domingo, 31 de julho de 2011

Comentários a um poema recente e a resposta a uma crítica malcriada e anônima




Na terça-feira passada, 26 de julho de 2011, publiquei neste espaço um poema recente, intitulado "O solteiro mais cobiçado do mundo", que parte da história de Cesárion, filho de César e de Cleópatra. Nos dias que se seguiram, recebi alguns comentários e conversei sobre o poema com algumas pessoas que respeito.

O poeta paulista Érico Nogueira me escreveu, por exemplo, comentando as inconsistências em minha grafia para os nomes das personagens históricas, aportuguesando uns e não outros. Após conversar com ele sobre algumas possibilidades, decidi que era realmente melhor usar a grafia em português para todos os nomes, e acatei algumas de suas sugestões, como mudar Caesarion para Cesárion, e, o que me agradou particularmente, sua sugestão de usar para Thea Filopator, o "sobrenome" de Cleópatra, a versão Diva Filopátor. Agradeço a ele, aqui, por suas sugestões.

Em outra mensagem, o poeta gaúcho Marcus Fabiano apontou para a possível inconsistência em usar, na linha "César ou meteco", referências a uma personagem histórica latina e a um conceito político da pólis grega. Após pensar a respeito, percebi que ele tinha razão, e que realmente havia espaço para esta interpretação, gerando mesmo uma mistura questionável, especialmente com a linha seguinte – "rei ou plebeu" – que cria uma equiparação historicamente mais plausível. Decidi mudar a primeira linha para "cidadão ou meteco". Agradeço a Marcus Fabiano por apontar esta inconsistência em aberto.

Marcus Fabiano também me perguntou se o poema dialogava ou partia de Kaváfis. Disse a ele que, ao escrevê-lo, eu tinha mais em mente a maneira como o poeta polonês Zbigniew Herbert e o alemão Heiner Müller usavam personagens e material histórico clássico, muitas vezes já trabalhados por outros. É claro que isso é forte em Konstantinos Kaváfis, mas no caso do grego trata-se de sua própria História, o que o leva a um tratamento do material razoavelmente diferente, pois ele pode assumir de forma mais plácida que seus leitores sabem do que ele está falando.

Esta semana, como acontece com certa frequência, recebi um comentário anônimo aqui no blogue. Na maioria dos casos, trata-se apenas de alguém incomodado ou irritado com minha existência e o oxigênio que a pessoa crê que eu desperdiço, tentando me ofender com comentários homofóbicos ou de outras categorias, comentários que eu regiamente ignoro. O último comentário, no entanto, comentava o poema e fazia uma crítica negativa a ele, e, apesar de seu tom malcriado e deselegante, aliado à falta de hombridade de assiná-lo, eu achei que valia a pena responder aqui, em uma postagem, pois a discussão pode ser interessante.

Primeiramente, confesso que jamais vou entender a prática de deixar comentários anônimos em blogues ou páginas alheias. Não entendo alguém que se interesse tanto pelo meu trabalho a ponto de ler meu blogue e ainda por cima fazer críticas, mas sem identificar-se. Em minha opinião, a assinatura é uma questão de hombridade, como disse acima (sim, estou assumindo que o comentarista seja do sexo masculino. Posso estar errado, mas me parece atitude típica de macho-alfa). Além do mais, como em geral trata-se obviamente de outro poeta, seria muito educativo para mim, por exemplo, ler o trabalho da pessoa para saber que parâmetros implícitos segue.

Não importa. Vamos ao comentário. Eis a opinião malcriada de meu leitor anônimo sobre o poema "O solteiro mais cobiçado do mundo":


"Kaváfis reciclado em poema prolixo e cabotino. Teus `reflexos´ históricos são intragáveis. Teu corpo não urge que volte a versar?"


Vejamos, por partes.


§ - Kaváfis


O poeta de Alexandria tratou de Cesárion em dois poemas, "Reis alexandrinos" e "Caesarion" (fáceis de encontrar na Rede), este diretamente dedicado ao jovem rei.

