito
forzoso. Y el asiento de mi amor,
la sede de mi juicio, debe ser, por ende,
ese baluarte hepático, la gloria polvorienta
de mis antepasados, los que no volvieron:
el saco ponderal, la piedra hueca,
la copa sucia en la que se mezclaron.

(poema de Ezequiel Zaidenwerg, do livro Doxa (Bahía Blanca: VOX, 2008)

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Nota: as fotos dos poetas aqui mostradas são de Timo Berger.


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quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Peter Christopherson (1955 - 2010)

Morreu ontem o músico, artista visual e designer britânico Peter Christopherson, também conhecido como Sleazy. Integrante fundador da banda Throbbing Gristle, uma das mais importantes do pós-punk industrial, Christopherson fundaria ainda o coletivo Psychic TV e a banda Coil, tendo também feito parte do grupo de designers conhecido como Hipgnosis, com Storm Thorgerson e Aubrey Powell, que foi responsável por capas lendárias de bandas como Pink Floyd, The Pretty Things, UFO, 10cc, Bad Company, AC/DC ou The Alan Parsons Project.

Sua carreira foi extensa e ele esteve envolvido em muita coisa legal desde a década de 70. Uma última menção: Christopherson e Coil trabalharam na trilha do filme The Angelic Conversation (1985), de Derek Jarman, um dos trabalhos mais bonitos do cinema britânico, prediletíssimo.

Peter Christopherson morreu dormindo.



Throbbing Gristle - "Weeping"

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Psychic TV - "Godstar"

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Coil - "Ostia: The Death of Pasolini"

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Cena do filme The Angelic Conversation (1985), de Derek Jarman, com trilha sonora do Coil.



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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Das canções favoritas: "Meu primeiro amor", de Cascatinha e Inhana

Cascatinha e Inhana foram os nomes artísticos escolhidos pelo casal paulista Francisco dos Santos (1919 - 1996) e Ana Eufrosina da Silva (1923 - 1981). Ambos do interior de São Paulo, estão entre os mais importantes artistas da música caipira brasileira. Fossem norte-americanos, seriam chamados de representantes da música folk e talvez pudessem estar na raíz da melhor música sendo produzida hoje no país, mas eram brasileiros, e sua sorte portanto foi um tantinho diferente.


Cascatinha e Inhana - "Meu primeiro amor"

Tenho uma lembrança infantil muito forte ligada a eles. Meu pai costumava cantarolar a canção "Índia" em fins de semana modorrentos do interior, flertando com minha mãe, que tinha os cabelos pretos de descendente de índia. Esta foi a canção que fez Cascatinha e Inhana famosos, uma guarânia composta por J. Flores e M. Guerrero, gravada em 1952. Ela viria a ser regravada, dentre vários outros, pelo gigantesco Dilermando Reis (1916 – 1977). É deste mesmo ano a canção "Meu primeiro amor", outro grande sucesso da dupla, que apresenta de forma tão decisiva e clara a voz linda de Ana Eufrosina da Silva, a maravilhosa Inhana. É uma canção realmente muito bonita, uma das minhas favoritas no cancioneiro brasileiro.

Tenho ouvido muita música folk nos últimos meses, gente tão diversa entre si quanto Woody Guthrie, Lead Belly ou Dilermando Reis, passando pelas vozes de Joni Mitchell e Inhana. Talvez a música pop brasileira estivesse produzindo algo mais variado e plural se fosse beber nesta fonte, sem medo de ser caipira, já que é tão chique ser folk. Enquanto isso não acontece, vou ouvindo Cascatinha e Inhana.

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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Uma nova aparição na música e poesia cantada alemãs: HANS UNSTERN.

Há alguns meses um amigo me relatou sobre um concerto obscuro num clube ainda mais obscuro, uma apresentação que o havia deixado desconcertado. O rapaz sobre o palco, segundo ele, chamava-se Hans Unstern, aparentemente uma criatura do Berlimbo. O álbum de estreia saíra em abril, chamado Kratz Dich Raus (2010).




Hans Unstern - "Anglet", ao vivo



Comparações nem sempre ajudam e ainda irritam. Mas, ao escutar sua música, passam pela minha cabeça nomes da Neue Deutsche Welle dos 80, unidos a nomes da atual New Weird America; sua voz me faz pensar num Klaus Kinski tentando cantar Kurt Weill; fico, como aquele meu primeiro amigo a mencionar o sr. Hans Unstern, desconcertado.




Hans Unstern - "San Simon", ao vivo



Alguns estão falando sobre "o novo dândi alemão"; outros reclamam da voz e amam a música; outros ainda dizem psychedelic, man, right on!. É uma aparição meio bizarra no atual cenário alemão. Sim, as bandas da NDW são a influência principal das novas bandas. Mas não DESTE jeito. A guitarra esquisita é ótima, como em Micachu & The Shapes. Alguém poderia pensar em Devendra Banhart ou Joanna Newsom, mas há um elemento cabaretista em Hans Unstern que me parece germânico. Talvez uma contraparte alemã para a austríaca Anja Plaschg, também conhecida como Soap & Skin?




Hans Unstern - "Paris"


Eu digo apenas: finalmente um novo troubadour interessante por estas bandas!




Hans Unstern - "Ein Coversong"


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terça-feira, 16 de novembro de 2010

Meu amigo Jorge Wakabara visita Berlim. Postagem com um conto, sua colagem "Monstro", e minhas respostas para seu famoso "Questionário Dourado"

Meu amigo Jorge Wakabara está em Berlim há uma semana, misturando meus mundos paulistano e berlinense, fazendo deles agora nosso mundo paulistano-berlinense em uma experiência comum. É sempre uma sensação de cócegas no contexto, criando canais entre mundos estanques, quando amigos próximos meus de São Paulo visitam-me em Berlim. O legal é que eles saem daqui entendendo por que eu escolhi viver nesta cidade.

