domingo, 13 de fevereiro de 2011

Alguns poemas memoráveis da última década: "sereia a sério", de Angélica Freitas. Ou, "Relendo o Rilke Shake por ocasião de sua encarnação alemã"

NOTA e ADVERTÊNCIA: Encerrou-se a década. Isso não quer dizer que as datas segreguem ou separem alguns poetas de outros, ou ainda que se aperte a tecla de RESET no cronômetro da tradição. Tomo a data apenas como ensejo para iniciar hoje e aqui uma série de artigos sobre poemas brasileiros contemporâneos, especificamente os publicados na última década, série que deverá se estender alternadamente pelas próximas semanas entre as outras postagens deste espaço. Gostaria de acreditar que o uso do pronome indefinido "alguns", já no título da série, evitará certa histeria que se manifesta ao redor de esforços críticos como este. A escolha do adjetivo "memorável" tem também suas implicações estéticas e epistemológicas, e, ao evitar qualquer superlativo, espero também acalmar tanto a neurose dos Porteiros do Cânone como a paranóia da Liga dos Excluídos. Dito isto, por ocasião do lançamento do volume Rilke Shake: Ausgewählte Gedichte (Wiesbaden: Luxbooks, 2011) aqui na Alemanha, inicio a série com uma discussão em torno do trabalho de Angélica Freitas, em especial do poema "sereia a sério". Nos artigos seguintes, tratarei principalmente de poetas que estrearam entre 2001 e 2010, e, em alguns casos, de poetas mais velhos.


Alguns poemas memoráveis da década: "sereia a sério", de Angélica Freitas,
ou, "Relendo o Rilke Shake por ocasião de sua encarnação alemã", por Ricardo Domeneck.



Desde que começou a circular por um público mais amplo há cerca de cinco anos, a poesia de Angélica Freitas tem sido uma das mais comentadas dentre os trabalhos dos poetas surgidos na década passada. Ainda que possa parecer quase reconfortante perceber, ao menos, que um livro de poesia ainda se mostre capaz de gerar posicionamentos tão extremos, na maior parte dos casos a polêmica apenas nubla a discussão crítica, em um país tristemente ainda viciado na busca provinciana de um "Grande Poeta Nacional", que sirva de parâmetro para todos os outros, nivelando diferenças desejáveis para qualquer literatura nacional saudável. Ao mesmo tempo, após mais de uma década em que críticos e poetas (especialmente nos anos 90) davam-se tapas diplomáticos nas costas e falavam sobre "pluralidade de vozes" apenas para se absterem do trabalho crítico, não deixa de ter seu interesse que controvérsias poéticas renasçam, quando para muitos tal quizumba parecia relegada aos tempos em que Hugo Ball entoava sonoridades sem sentido num palco de cabaré e chamava isso de poesia, ou, para darmos um exemplo brasileiro, os tempos em que Carlos Drummond de Andrade estreava aos 26 anos com o poema "No meio do caminho", publicado pela primeira vez na Revista de Antropofagia (1928), e conseguia com isso dividir o país, segundo relatos, em duas categorias mentais distintas e ferozmente opostas entre si. Muitos desses embates voltaram a ser comuns nas décadas de 50 e 60, em vários países, quando grupos de poetas como os Lettristes de Paris, o Wiener Gruppe (obviamente) em Viena, o Grupo Noigandres em São Paulo, os Beatniks em Nova Iorque e São Francisco ou a Internacional Situacionista retomaram as estratégias das primeiras vanguardas.