Neste último, após narrar sua leitura de epigramas compostos durante a Dinastia Ptolomaica, Kaváfis relata sua descoberta de uma pequena menção a Cesárion, que o leva a sua usual prática do louvor dos mancebos, sua própria reciclagem do tema do erômenos, sua imaginação do corpo e presença do jovem rei de 17 anos, como ele fez em tantos poemas maravilhosos sobre suas lembranças e encontros furtivos com jovens de Alexandria, mas apontando, neste caso, a uma discussão sobre a sede de poder que leva a assassinatos. Ele encerra com uma frase que Plutarco teria atribuído ao filósofo estóico Arius Didymus (creio que Ário Dídimo em português), supostamente dita a Otaviano para convencê-lo da necessidade do assassinato de Cesárion: "Não é bom haver Césares demais". Por sua vez, a linha seria um jogo de palavras com um verso de Homero.

É um lindo poema, sugiro a sua leitura neste link, em tradução para o inglês. No outro poema, intitulado "Reis alexandrinos", Kaváfis retorna a Cesárion, discutindo o vazio das pompas reais, tomando a passagem em que os filhos de Cleópatra são coroados em Alexandria. Os poemas são puro Kaváfis, sem minhas catulizações gender-sarcastic e chistes fisiológicos. Recomendo muito sua leitura.


§ - Reciclado.


Caso o comentarista veja a abordagem de temas clássicos já tratados como um problema, sinto muito por seus hábitos de leitura. O próprio Kaváfis foi mestre na reciclagem de temas. Escreveu sobre personagens e assuntos que já haviam sido tratados por outros poetas. Parece-me razoavelmente ridículo acreditar que nenhum poeta mais possa escrever sobre Cesárion, ou, por sua vez, sobre outras personagens, como Antínoo, Eleanor de Aquitânia e Ana Bolena (para citar algumas personagens que me fascinam e sobre as quais tenho escrito), ou qualquer outro, porque já se escreveu sobre eles. Quantos poemas foram escritos sobre Cleópatra e César, ou sobre Calígula e Cláudio, por exemplo? Isso, eu creio, não inutiliza poemas como os de Zbigniew Herbert, que reciclou vários temas clássicos para poder driblar a censura do regime comunista de seu país, ou as maravilhosas "reciclagens" de Heiner Müller para temas clássicos. O deles é o que gosto de chamar de "uso saudável e funcional da erudição".

Sinceramente, não sinto sequer a necessidade de acrescentar uma nota ao poema, informando que o tema já foi tratado por Kaváfis. Fica para os interessados em intertextualidade. Meu tratamento é obviamente diferente, e, como apontou um amigo, talvez muito mais próximo de Catulo que de Kaváfis. Pessoalmente, continuo achando que o poema deve MUITO MUITO MUITO mais a Zbigniew Herbert e Heiner Müller (aqui o agradecimento e louvor póstumo a estes meus dois mestres), em níveis mais profundos que o da "temática". Não sei se meu caro leitor anônimo conhece estes poetas, pouco traduzidos para o português.


§ - Prolixo.


Há um problema crítico sério no Brasil, que eu creio ter relação com este incômodo de meu caro leitor malcriado e anônimo. Trata-se da maneira como se confunde o "discursivo" com o "prolixo". É um equívoco sem tamanho, em minha opinião, tomar a discursividade como valor negativo em si, e a antidiscursividade como valor positivo. Nada há na História da Literatura que sustente esta visão. Agora, é bem certo que não posso assumir que nosso comentarista sofra deste defeito crítico. Talvez ele saiba bem a diferença entre o discursivo e o prolixo e veja versos e palavras realmente desnecessárias em meu poema. Talvez ele não esteja entre os que creem que seja um defeito ser capaz ainda de versejar em sentenças completas. Espero que ele não esteja entre os que acreditam que jogar algumas palavras desconexas sobre a página garanta a concisão. Me parecem problemas que ocorrem com quem leva muito ao pé da letra a velha história de que "importa mais o que o poeta deixa de dizer do que aquilo que ele realmente diz". É que eu gosto muito de escrever, sabe?

Deixo a meus leitores, anônimos ou não, julgar se meu poema, conscientemente discursivo, acaba sendo prolixo.

Eu tinha um efeito bastante específico em mente, e procedi de acordo, além do mais, com meu interesse por textos mais tesos que necessariamente concisos.