Conheci Jorge em 1999, creio. Tínhamos um amigo em comum, Roberto Borges, que era como eu membro da Tribo de Teatro Tumutupugá, com a qual encenamos, naquele mesmo ano, a peça 1999, para a qual servi de dramaturgista. Não, não dramaturgo, mas dramaturgista, aquele que tomava as improvisações e os textos não-teatrais que todos traziam para os ensaios, e os limava, redigia, teatralizava. Com esse trabalho coletivo, entravam no texto da peça fragmentos de Charles Baudelaire, Gaston Bachelard, Hilda Hilst, Vladimir Maiakóvski, Robert Browning, José Saramago, e até meus, contrabandeados por mim no trabalho de costura dos fragmentos.

Jorge e eu nos tornamos muito amigos e tenho memórias ótimas de conversas por caminhadas, descendo ou subindo a pé a Rua dos Pinheiros, zanzando pela Vila Madalena, na nossa São Paulo do início do século. Com ele, tinha conversas literárias que eram completamente diferentes das que tinha com outros amigos escritores. Suas perspectivas nunca eram formalistas, eram sempre intuitivas, instintivas, vinham de um gut feeling. Sua escrita era despretensiosa, e isso era refreshing, sem empáfia. Suas leituras eram também alheias às modas do momento, mesmo a muitas das minhas obsessões; ele lia Márcia Denser, Caio Fernando Abreu e João Silvério Trevisan, por exemplo. Seus poetas eram Allen Ginsberg, Ana Cristina Cesar. Nós compartilhávamos o amor por Hilda Hilst e Clarice Lispector, mas era também bom ouvir sobre um mundo literário com referências diferentes das minhas. Eu não amava J.D. Salinger como ele, nem me entusiasmava com C.F. Abreu, mas era legal saber que havia muitos cânones pessoais, que cada altar recebia seu santo.

Hoje, Jorge Wakabara é jornalista e editor de moda, braço direito de Lilian Pacce. O mais importante: ainda é um dos meus amigos mais queridos.

Reproduzo nesta postagem 3 coisas ligadas a Jorge Wakabara:

§ - em primeiro lugar, seu conto "Cinco minutos na cama", que publiquei há anos em uma versão antiga da Hilda Magazine.

§ - em segundo, a série de colagens "Monstro", inédita, que deveria ter entrado numa revista que planejei mas jamais saiu do projeto.

§ - por fim, reproduzo aqui o que ele já publicou em seu blogue esta semana: minhas respostas para o seu divertidíssimo "Questionário Dourado", uma sátira com o Questionário Proust que ele tem feito com amigos há muito tempo.


:


CINCO MINUTOS NA CAMA
Jorge Wakabara

Quando você olhou o meu pé e começou a rir, eu nunca pensei ter tanta placa tectônica dentro do meu crânio, por debaixo desse meu couro cabeludo, e pelos poros dessa minha pele que se revelou quente e áspera: pura reação psicossomática. Você riu, Carlos, por causa de um dedo, o meu dedo que seria o médio, o do meio, que era nitidamente maior que o meu dedão. E você disse, Carlos, com um humor que não te é peculiar, que eu tinha quatro mãozinhas no lugar de duas mãos e dois pés. Eu era, de repente, uma anormalidade digna de um 'freak-show'. Então eu estava ali, nu, com tantas coisas a serem vistas, e você notou o pior dos meus defeitos físicos. Notou-o descompromissadamente. Como se o fato de teu namorado ter aquele dedo médio comprido fosse equivalente à morte de um cachorro, ou ao enterro de uma vizinha chata. Eu fiquei muito perturbado, talvez sem razão, porém terrivelmente perturbado. O meu cabelo, por exemplo, podia estar feio e eu o cortaria, ou o pintaria, ou até mesmo o rasparia, se fosse esse o caso. O dedo, Carlos, não se corta, não se arranca, e muito menos se morde, já que se tratava de um dedo do pé e não da mão e ficaria muito mais difícil para mim, que tinha pouco condicionamento físico e alongamento, alcançar o dedo médio do meu pé com os meus dentes. Mesmo que ele fosse tão anormalmente comprido. Eu te detestei por vívidos e intensos segundos, eu te desejei morto e enterrado, mas antes de tua morte, ah, Carlos, desejei ainda que você sofresse doenças horrorosas, que te fariam coçar e escamar inteiro; imaginei tua cabeça estourando e teus miolos gritando "chega" em uma freqüência tão alta que não seriam escutados pelo ouvido humano. Depois eu quis que você se sujeitasse e lambesse aquele meu dedo médio horroroso, e todas as veias saltadas do meu pé magro horroroso, e ainda a minha canela magra, peluda e horrorosa; eu te chamaria de porco, canalha, bruto, e sussurraria com autoridade: "lambe mesmo, Carlos", "mais aqui", "agora te esmago". No entanto, teu sorriso cínico se desmanchou pouco a pouco e você, Carlos, percebeu que talvez eu tivesse certos traumas com aquele dedo específico, e também percebeu que talvez eu não gostasse que falassem daquele meu defeito físico. Imaginou que certamente eu já havia sofrido com gozações de família, colegas e desconhecidos. Eu derreti embaixo dos lençóis, levando as minhas terceira e quarta mãozinhas para longe de teu senso crítico com um “ar de cotidiano”, como se essas coisas acontecessem todos os dias, como se o cachorro tivesse morrido durante o enterro de uma vizinha chata. Esbocei algumas frases que lembravam algo muitíssimo inteligente vindo de alguém bem resolvido, enquanto apalpava o feio, o bobo, o metido que cresceu mais do que devia, e o acariciava, sangue do meu sangue, pele da minha pele, pedaço de mim metade adorada de mim, ao mesmo tempo em que mentalizava: "Calma, dedo. Não foi nada dessa vez".

2004


§


Monstro
um texto-colagem de Jorge Wakabara (2006)

(clique nas imagens para aumentá-las)






§

Ricardo Domeneck responde em Berlim às perguntas douradas de Jorge Wakabara:


QUESTIONÁRIO DOURADO INTERNACIONAL
COM RICARDO DOMENECK

(publicado originalmente no blogue Caminho Dourado. Adicionei aqui algumas notas em vermelho sobre as respostas.)


1. Me conta uma coisa que você fazia há 5 anos e não faz mais.
Ir no Biu.

(restaurante de comida caseira na Rua Cardeal Arcoverde, ao qual eu ia muito com meus amigos paulistanos quando morava na cidade, no início da década.)