Imagino que algumas orelhas tenham já se levantado perante a junção destes nomes neste contexto, em que se discute a poesia de Angélica Freitas. Pois, a verdade é que qualquer adjetivo usado em relação ao trabalho da poeta gaúcha, nascida em Pelotas em 1973, será polêmico e questionado. Talvez a saída seja usar justamente este adjetivo e dizer então que a poesia de Angélica Freitas é a mais polêmica da poesia brasileira contemporânea? Já insinuei isso em outros artigos. Nos mesmos, busquei aclarar o equívoco de alinhar seu trabalho ao dos marginais cariocas, por exemplo, com a estratégia algo provinciana que herdamos de nossos românticos e modernistas de apreciarmos a poesia brasileira como espécie de compartimento estanque e hermeticamente fechado em si, resultado da busca por independência e fundação de uma "tradição nacional". A tradição a que se filia a poesia de Angélica Freitas, autora que lê e conhece a poesia escrita em espanhol, inglês e alemão, não tem muitos praticantes na poesia brasileira do século XX. Não se alinha às paródias dos poetas da década de 70, e somente uma leitura superficial e ignorante da tradição mundial da poesia satírica tentaria este vínculo exclusivo. Se em alguns poemas podemos encontrar ecos do modernismo de Oswald de Andrade, em seus melhores momentos a poesia lírico-satírica de Angélica Freitas encontra melhor ascendência brasileira entre poetas do século XIX, como na obra do grande Sapateiro Silva e também em Qorpo-Santo. É também na poesia satírica e nonsense de poetas como Edward Lear, Christian Morgenstern, Paul Scheerbart ou dos dadaístas que podemos encontrar ainda esta sobrevivência moderna e contemporânea da poética de Marco Valério Marcial, como exemplo clássico, a mesma que jorrava entre os Poetas Goliardos dos séculos XII e XIII e dos compositores das chamadas fatrasies medievais, desaguando no trabalho desta brasileira e de outros companheiros seus "da nova geração". Pouquíssimos críticos literários nacionais têm familiaridade com estas tradições para entenderem o que alguns dos melhores jovens poetas contemporâneos estão fazendo. No ano passado, escrevi um ensaio intitulado "Das fatrasies medievais a DADA, do Sapateiro ao Rilke shake", em que tratei da poesia contemporânea brasileira justamente a partir destas linhagens, práticas e tradições. (Os interessados podem ler o ensaio aqui. )


A poesia de Angélica Freitas consegue muitos de seus efeitos mais fortes ao criar uma conjunção interessante e eficiente entre o lírico e o satírico, baseando-se muitas vezes na tática da self-deprecation, o que a liga à tradição dos Poetas Goliardos, autores do século XII como Hugues d'Orléans (1086 - 1160), também conhecido como Hugo Primas, ou do poeta anônimo que passou à posteridade conhecido como Arquipoeta Goliardo, autor do famoso "Confissões", em que escreve aqueles que talvez sejam os mais famosos versos desta tradição medieval da poesia satírica latina:


Meum est propositum in taberna mori,
Ut sint vina proxima morientis ori.
Tunc cantabunt letius angelorum chori:
"Deus sit propitius huic potatori"


Ou, em minha tradução livre:


Meu propósito é morrer nalgum boteco,
Para que eu tenha vinho perto da boca.
Assim os anjos cantarão bem bonachos:
"Que Deus tenha piedade desse bêbado."



Vejamos um exemplo do Rilke shake (2007), de Angélica Freitas:

às vezes nos reveses

penso em voltar para a england
dos deuses
mas até as inglesas sangram
todos os meses
e mandam her royal highness
à puta que a pariu.
digo: agüenta com altivez
segura o abacaxi com as duas mãos
doura tua tez
sob o sol dos trópicos e talvez
aprenderás a ser feliz
como as pombas da praça matriz
que voam alto
sagazes
e nos alvejam
com suas fezes
às vezes nos reveses


::: Angélica Freitas. Rilke shake (São Paulo: Cosac Naify, 2007) ou Rilke Shake: Ausgewählte Gedichte (Wiesbaden: Luxbooks, 2011) :::


Poucos poetas brasileiros das últimas décadas usaram a rima com esta graça e inteligência. Trata-se de poesia a combinar o lírico e o satírico com qualidade e de forma bastante sofisticada. O poema funciona na página e na voz, pois é composto de forma tesa em sua sonoridade, mesclando registros, com palavras "nobres" como tez, reveses, altivez e sagazes, a outras como fezes e expressões populares como "à puta que a pariu". Os efeitos aqui são calculados, não se trata da celebração da espontaneidade da Poesia de Mimeógrafo e de outros poetas da década de 70. As rimas que dançam por entre palavras da língua portuguesa e inglesa têm sua prática fincada na tradição, por exemplo, do Sousândrade d´"O Inferno de Wall Street", pouquíssimo usada na poesia brasileira posterior, que a usaria para efeitos muito distintos em alguns poucos textos, como "A Última Elegia" de Vinícius de Moraes e certos poemas de Augusto de Campos e Mário Chamie no pós-guerra. O texto de Angélica Freitas não é poesia metafísica nem meditabúndia: é poesia satírica, e deve ser julgada nos parâmetros desta tradição. Suas palavras são usadas de forma precisa, cumprem sua função específica e pensada, muito ao contrário da poética randômica, por exemplo, de alguns poetas dentre os que se autodenominam neobarrocos, que recorrem a polissílabos exóticos apenas pelos cheap thrills de uma sonoridade aleatória e tonitruante, e ainda para insistir na ideologia da trans-historicidade e na segregação intransigente da chamada função poética – ao contrário do que presenciamos na poesia de Gregório, Quevedo e Góngora, ou mesmo a de um ótimo poeta como Perlóngher em um livro como Austria-Hungria.