Vale a pena retornar, por exemplo, ao poema de Kaváfis. O grego o intitula com o nome de Cesárion, deixando claro desde o começo a quem se refere. Ora, Kaváfis era conterrâneo de Cesárion. Escreveu seu poema em grego e em Alexandria, onde ocorre a história. Ele pode simplesmente assumir que seus leitores saibam exatamente de quem e do que ele está falando.

Ao começar a ler meu poema, propositalmente intitulado com ares de revista de fofoca contemporânea (tento imaginar Kaváfis intitulando um poema "O solteiro mais cobiçado do mundo" e sou obrigado a sorrir um pouco), o leitor não sabe se o texto tratará de alguém como Cesárion ou, digamos como exemplo, o jovem modelo Francisco Lachowski, que tem a cara e o corpo que eu gosto de imaginar em Cesárion quando penso nele, ainda que meu poema não tenha tratado Cesárion como erômenos imaginário. Ok, talvez um pouquinho, mas é porque, como disse, sempre o imagino com a cara e o corpo de Francisco Lachowski.

Escrevendo em português e em 2011, a mim interessava compor o poema de tal maneira que ele "instrumentalizasse" qualquer leitor a entendê-lo, já durante a leitura, sem a necessidade da busca exterior de informação. Ninguém precisa saber quem foi Cesárion para ler o poema. Ao contrário, depois de ler o poema, passa a saber quem foi caso não soubesse. A alguns isso parecerá demasiado didático, algo também visto como problemático, mas faz parte do jogo.



§ - Cabotino.


O que talvez tenha parecido cabotino ao meu leitor anônimo e deselegante é que eu retorne a tal tema com implicações quiçá muito menos nobres e universais que as do mestre Kaváfis, pois aponto para nossa atual idolatria de celebridades que também assumem características divinizáveis, começando pelo uso do meu título, "O solteiro mais cobiçado do mundo", que poderia facilmente ser o título de um artigo de revista de fofoca qualquer. Acabo misturando a isso ainda minha discussão de certas questões políticas de gênero, como meu tratamento algo obsessivo e sarcástico da cultura do macho-alfa e seus delírios desejosos de épicos. Talvez meu uso do tema seja mesmo cabotino para algumas sensibilidades, talvez justamente por ter escondido, por contrabando, estas discussões políticas contemporâneas em um tema "nobre". Não sei se nosso ranzinza anônimo chama o poema de cabotino por ver nele uma piada de mau gosto ou exibição arrogante de conhecimento. Eu certamente entendo muito mais de cigarros, café e da anatomia masculina que da História Clássica, talvez devesse ter realmente voltado a Kaváfis e sua nostalgia do erômenos (algo que já fiz várias vezes), mas não será isso que limitará meus temas.


§ - "Teus `reflexos´ históricos são intragáveis."


Gostei deste toque, "reflexos" em vez de "reflexões", muito esperto e divertido o seu sarcasmo. Quem sabe, se meu trabalho não o incomodasse tanto, nós até pudéssemos tomar um uísque um dia, discutindo vivamente nossas visões provavelmente opostas sobre poesia?

Mas, ora, meu querido leitor anônimo, tudo o que posso sugerir, se você considera meus "reflexos" históricos intragáveis, é que você não leia meu trabalho. Este é meu blogue pessoal e eu não sou leitura obrigatória.



§ - "Teu corpo não urge que volte a versar?"


Esta é, na verdade, a única pergunta que você fez, já que você veio ao meio espaço pessoal para pontificar sobre sua opinião acerca do meu poema. Respondo-a:

Não.

Meu corpo não sente a menor urgência de "voltar" (significa que versei no passado?) a versar. Sabe Deus o que você quer dizer com isso, já que eu não sei quem você é e muito provavelmente ignoro o seu trabalho se o conheço.

Nunca houve como nas duas últimas décadas um divórcio tão gigantesco entre os poetas e prosadores brasileiros. É realmente algo inédito, já escrevi sobre isso, mencionando-o por exemplo em um ensaio a sair pela Fundação Casa de Rui Barbosa, cheio de meus "reflexos" históricos intragáveis.