2. Me diz um filme que você gostaria de ter feito, e o porquê.
“A professora de piano”, pra poder convidar a Isabelle Huppert quando eu quisesse pra gente tomar champanhe e ver uns pornôs.





(este filme é uma das minhas obsessões, eu o vi 11 vezes no cinema, ele conjuga todas as minhas preocupações políticas, estéticas, metafísicas e um vasto etc.)


“Me dá essa taça logo, então”

3. Me diz uma coisa que você comprou e nunca usou. Por que você nunca usou?
Uma calça xadrez no Mercado Mundo Mix da qual eu me arrependi assim que pus os pés pra fora do galpão. Isso foi em 2001! Coloca que foi em 2001!

(ah! meus tempos de pseudo-clubber!)

4. Qual é a fase da sua vida que você quer lembrar pra sempre?
Quando eu morava no Sobrado, com um bando de gente inteligente mas proletariado, escrevendo meu 1º livro e mais facilmente deslumbrado com as coisas.

5. Qual é a palavra que você está usando muito agora?
Banause” – que é uma expressão alemã pra cafona.

6. Me conta uma coisa muito exótica que você amava nos anos 90.
A tatuagem no braço esquerdo do Jon Bon Jovi – especialmente na perspectiva generosamente doada pelo vídeo “Keep the faith”.

(os anos 90 deram-nos uma adolescência meio insana, mas esta resposta vocês devem creditar mais à minha sexualidade adolescente desenfreada.)




Bon Jovi - Keep The Faith
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7. Me fala o que te faz rir muito, e o porquê.
Qualquer tipo de humor autodepreciativo.

8. Que personagem de novela você gostaria de ser? Por quê?
Viúva Porcina, porque é o mais perto que o Brasil já chegou de Almodóvar.


9. Me diz um defeito seu e um defeito meu.

Meu: Quando dois amigos meus que me tinham como elo passam a ter um relacionamento independente de mim, a minha primeira reação incontrolável é a ofensa.

Seu: na 1ª semana de julho de 2001, eu costumava achar você um pouquinho judgemental (a Carrie já disse isso pra Miranda).

10. Qual é a música mais linda que você já ouviu?
Vou dizer a 1ª que me veio na cabeça, sem pensar muito. “Rising”, da Lhasa de Sela.



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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Um videorretrato antigo só agora editado, de Christopher, com poema inédito


"Christopher" (2006), por Ricardo Domeneck. Christopher barbeando-se em sua casa, verão berlinense, 2006.



Gravei este vídeo na casa de Christopher, no verão de 2006. Já não estávamos juntos, e, na verdade, é possível até mesmo ouvir seu novo namorado lavando a louça na cozinha, enquanto gravávamos o vídeo. Sim, foi uma situação bizarra, difícil. Era como um ato de arquivar os danos, catalogando os ossos quebrados antes de engessá-los tortos, salvaging what was left of the shipwreck.

Eu o conheci no primeiro dia do ano de 2005. Ele me parecia o menino mais lindo que já havia visto. Aqueles olhos gigantes, aquela epiderme cobreada que o revestia uniforme, uniforme. Nosso relacionamento foi uma das experiências mais fortes e destrutivas por que já passei.

Todas as tentativas de um videorretrato enquanto estávamos juntos haviam falhado. Eu dizia que não conseguia filmar alguém por quem estava apaixonado. É apropriado que por fim tenha conseguido apenas este vídeo, este retrato de costas, enquanto você carpe o matagal do rosto e eu me faço voyeur do corpo com que já não podia compartilhar a temperatura.

Ele foi my own private Hurricane. Perdi banhas que não tinha, banquei a Margo Channing, almodovariquei, fiz-me híbrido, liztaylorca, escrevi todos os poemas cínicos sobre o amor desastroso, voaram copos. Ecumênico, ensandecia-me. Ele foi o Cabo das Tormentas. Apelidei-o de Okeechobee, o pior furacão antes do Katrina, Okeechobee soava para mim como Christopher.

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Texto em que o poeta dirige-se a um ex
e relata a seus leitores sobre o furacão Okeechobee



O plantão do Jornal da Globo
anunciava a morte das mortes
da Rapunzel das importâncias
e o bípede predileto impunha
suas lesões como lições.
Seu bíceps era um fórceps
na manteiga das minhas guelras.
É como se seu tubo de eustáquio
se posicionasse, ainda por cima,
na expectativa de um Thank You
por sua devastação em meu clima,
e eu temia, ao leme, que o próprio
meio-dia fosse a praga que assola
ao meio-dia. Há outros perigos
para um barco ao mar,
mais terríveis que a tormenta
que prenuncia o naufrágio.
Talvez o vício
do farol, demasiada confiança
nos botes, nas bússolas.
De sua testa à sua glande
e desta às falanges,
aquele cobre solar e uniforme,
como os pelos em suas pernas
distribuíam-se
feito um milharal
querendo esconder o milho.
A proporção entre seu nariz
e outros membros do império
em seu mapa de côncavos
e convexos era minha última
porção de simetria, Bauhaus
do meu lumpesinato físico.
Quando nascerá o comunismo
do proletariado amoroso?,
era o que simulavam murmurar,
revolucionárias, minhas mucosas,
estas cavidades hipócritas
em seus mal-dissimulados
delírios napoleônicos.
Eu queria ser seu dono e seu dog,
parceiro majoritário
do monopólio
que ele presidia.
Um feudo de fluidos,
de corpos. Suas fotos
ainda me coçam.
Ele era um conjunto de carpos
e cilindros, e, se aos dezenove
fazia-me de vaso, aos vinte
e cinco era eu dejeto,
despejo.
Ele era uma alegria difícil,
um improviso de rês pública.
Queria tudo,
a mim inclusive,
mas sem contrato exclusivo.
Redigia todas as cláusulas,
eu as aceitava, do sim tácito
ao silêncio tático,
qualquer manobra
que mantivesse seu corpo
aberto ao meu tato.
Quem jamais viveu o momento
que faz de migalhas
um banquete
que atire o primeiro tomate.
Ele, em minha boca,
foi o nascer-do-sal.
Quem me dera o tivesse
discernido a tempo
como o analgésico exato
para as minhas ilusões
de pertencer a alguma espécie
em extinção,
quando hoje sei ser eu praga.
Contudo, não me arrependo
de permitir aos meus dedos
aquela orgia típica
de gafanhotos
nos campos férteis
dos seus cabelos,
e, mesmo daninho,
dedico a ele hoje
este honorário
por seus extermínios.