Ora, não há palavras para o equívoco de se ler um poema como este, acima, e passar a analisá-lo sob parâmetros da poesia órfica, por exemplo, como se Angélica Freitas pretendesse com ele escrever a décima-primeira Elegia de Duíno ou substituir Macbeth. O que ela pretendeu --- escrever um poema satírico de qualidade ---, ao mesmo tempo bastante pungente em sua tática lírico-satírica da self-deprecation, ela conseguiu e com belos resultados. Se não houver espaço em nossa tradição contemporânea para tal prática, não é de se admirar que a poesia não seja lida pelo público. Muitos dos que regurgitam máximas de Ezra Pound pelos cantos parecem ignorar que ele também alertou aos poetas que não se esquecessem que a poesia nasceu com uma função primordial: tornar alegre o coração do homem. Pound escreve no seu ABC of Reading: "Gloom and solemnity are entirely out of place in even the most rigorous study of an art originally intended to make glad the heart of man".

Acaba de ser lançado aqui na Alemanha, em edição bilíngue, Rilke shake: Ausgewählte Gedichte {Rilke Shake: Poemas Escolhidos}, que traz quase todos os poemas do volume brasileiro, ao qual a tradutora – a poeta e romancista franco-germânica Odile Kennel – acrescentou poemas recentes de Angélica Freitas publicados em revistas e antologias internacionais, como é o caso de "eu durmo comigo", "louisa por que não me googlas?" e "O livro rosa do coração dos trouxas". A editora chama-se Luxbooks e é uma das pequenas editoras de poesia mais sofisticadas do país, editando autores vivos como os americanos John Ashbery e Rae Armantrout ou o argentino Sergio Raimondi, para citar os que são conhecidos dos brasileiros. A edição é muitíssimo bem cuidada, e a tradução de Odile Kennel tem momentos de genialidade. Vejamos dois outros poemas do volume, o já bastante conhecido poema do "violinista" e o intitulado "ringues polifônicos":


o que passou pela cabeça do violinista em que a morte acentuou a palidez ao despenhar-se com sua cabeleira negra & seu stradivarius no grande desastre aéreo de ontem



mi
eu penso em béla bártok
eu penso em rita lee
eu penso no stradivarius
e nos vários empregos
que tive
pra chegar aqui
e agora a turbina falha
e agora a cabine se parte em duas
e agora as tralhas todas caem dos compartimentos
e eu despenco junto
lindo e pálido minha cabeleira negra
meu violino contra o peito
o sujeito ali da frente reza
eu só penso


mi
eu penso em stravinski
e nas barbas do klaus kinski
e no nariz do karabtchevsky
e num poema do joseph brodsky
que uma vez eu li
senhoras intactas, afrouxem os cintos
que o chão é lindo & já vem vindo
one
two
three

§

ringues polifônicos


1.

entre ringues polifônicos e línguas multifábulas
entre facas afiadas e o elevado costa e silva
entre dumbo nas alturas e o cuspe na calçada
alça voo a aventura na avenida angélica
e hoje de manhã trabalha e amanhã avacalha
a viação gato preto colando um chiclete
adams de menta no assento daqueles bancos de trás
entre ringues polifônicos e tênis alados
entre paulistas voadores e portadores esvoaçados
de baseados no bolso das calças jeans
entre o canteiro central da paulista e a vista do vão do masp
entre os que eu quero e os que queres de mins


2.

dos ringues polifônicos da cidade de são paulo:
entre valsas e velórios e invertidos convulsivos
entre a puta enaltecida e enrustidos explosivos
entre a abertura da boca e o último trem pra mooca
entre os ringues polifônicos e a queda da marquise
morreu ontem executada a poor elise



::::: Angélica Freitas. Rilke shake (São Paulo: Cosac Naify, 2007) ou Rilke Shake: Ausgewählte Gedichte (Wiesbaden: Luxbooks, 2011) ::::


Muitas das características do primeiro poema aqui discutido reaparecem nestes textos. Ler "o que passou pela cabeça do violinista em que a morte acentuou a palidez (...)" é presenciar a poesia dos Goliardos sendo renovada perante nossos olhos em pleno século XXI. Já em "ringues polifônicos", a mescla de registros e as rimas inusitadas assumem importância quase temática, e seu uso conscientemente exagerado da aliteração, por exemplo, assim como dos muitos vocáculos polissilábicos, além de denunciar a terrível qualidade de vida dos habitantes da capital paulista, chegam também a satirizar certas práticas poéticas contemporâneas que se têm como "trans-históricas", bastante encasteladas na cidade. A cidade de São Paulo é mencionada de forma específica, permitindo que a poeta use certos topônimos para arrancar-lhes um efeito poético, como sua menção à Avenida Angélica, que passa a ser tanto o espaço físico como um espaço psíquico (e psicótico) no humor mordaz da autora, borrando a fronteira entre sujeito e objeto.