Já deve ter ficado claro que eu não estou interessado em uma visão da poesia como gênero puro. Estou interessado em textos, cobrindo ou não a página de margem a margem, desde que sejam tesos. Não considero antidiscursividade um valor positivo em si, apenas no contexto do texto e dos efeitos que busca, dos parâmetros que segue. Kaváfis, mestre mestre mestre, é discursivo. Muito tênue a linha entre prosa e poesia em poetas como o alexandrino, ou como o polonês Zbigniew Herbert, ou como o alemão Heiner Müller.

Por fim, quero deixar muito claro que estou completamente aberto a críticas e sugestões, como as que Érico Nogueira e Marcus Fabiano fizeram. Nem acho que meu poema seja perfeito ou divino maravilhoso. Acho que é um poeminhazinho bastante decente e apresentável.

Aqui está sua resposta pública, ainda que você não a tenha feito de maneira aberta. Você, ao que me parece, está entre os críticos da poesia contemporânea hoje mais interessados nas reputações poéticas contemporâneas que veramente na poesia contemporânea. Ler crítica de poesia contemporânea hoje no Brasil é como ler apreciações de carreiras, não de obras. Tenho me esforçado para não cair nesta armadilha, e, caso você acompanhe meus "reflexos" históricos intragáveis também na Modo de Usar & Co., a próxima postagem será sobre o trabalho recente do jovem e seu, meu, nosso contemporâneo Ismar Tirelli Neto.

Espero que a resposta o satisfaça. Volte sempre, se o seu gag reflex o permitir. Talvez tenhamos outras coisas em comum, mesmo que, diferentemente de você, não me falte hombridade.


do seu histórico-reflexivo intragável,

Ricardo Domeneck.


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Traduções para alguns poemas de Erich Fried

POEMAS DE ERICH FRIED
Traduções minhas, tomando algumas liberdades,
preparadas para a Modo de Usar & Co.


Ela

Ela devora seus filhos
ela bebe o sangue de seus mortos
ela prega aos surdos
ela desconhece valores superiores

Ela perde o caminho
ela cambaleia de traição em traição
de erro em erro
ela dorme nas derrotas

Que ela é desnecessária
toda criança aprende na escola
que o povo não a deseja
finalmente percebeu o povo

Que ela não pode vencer
foi provado por a + b
Os que o provaram
não dormem muito bem

Os que nela creem
cansam-se às vezes com as dúvidas
alguns que a odeiam
sabem que ela está a caminho


:

Sie

Sie frisst ihre Kinder
sie trinkt das Blut ihrer Toten
sie predigt den Tauben
sie kennt keine höheren Werte

Sie vergisst ihren Weg
sie wankt von Verrat zu Verrat
von Fehler zu Fehler
sie schläft in den Niederlagen

Dass sie unnötig ist
lernt jedes Kind in der Schule
dass das Volk sie nicht will
hat das Volk sich endlich gemerkt

Dass sie nicht siegen kann
ist zehnmal genau bewiesen
die es bewiesen haben
schlafen nicht gut

Die an sie glauben
sind manchmal müde von Zweifeln
einige die sie hassen
wissen sie kommt.


§


Pederastia como arma

Ao garoto que conhecera no cinema
confessou André Gide
na cama ou pela manhã
depois de uma longa noite de sexo:

Você pode dizer aos seus amigos
que você dormiu com um homem famoso
com um escritor
Meu nome é François Mauriac


:


Päderastie als Waffe

Den Knaben die er im Kino getroffen hatte,
gestand André Gide
im Bett, oder am Morgen
nach einer durchliebten Nacht:

Du kannst deinen Freunden sagen,
du hast mit einem berühmten Mann geschlafen,
mit einem Schriftsteller.
Mein Name ist François Mauriac.