Ricardo Domeneck. Berlim, 2008/2010.

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Christopher (centro), fotografado por Walter Pfeiffer (2007),
sessão para a qual servi de assistente



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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Em meio à minha descoberta tardia e boquiaberta do cineasta Joseph Losey

Foi há alguns meses, em minha visita quase diária à locadora do bairro. Na verdade, eu estava passando por uma fase de admiração e obsessão por Dirk Bogarde (1921 - 1999), aquele ator-mestre da elegância. Deparei com a capa do filme The Servant (1963), com Bogarde e, como se não bastasse, roteiro de Harold Pinter. E foi por Bogarde e Pinter que aluguei o filme naquela noite, não me importando muito com o diretor, um certo Joseph Losey do qual nunca tinha ouvido falar.





Baseado em um romance de Robin Maugham, o roteiro é mesmo excepcional, assim como a atuação de Bogarde, sempre brilhante. Mas foi a direção do filme que mais me deixou espantado e admirado, e comecei a pesquisar mais sobre Losey.

O diretor nasceu no estado do Wisconsin, nos Estados Unidos, em 1909. Estudou na Alemanha com Bertolt Brecht (sua primeira relação frutífera com um dramaturgo), e quando este exilou-se nos Estados Unidos, passaram a colaborar. Codirigiram uma adaptação cinematográfica da peça Leben des Galilei (1937), que se tornaria o filme Galileo (1947), com Charles Laughton no papel principal após ter traduzido a peça com Brecht, e Losey ainda faria um curta-metragem baseado na vida de Galileu.

É na década de 50 que começam as agruras de Losey, e aquilo que eu creio explicar sua obscuridade, quando é obviamente um mestre absoluto do cinema: o diretor cai na fogueira anticomunista da chamada Era McCarthy. Impossibilitado de trabalhar em Hollywood, onde estava na infame entertainment industry blacklist, Losey emigra para o Reino Unido, onde passa a trabalhar com Harold Pinter e outros roteiristas, construindo uma obra que não recebe as loas e prêmios e homenagens que merece e deveria receber. Mesmo no Reino Unido, ele acabaria dirigindo muitas obras primas com pseudônimos.

Há pouco tempo, assisti ao excelente King and Country (1964), mais uma vez com o brilhante Dirk Bogarde, e com Tom Courtenay, outro ator britânico de quem gosto muitíssimo. O filme retrata o julgamento de um soldado acusado de deserção durante a Segunda Guerra Mundial.

Cartaz do filme King and Country (1964)


Outro excelente filme, com jogos de câmera impressionantes, é The Criminal (1960). Assista ao trailer no Youtube, não é permitido embutí-lo aqui.

Há pouquíssimos lançamentos aqui na Alemanha. Estou tentando encontrar outros. Quero muito ver seu remake para o filme de Fritz Lang, M. O de Lang é de 1931, o de Losey é de 51.




Ou sua Eva (1962), com Jeanne Moreau, Stanley Baker e Virna Lisi:





Joseph Losey. Mestre mesmo.

E foda-se McCarthy, aquele bufão.

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quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Apropriação e paródia: cartaz de NOVEMBRO para a SHADE inc, a partir de um original de Larry Clark, com pequena conversa sobre a fotografia dos 70

Convite de novembro para os eventos semanais da nossa SHADE inc

Convite e cartaz de novembro para a SHADE inc, nosso evento semanal às quartas-feiras. Alguns não entenderam bem a ideia na última postagem que fiz a respeito, achando que estas paródias eram o projeto em si. O projeto é um evento, algo que ocorre todas as quartas-feiras, com DJs, e às vezes performances, concertos, instalações. Estes são os convites e cartazes, feitos pela apropriação, reencenação e paródia de imagens fotográficas conhecidas do século passado, da arte ou do fotojornalismo.

O cartaz deste mês foi concebido e produzido pelo coletivo SHADE (em ordem alfabética: Daniel Reuter, Niklas Goldbach, Oliver A. Krüger, Ricardo Domeneck e Viktor Neumann), e fotografado por Niklas Goldbach, a partir de uma foto original do norte-americano Larry Clark, nascido em Tulsa, Oklahoma em 1943. No Brasil, creio que o americano é mais conhecido como cineasta, especialmente por seu filme Kids (1995), que se tornou notório ao lidar com o problema da AIDS entre adolescentes, em um estilo documental que se tornaria comum na década seguinte, esta que agora se encerra.



No entanto, desde a década de 70, Larry Clark já documentava como fotógrafo a juventude abandonada pelo sonho americano. Em 1971, ele estreia com a publicação do livro Tulsa, fotografado entre amigos e conhecidos da sua cidade natal.


Larry Clark, fotografia do livro Tulsa (1971)


Com esta publicação, podemos unir Clark a outros fotógrafos da década de 70, que também encontrariam entre seus amigos nos subterrâneos das cidades uma vida marginal, escorrendo paralela à das revistas e colunas sociais. É o caso da também americana Nan Goldin (n. 1953), do japonês Nobuyoshi Araki (n. 1940), e do suíço Walter Pfeiffer (n. 1946).