Um poema satírico como esse, tão fincado em seu contexto local, além do trabalho com a sonoridade e tom, apresenta um desafio de verdade a um tradutor. Odile Kennel, ainda que tenha decidido manter intocados os topônimos originais, como Avenida Angélica e Elevado Costa e Silva (eu os teria trocado por topônimos berlinenses), consegue manter o ritmo e tom do original: "zwichen polyphonen klingeltönen und fabelhaften sprachen...". A poesia germânica tem uma tradição fortíssima de poesia lírico-satírica em grande parte desconhecida no Brasil, não apenas na simplicidade cantante da poesia de Heinrich Heine como na poesia moderna de Morgenstern, Scheerbart e de dadaístas como Hans Arp e Kurt Schwitters. É nesta linhagem que a poesia de Angélica Freitas está sendo lida aqui na Alemanha. Penso, por exemplo, nos mais famosos poemas de Arp, como por exemplo "Opus Null", da qual o leitor pode ler a primeira seção abaixo:


Opus Zero


Eu sou o Grão-Istoaquilo
O rigoroso regimento
O oxigenoma Sine Qua Non
O anônimo 1%

O P.P.Tit. e dito cu
Culatra sem boca e buraco
O honorável talhercúleo
Capa nova em velho cardápio

Eu sou o pífio vitalício
O Sr. Dezembro em dúzia
O colecionável Filatelo
Em verniz vinil e fúcsia

O desabrochável semigual
O honoris causa Dr. Ômega
O brancomo berço d´ouro
O paparazzível Domine


(Hans Arp em tradução de Ricardo Domeneck)


Vale também lembrar que Angélica Freitas é precursora no Brasil da prática que já chamamos de "googlagem", renovando a colagem dadaísta. Tal prática, por exemplo, se tornou o carro-chefe da poesia flarfista, surgida também na última década nos Estados Unidos, de autores como K. Silem Mohammad, Nada Gordon e Michael Magee (meu favorito entre os autores da Flarf Poetry). Abaixo, uma das googlagens experimentais de Angélica Freitas:


a poesia não

a poesia não é uma coisa idiota
a poesia não é uma opção
a poesia não é só linguagem
a poesia, não
a poesia não é para ser entendida
a poesia não é uma ciência exacta
a poesia não é arma
a poesia não é mais de Orfeu
a poesia não é diferente
a poesia não é um casamento
a poesia não é um sentido
a poesia não é, nunca foi
a poesia não é escolha
a poesia não é nem quer ser mercadoria
“a poesia não é uma força de choque.
é uma força de ocupação.”
Mas a poesia não é a revelação do real?
a poesia não é a arte do objeto
a poesia não é mero artifício
a poesia não é de Castro Alves, como pensam muitas pessoas
a poesia não é mais representativa
a poesia não é uma ocupação permanente
a poesia não é um espelho
não, a poesia não é uma arte contemplativa
a poesia não é uma coisa idiota
a poesia não é algo que possa utilizar-se como trombeta
a poesia não é uma questão de sentimentos
a poesia não é feita (diretamente) de idéias
mas de palavras (estas, sim, portadoras daquelas)
as pessoas nem sempre percebem que a poesia não
é mero entretenimento, brincadeirinha literária inconseqüente

já a poesia não.



Chego então a um dos poemas de Angélica Freitas que me parece tão memorável entre os publicados na última década, poema que já discuti em outros artigos: o tão bonito "sereia a sério". Nele, há um exemplo ideal do momento em que a sátira e a lírica da poeta gaúcha parecem encontrar seu casamento harmonioso. Se em tantos textos sua poesia parece hesitar entre o lírico e o satírico, neste um dos repuxos apenas intensifica o outro, e os cantos da nossa boca ficam tesos, sem saber se obedecem à pressão ascendente ou descendente. Há ainda nele um dos seus exemplos mais sutis de intervenção política no debate de gênero, com toda a sua violência subreptícia.