§


Limite do desespero


Eu tenho tanto amor por você
que já nem sei mais
se tenho por você tanto amor
ou se tenho mesmo é medo

se tenho mesmo é medo de ver
o que sem você
sobraria de minha vida
ainda em vida

Para que ainda me lavar
para que desejar a saúde
para que ter curiosidades
para que escrever

para que ainda querer ajudar
para que da corrente de mentiras
e horrores ainda irradiar a verdade
sem você

Talvez sim porque você existe
e outros seres ainda
como você haverá
e isso tudo também sem mim


:


Grenze der Verzweiflung

Ich habe Dich so lieb
daß ich nicht mehr weiß
ob ich Dich so lieb habe
oder ob ich mich fürchte

ob ich mich fürchte zu sehen
was ohne Dich
von meinem Leben
noch am Leben bliebe

Wozu mich noch waschen
wozu noch gesund werden wollen
wozu noch neugierig sein
wozu noch schreiben

wozu noch helfen wollen
wozu aus den Strähnen von Lügen
und Greueln noch Wahrheit ausstrählen
ohne Dich

Vielleicht doch weil es Dich gibt
und weil es noch Menschen
wie Du geben wird
und das auch ohne mich


§


Naturalização

Mãos brancas
cabelos ruivos
olhos azuis

Pedras brancas
sangue ruivo
lábios azuis

Ossos brancos
areia ruiva
céu azul

:

Einbürgerung

Weisse Hände
rotes Haar
blaue Augen

Weisse Steine
rotes Blut
blaue Lippen

Weisse Knochen
roter Sand
blauer Himmel



§


Canta-se

Canta-se
de medo
contra o medo.

Canta-se
de fome
contra a fome.

Canta-se
do tempo
contra o tempo.

Canta-se
do pó
contra o pó.

Canta-se
sobre os nomes
a fazer dos nomes o inominável.


:


Einer singt

Einer singt
aus Angst
gegen Angst


Einer singt
aus Not
gegen Not

Einer singt
aus der Zeit
gegen die Zeit

Einer singt
aus dem Staub
gegen die Staub

Einer singt
von den Namen
die Namen namenlos machen



Nota: A palavra alemã Not seria o equivalente a necessidade ou emergência, mas usei fome para manter a concisão.



§


Conflitos entre únicos herdeiros

Meu Marx arrancará as barbas
do teu Marx

Meu Engels quebrará os dentes
do teu Engels

Meu Lênin partirá os ossos
do teu Lênin

Nosso Stálin fuzilará a nuca
do vosso Stálin

Nosso Trótski rachará o crânio
do vosso Trótski

Nosso Mao afogará no Iansequião
vosso Mao

para que ele saia do caminho
da vitória


:


Konflikte zwischen Alleinerben

Mein Marx wird deinem Marx
den Bart ausreißen

Mein Engels wird deinem Engels
die Zähne einschlagen

Mein Lenin wird deinem Lenin
alle Knochen zerbrechen

Unser Stalin wird eurem Stalin
den Genickschuss geben

Unser Trotzki wird eurem Trotzki
den Schädel spalten

Unser Mao wird euren Mao
im Jangtse ertränken

damit er dem Sieg
nicht mehr im Wege steht



§

As mentiras de pernas curtas

As
pernas
das
grandes
mentiras
não
são
sempre
tão
curtas

Mais
curtas
são
mesmo
as
vidas
dos
que
nelas
creram


:


Die Lüge von den kurzen Beinen

Die
Beine
der
grösseren
Lügen
sind
gar
nicht
immer
so
kurz

Kürzer
ist
oft
das
Leben
derer
die
an
sie
glaubten



§


Falta de humor

Os moleques
jogam
de brincadeira
pedras
nos sapos

Os sapos
morrem
de verdade

:

Humorlos

Die Jungen
werfen
zum Spass
mit Steinen
nach Fröschen

Die Frösche
sterben
im Ernst


§


O que é

É louco
diz a razão
É o que é
diz o amor

É desastroso
diz o cálculo
É só dor
diz o medo
É desesperado
diz a inteligência
É o que é
diz o amor

É ridículo
diz o orgulho
É inconsequente
diz o cuidado
É impossível
diz a experiência
É o que é
diz o amor

:


O poema, lido pelo autor.