É claro que eles não inventaram a fotografia sociodocumental entre os indivíduos excluídos do jogo político e social de suas comunidades, já que encontramos algo disso desde o alemão August Sander (1876 - 1964), passando pelas americanas Lisette Model (nascida na Áustria, 1901 – 1983) e Diane Arbus (1923 - 1971), mas até então o fotógrafo parecia manter-se fora do jogo; ele documentava, mas sem qualquer envolvimento emocional com seus retratados. A maneira como estes fotógrafos da década de 70 (Clark, Goldin, Araki, Pfeiffer, entre outros) pareciam estar envolvidos e pertencer aos retratados, assim como seu abandono de qualquer pudor ante o jogo sexualizado no qual a lente de suas câmeras faz-se mais uma camada da epiderme, seriam centrais para sua influência sobre fotógrafos do fim da década de 70 e através da década de 80, dos quais Robert Mapplethorpe (1946 – 1989) e Mark Morrisroe (1959 - 1989) poderiam ser discutidos como exemplares. É essa genealogia também que nos leva a compreender melhor o trabalho de fotógrafos dos últimos 20 anos, como Wolfgang Tillmans, Collier Schorr, e Heinz Peter Knes, ou, nos últimos poucos anos, Brett Lloyd e Adelaide Ivánova.

Algum dia quero escrever sobre essa relação de envolvimento emocional com os retratados, este pertencimento, para discutir na verdade o trabalho de um fotógrafo que seguiu uma linha que tanto tangencia como elide esta narrativa: o brasileiro Alair Gomes (1921 - 1992), com sua prática de fotógrafo-voyeur. A um operário visual como eu, fazendo meus pequeninos e desimportantes videorretratos de moços e moças aqui em Berlim, esta discussão interessa.

Abaixo, o original de Larry Clark do qual nos apropriamos, reencenamos e, de certa forma, parodiamos em gender guerrilla.


Larry Clark, do livro The Perfect Childhood (1993)

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sábado, 6 de novembro de 2010

Poema inédito recente: "As canções como álibis para meus excessos"

As canções como álibis para meus excessos
Ricardo Domeneck

A culpa não
é minha, querido. O mau
exemplo foi de Maysa,
quase lançando-se, Brasília
azul e tudo, da Rio
-Niterói abaixo. Por isso,
esta minha falta
de pose,
esta minha recusa
a respeitar mãos
únicas, a gravidade.

Tenho meus álibis, moço.
Que esperava, se Ângela
Rô Rô
tampouco me ensinou
a aceitar o horror
do copo só, testa
contra o balcão, prática
da primeira pessoa
do singular.

Que você atire
a primeira
pedra, Dolores
Duran. Curta
é sempre a vida,
quando se habita
a letra
da fossa, ou se fala
com a língua no oco
a língua do sim.

Carpe diem,
diziam os árcades,
hoje nem reconhecíveis
por suas arcadas
dentárias.
Prefiro carpir ou cuspir
meus dentes
a deixar de chocá-los
com os seus.

Moço, quisera fôssemos
como dois corpos
de água,
a que basta
um toque
para que se tornem
o único e o mesmo.
Você gargalha
enquanto pesquiso
em sua glote
o dicionário
do riso
e eu aguardo sua voz
para guardá-la num cofre
forte como uma noz.


Berlim, agosto de 2010.

Dedicado obviamente a ele, O Moço.
(mas também à amiga Adelaide Ivánova,
que é, como eu, experta em excessos)

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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Das canções favoritas: "Jesus was a cross maker", de Judee Sill

Judee Sill foi uma poeta lírica, ou, como eu deveria dizer para ser melhor compreendido, uma songwriter, cantautora norte-americana, nascida em Oakland, Califórnia, em 1944. Em vida lançou apenas dois álbuns, seu album epônimo de estreia em 1971, e no ano seguinte Heart Food, antes de morrer em decorrência de uma overdose em 1979. Em 2005, foi lançado um álbum duplo com canções inéditas, chamado Dreams Come True. Judee Sill é um dos nomes injustamente pouco conhecidos do folk norte-americano.





"Jesus was a cross maker" mostra sua escrita sofisticada e mística, e é talvez sua canção mais conhecida, interpretada por outros luminares daquela década, como Mama Cass.

Jesus was a cross maker
Judee Sill

Sweet silver angels over the sea
Please come down flyin' low for me
One time I trusted a stranger
Cuz I heard his sweet song
And it was gently enticin' me
Tho there was somethin' wrong,
But when I turned he was gone.

Blindin' me, his song remains remindin' me,
He's a bandit and a heart breaker,
Oh, but Jesus was a cross maker.

Sweet silver angels over the sea
Please come down flyin' low for me

He wages war with the devil
A pistol by his side
And tho he chases him out windows
And won't give him a place to hide,
He keeps his door open wide

Fightin' him he lights a lamp invitin' him,
He's a bandit and a heart breaker,
Oh, but Jesus was a cross maker

Sweet silver angels over the sea
Please come down flyin' low for me

I heard the thunder come rumblin'
The light never looked so dim
I see the junction git nearer'
And danger is in the wind
And either road's lookin' grim

Hidin' me, I flee, desire dividin' me,
He's a bandit and a heart breaker.
Oh, but Jesus was a cross maker
Yes, Jesus was a cross maker




"Jesus was a cross maker", interpretada por Mama Cass (1972).


No vídeo abaixo, podemos ver/ouvir Judee Sill interpretando a canção "The Kiss" em Londres, em 1973.



Recentemente, a excelente banda norte-americana Fleet Foxes, de Seattle, e também às vezes agrupada, como Judee Sill, sob o divertido gênero do baroque pop, tem interpretado sua canção "Crayon Angels" em apresentações ao vivo.

Robin Pecknold, o poeta lírico/songwriter à frente da banda Fleet Foxes, interpretando a canção "Crayon Angels", de Judee Sill (1944 - 1979)

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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A artista finlandesa Elina Brotherus na Hilda Magazine

"O vestido de noiva de minha mãe, o terno de noivo de meu pai, o vestido de luto de minha mãe",
da série "Das Mädchen sprach von Liebe" (1997)




Elina Brotherus é uma fotógrafa e videoartista finlandesa, nascida em Helsinque em 1972. Já expôs em galerias e instituições como a Fondazione Studio Marangoni (Florença), Bloomberg SPACE (Londres), gb agency (Paris), Yapi Kredi Kazim Taskent Art Gallery (Istanbul), V.M. 21 Arte Contemporanea (Roma), The National Art Center (Tóquio), Biennale d'art contemporain (Lion), Musée des Beaux-arts (Caen), Galerie Wilma Tolksdorf (Berlim), e Temple Bar Gallery & Studios (Dublim), entre outras. Apresentamos a série "Das Mädchen sprach von Liebe" (A menina falou do amor), de 1997/98.