sereia a sério

o cruel era que por mais bela
por mais que os rasgos ostentassem
fidelíssimas genéticas aristocráticas
e as mãos fossem hábeis
no manejo de bordados e frangos assados
e os cabelos atestassem
pentes de tartaruga e grande cuidado

a perplexidade seria sempre
com o rabo da sereia

não quero contar a história
depois de andersen & co.
todos conhecem as agruras
primeiro o desejo impossível
pelo príncipe (boneco em traje de gala)
depois a consciência
de uma macumba poderosa

em troca deixa-se algo
a voz, o hímen elástico
a carteira de sócia do méditerranée

são duros os procedimentos

bípedes femininas se enganam
imputando a saltos altos
a dor mais acertada à altivez
pois
a sereia pisa em facas quando usa os pés

e quem a leva a sério?
melhor seria um final
em que voltasse ao rabo original
e jamais se depilasse

em vez do elefante dançando no cérebro
quando ela encontra o príncipe
e dos 36 dedos
que brotam quando ela estende a mão



::: Angélica Freitas. Rilke shake (São Paulo: Cosac Naify, 2007) ou Rilke Shake: Ausgewählte Gedichte (Wiesbaden: Luxbooks, 2011) :::


Se a poesia em língua portuguesa conta hoje com o talento lírico-satírico de uma autora como Adília Lopes, eu ousaria aqui, para protesto seguro de muitos, afirmar que mesmo a portuguesa não foi capaz em muitos momentos de compor com tamanho humor e graça um texto tão oralizável e ao mesmo tempo cheio de consciência da materialidade sígnica. É, em minha opinião, um dos poemas líricos mais tocantes da década que se encerrou. É importante notar a maneira como Angélica Freitas consegue criar quase uma ofegância no leitor, mesmo que este esteja lendo em silêncio, com sua sintaxe que parece borrar sujeito e objeto, lançando enjambement por enjambement para mais longe o complemento e a conclusão, isomorfisando o andar cambaleante desta pequena sereia que acaba de ganhar pernas, apenas para jogar-nos na cara, no nono verso, um rabo de fêmea. No Brasil, não acaba tudo em pizza, acaba em bunda: "a perplexidade seria sempre / com o rabo da sereia". Toda a violência de gênero em um país sexista e homófobo como o Brasil é sutilmente acusada em imagens de cartoon sangrento, hímen elástico a ser rompido, saltos altos a serem tolerados, facas sob os pés. Sereia consumível. Num país de machos famintos, seu destino seria o sushi.

Num exemplo de consciência da materialidade sonora do signo, Angélica Freitas baseia a musicalidade desta sua sereia (sirene e sibila), em uma composição poética fortemente marcada por aliteração a partir de consoantes fricativas ::: estrindentes, sibilantes ::: combinando-as com plosivas que aumentam este efeito ofegante de sereia arrastando-se sobre um rabo ou dois pés.

Esta sensibilidade de poeta lírica que não abre mão do mordaz por saber-se cidadã de um país onde Safo de Lesbos também teria alguns direitos civis negados a sua vida amorosa, leva-a em outros textos a um tom mais delicado e minimalista, como no bonito "siobhan 4", em que Angélica Freitas lança mão da atomização do verso mas, ao contrário dos poetas da década de 90 que tentavam encaixar-se com poemas meramente descritivos na poética de Cabral e Creeley, usa-a para a lírica amorosa, celebrando a destinatária do poema, uma menina irlandesa com o nome (de origem celta) Siobhan, que significa "Deus é gracioso". À última seção do poema, que é dividido em cinco, lê-se:


de siobhan 4

será que ela pensa em mim
será que também pergunta
o que aconteceu

com as boas garotas
de sodoma, essas que
sempre

se beijavam nas escadas
sumiam nas bibliotecas
preferiam virar sal?



::: Angélica Freitas. Rilke shake (São Paulo: Cosac Naify, 2007) ou Rilke Shake: Ausgewählte Gedichte (Wiesbaden: Luxbooks, 2011) :::

Este minimalismo parece menos interessado no conciso que no incisivo, ou seja, conciso mas mordaz, economia de meios com uma função poética específica. Se o poeta diz mais pelo que deixa de dizer, como quer certo clichê crítico, Angélica Freitas recorre aqui à implicação do que é excluído da História, as "boas garotas de sodoma", assim como à menção àquela que entrou para a História sem nome, conhecida apenas como "a mulher de Ló".