::::: ELINA BROTHERUS NA HILDA MAGAZINE ::::::


Hilda Magazine é editada por Oliver Roberts e por mim, aqui no Berlimbo.


Em tempo: quem chamou minha atenção para o trabalho de Brotherus foi a fotógrafa brasileira Adelaide Ivánova.
Aqui vai meu "obrigado, Ivi!"


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quarta-feira, 3 de novembro de 2010

"Reproduction", nova faixa e vídeo de Florian Pühs, ou Breve apresentação de um amigo, músico alemão, com notas sobre o punk no país

"Reproduction" (2010), faixa e vídeo do alemão Florian Pühs.


Conheci Florian Pühs em 2006, num clube subterrâneo do Berlimbo. Um amigo em comum estava discotecando, e eu fiquei imediatamente intrigado por aquele hipster de óculos. Eu, que sou ligeiramente obsessivo, até hoje tenho uma pequenina queda saudável por ele, e ele, por sua vez, tem uma grande queda pela namorada sueca dele, linda e inteligente (chamada Anna), tecladista da sua banda atual. Morando no mesmo bairro (o que em Berlim conta muito às vezes), ficamos muito amigos, gravei um retrato-em-vídeo dele, e acompanhei sua carreira musical na cidade. É que Florian chegou ao Berlimbo com um nome já feito na cena underground de punk core europeia, como vocalista e letrista da cultuada banda Surf Nazis Must Die. O nome da banda é um referência a um filme bizarro da década de 80. Quem escuta hoje suas produções de techno minimalista não deve acreditar que se trata do mesmo Florian Pühs que esgoelava canções de menos de 1 minuto típicas do punk, como esta "I am not anti-girls, girls are anti me":




"I am not anti-girls, girls are anti me", Surf Nazis Must Die, letra e voz de Florian Pühs.


Já escrevi sobre ele aqui, em um artigo chamado "Heine para punks", sobre sua canção "Neue Dresdener Schule", que usa versos de Heinrich Heine numa das minhas canções favoritas do punk dos últimos anos. Florian é hoje vocalista da banda Herpes, na linhagem do electropunk do Le Tigre, ou melhor talvez dizer na linha do synthpunk de uma banda sueca como The Hives. Os críticos os enquadram no que se convencionou chamar por aqui de movimento do Post-Punk Revival, pós-industrial, ou, numa clave bastante absurda em minha opinião, de neopóspunk. As raízes do movimento na Alemanha estão nas incríveis bandas do país nas décadas de 70/80, da chamada Neue Deutsche Welle (Nova Onda Alemã), como os grupos Palais Schaumburg, Einstürzende Neubauten, Grauzone, Hans-A-Plast, Deutsch-Amerikanische Freundschaft (também conhecida como DAF), Die Tödliche Doris, ou Malaria!.

A banda de Florian hoje, Herpes, é em minha opinião uma das melhores do movimento, ao lado de duas bandas contemporâneas da cidade de Colônia, chamadas MIT e Schwefelgelb. Desde 2007, quando a banda se formou, eles têm tocado no nosso evento uma vez por ano. Quanto eles tocam, nós chamamos a noite de Herpes Annual Celebration. Abaixo, vocês podem ver um vídeo do show deles no nosso clube em 2008:



Herpes ao vivo no nosso evento semanal em 2009.

Florian é um das minhas criaturas favoritas no mundo e um divertidíssimo poeta satírico em suas letras, que vão direto ao ponto. Posto abaixo duas canções dele com a banda, traduzindo a letra, poemas satíricos e canções punk. As duas são simples e diretas, como numa fatrasie medieval ou poema dadaísta. Em outras letras, seu sarcasmo com certos aspectos da vida berlinense aparece em textos mais sofisticados, que ainda quero traduzir para postar aqui. Por ora, vão os sopapos de "Du bist kein Mann" e "Very Berlin":


"Du bist kein Mann" (2008), Herpes, letra e voz de Florian Pühs.

Você não é homem, nada
texto de Florian Pühs, tradução de Ricardo Domeneck

E você corre e corre e corre
Mas não chega a paragem alguma
E você procura e procura e procura
Alguma coisa que não encontra, nunca

A vida é tão anti-você
Sobre você a vida só chove

E você corre e corre e corre
Mas não chega a paragem alguma
E você tem uma penca de sonhos
Mas só os constrói sobre dunas

E você corre e corre e corre
Pra dar de cara em outra parede
E mesmo que foda e trepe e beije
Mesmo assim não é nenhum homem

A vida é tão anti-você
Sobre você a vida só chove


§



"Very Berlin", da banda alemã Herpes, letra e voz de Florian Pühs.

Very Berlin
texto de Florian Pühs, tradução de Ricardo Domeneck

Essa batida, esse baixo, essa monotonia
Isso é very Berlin, você é very Berlin
Esse som, esse estilo, esses jeans
Isso é very Berlin, você é very Berlin

Baby, enfim chegamos ao fim
Enfim chegamos a Berlim

Vem pra cá,
Saia do buraco,
Tão mesquinho
E tão ferrado

Sem contrato,
Sem dinheiro,
Dá na mesma.

Essa batida, esse baixo, essa monotonia
Isso é very Berlin, você é very Berlin
Essa camisa, nessa cor!
Isso é very Berlin, você é very Berlin

§


A propósito, Florian Pühs discoteca hoje à noite em nossa SHADE inc.

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terça-feira, 2 de novembro de 2010

Alguns comentários pós-eleitorais, agora que os amigos baixaram talvez as armas da militância, à direita e à esquerda

Nos últimos meses, alguns amigos entregaram-se com paixão à militância política por seus candidatos à presidência, tanto à direita como à esquerda, ainda que tenha se tornado difícil, hoje em dia, aplicar esta velha dualidade como distinção absoluta. Se levarmos em conta as críticas que compareceram na campanha, em que acusações de "fascismo", "autoritarismo" ou "antidemocrático" eram aplicados de cada lado do debate, pareceria difícil. As alianças políticas estabelecidas por cada partido para garantir sua vitória e possível maioria no Congresso Nacional tornariam ainda mais impossível esta velha distinção. Mas sejamos práticos: ignorando, por ora, acusações de possíveis veleidades antidemocráticas de cada lado, o fato concreto de que o PT defende uma participação muito mais clara e massiva do Estado nas relações sócioeconômicas que influem no bem-estar da população, quando comparado ao laisser-faire massivo do PSDB, já nos serviria para distinguir de que lado balançavam os pezinhos dos candidatos sobre esta cerca, na qual pareciam em muitos momentos estarem de mãos dadas.

Nas conversas, discussões e tentativas de debate que tive com estes vários amigos, em geral particulares, às vezes públicas, fui percebendo como era praticamente impossível manter aquele desejo sincero, de todos, de um debate verdadeiro e amplo, simplesmente porque a militância exige, em tantos momentos de uma campanha difícil como esta, aquela defesa quase cega, a aceitação em bloco, impedindo que as limitações óbvias de cada partido pudessem ser discutidas de forma aberta, clara. Cada um dirá também que as estratégias assumidas pelo adversário impediram este debate adulto e sério. Não sei. Saio desta experiência com a impressão de que debate político não existe em tempo de eleição, quando tanto parece estar em jogo, e está, prestes a perder-se ou confirmar-se.

Além disso, o discurso apocalíptico de cada lado pareceu-me muito mais intenso nesta eleição. A tática populista do "messianismo político" parece ter cedido à estratégia da invectiva escatológica, ou (permitam-me o neologismo) de um "apocalipsismo político". O eco de "calipso" no neologismo traz à mente o caráter de religião de espetáculo presenciado nas últimas semanas. Não pareciam contar tanto as qualidades de cada candidato quanto afirmar o desastre político que a vitória do adversário significaria. E não duvido que cada um acreditava realmente neste apocalipse anunciado. Para os interesses políticos e principalmente econômicos dos eleitores de Serra (apenas a curto ou médio prazo, se tivessem visão política verdadeira), a vitória de Dilma Rousseff significa verdadeiramente uma catástrofe, como a vitória de Serra teria significado uma catástrofe para os interesses políticos dos adversários. Neste duelo para decidir quem tinha o maior Apocalipse, tomar uma decisão lúcida parecia realmente difícil, em especial em meio à histeria das últimas semanas, e da interferência canhestra de questões religiosas em um debate político. O episódio em que Joseph Ratzinger, o líder de um estado teocrático, tentou influir nas eleições de um estado democrático e oficialmente laico fica em nossa História como um momento de desrespeito a mais da Igreja Católica em solo brasileiro. Não estou diminuindo a importância da discussão da legalidade do aborto, mas buscar fazer com que isto defina a eleição do presidente da República, quando tantos fatores estavam em jogo, pareceu-me em alguns casos beirar o grotesco.

No entanto, se os discursos apocalípticos pareciam exagerados, tampouco cria eu ser prudente ignorá-los. E foi levando-os em conta, contabilizando estas possíveis catástrofes, que tomei minha decisão pessoal de qual candidato preferia ver na presidência da República, mesmo que tenha também tomado a decisão clara de não militar por tal candidato. Explicarei o porquê adiante. Para o revelar aqui, recorreria a uma paráfrase daquele capítulo de negativas do romance genial de Machado de Assis: pois, contabilizando os débitos da possível catástrofe política anunciada e alegada a cada lado da disputa presidencial, e o crédito das possibilidades de transformação social necessária no Brasil que cada um representava, ao chegar à tabela e resultado da conta encontrei Dilma Rousseff com um pequeno saldo. E é por isso que me alegrei, sem qualquer entusiasmo ingênuo, com sua vitória neste domingo. Tentarei elaborar um pouco sobre isso. O uso que vários amigos queridos meus fizeram da acusação de "fascista" e "antidemocrático", tanto para Lula ou Dilma, assim como para Serra, parecem-me exageradas, mesmo que o PT esteja realmente muitíssimo confortável no poder, e Serra me pareça um protótipo mal-acabado de brutamontes truculento e autoritário. A isso, restaria dizer: mostre-me o partido que algum dia deixou o poder de bom grado. O PSDB criou a emenda da reeleição para manter Fernando Henrique Cardoso no poder, emenda vilipendiada por Lula e pelo PT, aqueles que, na sua boa hora, a souberam usar. De qualquer forma, a disputa presidencial ocorreu em terreno democrático, e o discurso de bicho-papão hoje em dia não ajuda, nem convence. De qualquer forma, por mais temerário que seja afirmá-lo aqui, confesso que, ao levar sim a sério as possibilidades de catástrofe antidemocrática de cada candidato, pareceu-me mais importante manter a continuidade dos programas sociais que (alega-se e torço para que seja verdade) tiraram 30 milhões de brasileiros da pobreza extrema. Se foram criados no governo de FHC, parece claro que passaram a funcionar no de Lula. Para mim, isto foi o que mais pesou na balança de minha decisão pessoal. Que estes brasileiros tenham votado para defender seus interesses econômicos (mesmo que estes interesses econômicos envolvam uma bolsa do governo de míseras dezenas de reais) parece-me totalmente legítimo, ainda que figuras como Olavo de Carvalho e Ferreira Gullar (ou nanicos intelectuais como Reinaldo Azevedo), em meio a certa histeria religiosa e ideológica, tentassem fazer disso algo a se lamentar. Ora, a classe média e alta vêm agindo politicamente de acordo com seus interesses econômicos há séculos. E insisto dizer tudo isso sem a menor simpatia especial pelo PT.