Algo destas práticas reapareceria em outro poema serial que, já no título, demonstra esta tática de aliar ao lírico o satírico: trata-se do poema "O livro rosa do coração dos trouxas", publicado no número de estreia da Modo de Usar & Co., do qual é possível ler abaixo duas seções (o poema é divido em 12 partes):


Dois excertos do poema O livro rosa do coração dos trouxas

I.

eu quando corto relações
corto relações.
não tem essa de
briga de torcida
todos os
sábados.
é a extinção do estádio.
vejo as forças
que atuam; a tesoura,
o papel,
a vontade de cortar.
tudo é provocação?
então embrulha
tua taquicardia
num sorvete de amêndoas,
reza que derreta.
quando lembro do
corte revivo a
ferida.
melhor não.
o corte é definitivo,
a dor retorna em forma
de milão madri
ou liverpool
quando convocada.
ricardo
lembra do teu passado
só se te dá
prazer.
how elizabeth
bennet of you.
mas tirar
deleite da perda,
convencer fulana
de que minha fraqueza
não oblitera?,
exigir um rio de janeiro
com gatos e livros,
legítima esposa?,
fico sonhando com
a viagem a um país onde a
língua seja vértebra
sobre vértebra,
palavras com j
antes do l,
e cacos gregos
que me devolvam
ao aluguel da casa.



IX.

o dia seguinte
na tua cama
de lençóis
zêlo com
circunflexo,
a dôr com
circunflexo,
porque é
antiga,
como o café pelé
todos a conhecem.



O talento da poeta em mesclar o lírico e o satírico mostra-se novamente com força neste poema-em-série, como o fez em "sereia a sério". A forma como a autora questiona as fronteiras de gênero :::: tanto GENRE como GENDER ::: não tem muitos paralelos na poesia contemporânea, onde em geral a discussão assume contornos meramente temáticos. Se o lírico tantas vezes é visto como relação feminina com a poesia, a autora complexifica tal clichê ao gerar este seu gênero poético híbrido, entre o lírico e o satírico, como se entre o sáfico e o goliardo. Este poema me toca em especial pois estabelece em suas malhas também um pequenino diálogo, na primeira seção, com um poema meu que seria publicado no livro Sons: Arranjo: Garganta (2009), no qual faço o parto de um diálogo com algumas poetas que respeito, todas com o mesmo primeiro nome: a americana Elizabeth Bishop, a escocesa Elizabeth Fraser e as brasileiras Elisabeth Veiga e Isabel Câmara (Isabel sendo a versão portuguesa do nome Elizabeth). No poema, tento emular a escrita de cada uma delas criando metáforas à maneira de seus poemas, satirizando a própria ideia de emulação:


Drag Queen

na aprendizagem dos ganhos
pela arte da subtração

(oh, how
elizabeth bishop
of you)

acordei meio porta-luvas
& todas as mãos
compareceram à cerimônia

(oh, how
elisabeth veiga
of you)

ao confiar-me aos sete
dias de jericó
desmoronando aos pés
do sim e de las vegas

(oh, how
elizabeth fraser
of you)

pois

ninguém me arranha
ninguém me cospe
ninguém me chama
de kate moss

(oh, how
elisabeth chamber
of you)


Ricardo Domeneck, Sons: Arranjo: Garganta (2009)


Se trago esse diálogo à conversa (o que infelizmente poderá parecer auto-celebratório para alguns) é porque me parece interessante para nossa discussão sobre as relações de gênero e o mesclar de dualidades ligadas a GENRE e GENDER. Ao adicionar Elizabeth Bennet à lista, a personagem do romance Pride and Prejudice de Jane Austen, criando uma referência intertextual a um poema intitulado "Drag Queen" e no qual também satirizo noções de genre e gender, Angélica Freitas introduz nesta primeira seção de seu poema o questionamento, que se estenderá por toda a série, das expectativas sociais ainda existentes e exigentes para as mulheres, recompondo os laços de obrigação, sonho e desejo ligados à instituição do casamento, aliando-se a uma poeta como Marianne Moore, que escreveria nos primeiros versos do poema "Marriage":


Marriage

This institution,
perhaps one should say enterprise
out of respect for which
one says one need not change one's mind
about a thing one has believed in,
requiring public promises
of one's intention
to fulfill a private obligation:
I wonder what Adam and Eve
think of it by this time,
this firegilt steel
alive with goldenness;
how bright it shows --
"of circular traditions and impostures,
committing many spoils,"
requiring all one's criminal ingenuity
to avoid!

(...)


Sob a aparente simplicidade de sua escrita, agitam-se questionamentos que têm passado ao largo de tanta poesia contemporânea. Em um artigo para o décimo número da revista portuguesa águas furtadas, que trazia uma pequena seleção de poemas de Angélica Freitas, escrevi que a autora gaúcha era uma poeta de relação anti-autoritária com a tradição. Talvez porque a tradição a que pertence seja a dos anti-autoritários, a de Catulo satirizando César e Mandelshtam satirizando Stálin.