Deixei o Brasil há cerca de uma década. Vivi entre a Alemanha e o Brasil nos anos 2000 a 2002, quando me mudei de forma definitiva para Berlim, voltando ao Brasil apenas para visitar meus pais ou resolver questões burocráticas. Em 2002, uma de minhas últimas ações como residente da República Federativa do Brasil foi votar em Luís Inácio Lula da Silva em sua primeira vitória eleitoral à presidência, e sair às ruas para comemorar. Lembro-me ainda de estar com amigos na Avenida Paulista, com aquele cheiro de mudança no ar. Estava entusiasmado. Oito anos depois, vivendo em Berlim, lendo homens e mulheres favoritos como Ludwig Wittgenstein e Hannah Arendt, confesso não encontrar em mim sequer sombra daquele brand tipicamente latino-americano de messianismo. O que resta é um desejo difuso de parúsia que se faz herança da minha educação religiosa como criança, pela qual sou tão grato, e pela leitura de outros seres prediletos e mestres eleitos, como Walter Benjamin. Contemplo hoje homens como Lula, FHC e Serra, ou mulheres como Dilma Rousseff e Marina Silva, com uma desconfiança e suspeita que são o que de melhor aprendi e herdei dos poetas anarquistas que me formaram, como os dadaístas germânicos.

Restaria, por fim, falar sobre aquela imposição est-É-tica de não militar. Como disse, muitos amigos meus militaram de forma ativa por um ou por outro candidato nesta eleição. Também testemunhei a maneira como muitos poetas tomaram partido, não posição, e defenderam claramente um ou outro candidato, mesmo entre aqueles que são tão adamant sobre a separação entre estética e ética.

A alguns isso parecerá uma contradição, vindo de alguém que insiste (ad nauseam, dirão alguns) na conjunção de ética e estética, fazendo meu joguinho gráfico constante na palavra est-É-tica, mas só me manifestei publicamente com amigos, em debates virtuais, quando parecia haver um abuso da linguagem no que se debatia na imprensa brasileira, distorcendo-a, como na maneira que o PT vinha usando o substantivo "mudança", ou na estratégia absurda do PSDB, de ferir a natureza laica do nosso Estado ao usar como usou suas alianças políticas com a Igreja Católica. Era este o limite imposto por minha crença inabalável na conjunção entre ética e estética. Ora, alguém poderá peguntar, por que "imposto"? Essa discussão toca no dilema que senti nestes últimos meses e ao qual já me referi aqui.

O que, eu passei a me perguntar, permitia a tantos poetas brasileiros, poetas que insistem na separação entre poesia e política, poetas que insistem na separação entre ética e estética, poetas que abraçam conceitos questionáveis como trans-historicidade e "poema pós-utópico", poetas que se assanham, atiçam e atacam a qualquer tentativa de leitura contextual de sua poesia, poetas que são inimigos da crítica sociológica, poetas que afirmam que a única obrigação do poeta é escrever poemas bons e bonitos, sem qualquer ligação obrigatória com seu tempo, o que, eu me perguntei, permitia a estes poetas tomarem partido tão claro, defenderem Dilma Rousseff ou José Serra com tanta paixão em seus blogs, em seus perfis no Facebook, no Orkut, etc, etc, etc. Não há contradição nisso, eu creio: pois é justamente sua crença na separação completa entre ética e estética que lhes permitiu esta imisção nos jogos de poder. Porque eles acreditam na separação, digamos, entre sua pessoa física e sua pessoa poética. Assim, eu imagino, eles criticariam poetas que escrevem para defender partidos, como um Maiakóvski ou Brecht o fizeram em vários momentos, mas talvez por misturarem sua poesia e sua política, não necessariamente por assumirem posições num possível governo, mesmo que seja a posição de defendê-lo textualmente.

Não estou de maneira alguma criticando os poetas que defenderam Dilma Rousseff ou José Serra abertamente apenas por fazê-lo. Há muitos amigos meus, extremamente próximos, que o fizeram. O que me chamou a atenção é quantos deles discordam, às vezes com veemência, de minha tentativa de conjugar poetica e formalmente a discussão ético-estética. Pois alguns destes amigos (e os que estão longe de serem amigos) sempre defendem com paixão o que chamaria de absenteísmo público do poeta nestes últimos 25 anos, como uma defesa da suposta independência política do poeta, sua neutralidade. É aí que me pergunto se não haveria certa contradição. Ao mesmo tempo, algumas pessoas me escreveram perguntando por que um poeta como eu, tão insistente na discussão das implicações políticas do trabalho formal e crítico, mantinha-me assiduamente fora da militância pelo PT ou pelo PSDB em meio à shit storm que foi esta eleição, como se houvesse aí uma contradição de minha parte. Pois reafirmo que foi minha crença na est-É-tica que me impôs a não-militância. No ensaio que estou escrevendo e que gostaria de haver terminado antes das eleições, trato das alianças sociopolíticas dos poetas, sua relação com o mecenato, seja privado ou governamental, e como estas alianças sociopolíticas podem influir em suas escolhas formais. Assim como as transformações formais da poesia dos últimos séculos estão ligadas às transformações do papel do poeta em sua comunidade, deflagradas por tantos cataclismos políticos, como a Revolução Francesa e a Revolução Russa, para mencionarmos dois de ligação clara com algumas transformações poéticas que se seguiram, dois momentos em que os poetas foram OBRIGADOS a mudarem suas alianças sociopolíticas, entre as classes ou grupos que estavam ou pareciam estar no poder. Nada glamouroso para os que ainda parecem ver o poeta como um ser entre o santo e o mítico, nas palavras daquele grão-desmistificador das nossas imposturas, João Cabral de Melo Neto. É por isso que não militei nem pretendo militar por qualquer candidato ou governo, por essa crença na conjunção entre ética e estética, pois me parece mais importante, politicamente, manter uma verdadeira independência para criticar e denunciar as "imposturas de linguagem" ocorridas nos últimos meses. Isso é, eu admito e entendo quem assim o veja, realmente complicado, questionável e segue sendo um dilema pessoal meu, algo que me incita à meditação nestes dias e que compartilho aqui com vocês. Eu acredito hoje que o poeta deveria ser oposição sempre, não importando quem está no Governo, e trata-se aqui de um parâmetro pessoal para mim mesmo, sem querer impor essa visão a outros poetas.

Há muitas outras coisas que gostaria de discutir, como a tentativa de interferência perpetrada por Joseph Ratzinger no debate político de um estado laico e democrático, ou sobre o fato de termos uma mulher como futura presidente, mas deixo isso tudo para outro momento. Devemos nos alegrar, porém, pelo fato de que as estratégias políticas questionáveis das últimas semanas não se fizeram valer.



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