Essa atitude se manifesta na poeta gaúcha também na maneira com que Angélica Freitas se recusa, por exemplo, até mesmo a separar poemas que a maioria dos poetas segregaria entre textos "para adultos" e textos "para crianças", mostrando que talvez não respeitem nem um nem outro. Angélica Freitas não sofre do que Lawrence Sterne, citado por Pound, chamou de "Gravity, a mysterious carriage of the body to conceal the defects of the mind." Há algum tempo, a autora publicou um poema que causou (pasmem!) escândalo entre certos bufões e charlatães contemporâneos, representantes da "poesia séria e difícil":


um patinho de borracha
& uma jujuba azul


um patinho de borracha
quá quá
amarelinho com mofo
esquecido numa banheira
quá quá
de uma casa para alugar

se sente tão sozinho
quá quá
se ao menos ele soubesse
que debaixo do sofá
quá quá
descansa esquecida
uma linda jujuba azul

uma jujuba sabor anis
uma jujuba que ninguém quis

um patinho de borracha
quá quá
que ninguém quis levar

uma jujuba azul
zul zul
que ninguém quis chupar



Pois veja que, por mais incrível que pareça, em um episódio recente um "poeta" e "crítico" paulistano chegou a atacar a autora gaúcha por escrever este poema. Como comentar com candor tamanha impostura? No Brasil de hoje, chega-se ao absurdo de atacar poetas satíricos e autores de poesia leve por "falta de seriedade"! Ora, apenas um completo idiota descontextualizaria tal poema e sua prática, insistindo em não perceber os propósitos do texto, a que público e momento se dirige, perdendo a oportunidade de reconhecer, como já dizia o Eclesiastes, que "tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu... há tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar". Tempo para Orfeu descer ao Hades e tempo para Orfeu ensinar agricultura à humanidade, como se atribui a ele em alguns mitos. Espero que a poeta gaúcha ainda componha muitos poemas como este, que serviriam como ótima introdução à poesia para tantas crianças brasileiras.


O livro de estreia de Angélica Freitas, Rilke Shake, talvez tenha sido o livro de poemas mais lido no Brasil na última década. Alguns dirão, por discordarem das escolhas est-É-ticas da autora, que vendeu porque é acessível, como se isso fosse um grande pecado. Nada mais ridículo do que assistir poetas contemporâneos que insistem no mito romântico da poesia que obrigatoriamente tem que ser "difícil" e "escrita para ninguém", ao mesmo tempo em que choramingam pela falta de leitores. A tradição da poesia órfica, como de outras tradições de poesia hermética, é longa e necessária, mas não a única. Nem estou me esquecendo que eu mesmo já publiquei poemas chamados de "herméticos" e até incompreensíveis. Mas a ideia de uma poesia que seja necessariamente difícil, poesia que tem que ser "escrita para ninguém", poesia que não deve e não cede às "exigências das massas e do público", é um mito ideológico criado em grande parte pelos poetas românticos, pressionados a se encaixarem nas transformações sociais que se agitaram após a Revolução Francesa, quando exigiu-se deles que revissem a que classe pertenciam ou a quem deviam lealdade. Em suma, quem pagaria as suas contas. A poesia de Baudelaire mostra com tamanha clareza este embate do poeta com a nova ordem política e social da Europa, por exemplo. Muito da relação neurótica e paranóica entre os poetas e seu público vem dos desdobramentos desses acontecimentos históricos, e apenas foi reavivada pela Revolução Russa e as novas exigências de "lealdade social" lançadas contra os poetas. Se nos séculos XVIII e XIX os poetas viram a aristocracia que os sustentou e formou seu público despencar do poder, para pouco mais de um século depois (quando os poetas estavam se acostumando a servir à burguesia), presenciarem o surgimento de novas exigências de outras revoluções e ideologias, parece-me natural que os poetas se refugiassem na ideia de que não devem nada a ninguém, nem servem a classe ou ideologia alguma. Estão certos que queiram reservar a si o direito de escrever como entendem, independente de qual ideologia está no Poder. A poesia existe para si, concordamos todos. A poesia é inútil, disse Leminski. Também concordamos, mas Leminski referia-se ao utilitarismo do sistema capitalista. A poesia não é produto de troca ou venda, mas sempre teve funções sociais aliadas a suas formas, desde que surgiu, ainda que esta função seja tão-só to delight the heart of men, como disse Pound. É impossível seguir ignorando a influência que estas questões têm, tanto sobre a produção e discussão da poesia, como sobre sua recepção. Estão interligadas.

O sucesso da poesia de Angélica Freitas hoje mostra-nos que há possibilidades ainda muito claras para os poetas contemporâneos, e que a função satírica da poesia, assim como sua função lírica (tanto na acepção de "poesia cantada" como "poesia do indivíduo") não perderam sua demanda. Esta é minha leitura da poesia de Angélica Freitas, como da de outros poetas brasileiros contemporâneos trabalhando em linhas similares. Encerro-a com um poema da autora gaúcha publicado na revista eletrônica espanhola Poesía Digital, com a esperança de, nas palavras da própria poeta, não haver feito "uma leitura / equivocada / mas leituras de poesia / são equivocadas".


--- Ricardo Domeneck

§

POEMA DE ANGÉLICA FREITAS


alguém quer saber o que é metonímia
abre uma página da wikipédia
se depara com um trecho de borges
em que a proa representa o navio

a parte pelo todo se chama sinédoque

a parte pelo todo em minha vida
este pedaço de tapeçaria
é representativo? não é representativo?

eu não queria saber o que era
metonímia, entrei na página errada
eu queria saber como se chegava
perguntei a um guarda

não queria fazer uma leitura
equivocada
mas leituras de poesia
são equivocadas

queria escrever um poema
bem contemporâneo
sem ter que trocar fluidos
com o contemporâneo

como Roland Barthes na cama
só com os clássicos


§

6 comentários:

reuben disse...

Esta é uma de nossas ideias que mais se cristalizaram em jargão, a da poesia como inutensílio. E uma das que mais carecem de contexto (não só o utilitarismo do Capital, como também as fortes polarizações poéticas do período etc.).

Gosto de diferenciá-la, ao pensar na diferença entre uma poesia que não serve P/ nada e uma outra, que não serve A nada.

De resto, carreguei o Rilkeshake por muito tempo na mochila, na qual incluo agora o poema que encerra o post, que desconhecia.

Grandabraço,

lucas disse...

que post lindo. os textos de angélica certamente são uma das fontes de alegria de que mais gosto na terra. e a sua leitura, sensível, que faz questão destacar a força e a inteligência que se mostra de modo aparentemente tão simples, é inspiradora porque me parece revelar o que de melhor pode advir de um diálogo entre poetas. (tenho saudades da época em que ela usava mais frequente aquele blog). ela lança livro novo esse ano, não é isso? leitores de poesia têm motivo para ficar feliz.

Anônimo disse...

Perdón por la intromisión en español, pero quería preguntar si hay traducción al español de Rilke Shake.

Gracias...

Ricardo Domeneck disse...

Caros Reuben e Lucas, obrigado pelas palavras e pelo diálogo.

Caro Anônimo,

yo sé que la poeta Teresa Arijón lo está traduciendo al "Rilke Shake" completo, creo que para un editorial español, pero no estoy cierto se ya se encuentra listo y publicado. En castellano, puedes todavía encontrar poemas de Angélica Freitas en dos antologías: en el volúmne argentino "Cuatro Poetas Recientes de Brasil" (Buenos Aires: Black & Vermelho, 2006), con traducción de Cristian De Nápoli; y en España en el volúmne "Otra línea de fuego. Quince poetas brasileñas ultracontemporáneas" (Málaga: CEDMA, 2009), con traducción de la própia Teresa Arijón, que trae también poemas de otras brasileñas maravillosas como Juliana Krapp y Marília Garcia, por ejemplo.

grande abrazo

Ricardo

Anônimo disse...

Muchas gracias, voy a ver si encuentro alguna de esas antologías por aquí. Estoy deseando poder leer Rilke Shake al español... und wenn nicht, dann kann ich immer auf die deutsche Übersetzung zurückgreifen ;-)! Leider kann ich kein Portugiesisch...

De nuevo, muchas gracias!

Anônimo disse...

O Pato
Vinha cantando alegremente
Quém! Quém!
Quando um Marreco
Sorridente pediu
Prá entrar também no samba
No samba, no samba...

O Ganso, gostou da dupla
E fez também
Quém! Quém! Quém!
Olhou pro Cisne
E disse assim:
"Vem! Vem!"
Que o quarteto ficará bem
Muito bom, muito bem...

Na beira da lagoa
Foram ensaiar
Para começar
O tico-tico no fubá...

A voz do Pato
Era mesmo um desacato
Jogo de cena com o Ganso
Era mato
Mas eu gostei do final
Quando caíram n'água
E ensaiando o vocal...

Quém! Quém! Quém! Quém!
Quém! Quém! Quém! Quém!
Quém! Quém! Quém! Quém!
Quém! Quém! Quém! Quém!...


Ricardo tenho gostado muito de vir aqui, tem me feito pensar muito... e gostar de alguns poemas
que eu não teria olho no momento.
lendo este post e as coisas ao redor do que ela( angelica) e eles (os poemas) significam, pensei em vocês e nessa letra de música. congratulations, abraços desde minas,thanks. seu humor me dá simpatia. abraço .
Vinicius.

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