Was es ist

Es ist Unsinn
sagt die Vernunft
Es ist was es ist
sagt die Liebe

Es ist Unglück
sagt die Berechnung
Es ist nichts als Schmerz
sagt die Angst
Es ist aussichtslos
sagt die Einsicht
Es ist was es ist
sagt die Liebe

Es ist lächerlich
sagt der Stolz
Es ist leichtsinnig
sagt die Vorsicht
Es ist unmöglich
sagt die Erfahrung
Es ist was es ist
sagt die Liebe



Nota: Tomei a liberdade na escolha de usar adjetivos em vez de substantivos, porque me parece muito mais próximo do que falaríamos em português. Quis também buscar soluções diferentes das de tradutores anteriores. Escolhi "desastroso" para "Unglück", pois a palavra traz, em um dicionário, o significado de "infelicidade", mas, na linguagem coloquial alemã,"Unglück" é muito usado no sentido de "Unfall" e "Katastrophe", como em acidentes de automóvel.


§




Erich Fried foi um poeta austríaco, nascido em Viena a 6 de maio de 1921. É um dos mais respeitados tradutores de Shakespeare para a língua alemã, conhecido por sua poesia política e sem dúvida o poeta lírico mais popular da língua no pós-guerra.

Cresceu na capital austríaca, no seio de sua família judia. Em 1938, após a anexação da Áustria pelo Terceiro Reich, seu pai morre depois de um "interrogatório" na sede da Gestapo. O poeta decide emigrar, passando pela Bélgica e estabelecendo-se em Londres, onde viveria vários anos. Durante a Guerra, funda na capital inglesa um grupo de auxílio à emigração de judeus da Áustria, conseguindo, entre tantos outros, salvar a vida de sua mãe. Com 23 anos, em 1944, publica seu primeiro livro, com poemas de resistência ao regime fascista, intitulado Deutschland, ao qual se seguiria outro, dedicado desta vez aos crimes de seu país, intitulado Österreich (1945). Em 1962, retornou a Viena, e no ano seguinte torna-se membro do influente Grupo 47, que viria a marcar o início da carreira de alguns dos mais importantes poetas e romancistas germânicos do pós-guerra com seu prêmio, concedido a Günter Eich, Heinrich Böll, Ilse Aichinger, Ingeborg Bachmann, Adriaan Morriën, Martin Walser, Günter Grass, Johannes Bobrowski, Peter Bichsel e Jürgen Becker.

Em 1977, Erich Fried torna-se professor da Universidade de Giessen, mas logo vê-se envolto em tumulto e críticas por suas declarações sobre a conjuntura política alemã, sendo até mesmo processado após um artigo em que chamava a morte do anarquista Georg von Rauch (1947 - 1971), em um confronto com a polícia em Berlim, de assassinato.

Após anos de escrita política, Erich Fried publica a coletânea de poesia amorosa Liebesgedichte (1979), que se tornaria a mais popular coletânea de poemas do pós-guerra. Mesmo em casas alemãs onde nenhum outro livro de poesia pode ser encontrado nas estantes, é possível encontrar com frequência dois livros: o Buch der Lieder, de Heinrich Heine, e Liebesgedichte, de Erich Fried. A este, se seguiria outro livro de poesía lírica amorosa, chamado Es ist was es ist (1983), com poemas que seriam musicados e se tornariam também bastante conhecidos. Erich Fried morreu em Baden-Baden, a 22 de novembro de 1988, em decorrência de um câncer.

Para um leitor brasileiro, a poesia de Erich Fried soará familiar e poderá ligar-se à de modernistas como Manuel Bandeira (1886 - 1968) e Oswald de Andrade (1890 - 1954). No entanto, com a exceção de certos poemas esparsos de Gottfried Benn (1886 - 1956), especialmente em Morgue (1912), poemas escritos por Bertolt Brecht (1898 - 1956) no seu exílio em Los Angeles durante a Guerra, assim como nos dadaístas (que permaneceram marginais ao cânone) Hans Arp (1886 - 1966) e Kurt Schwitters (1887 - 1948), apenas no Pós-Guerra o uso do coloquial e de certo realismo prosaico se tornariam mais praticados na língua alemã, com poetas como Günter Eich (1907 - 1972), Ernst Jandl (1925 - 2000) ou H.C. Artmann (1921 - 2000). Outros poemas lembrarão a poética esparsa da poesia concreta e neoconcreta.

Traduzi alguns destes poemas há muito tempo, por prazer. Esta postagem não tem a ambição de introduzir um poeta que traga novas técnicas à poesia brasileira contemporânea, mas a de apresentar a um público brasileiro um dos poetas mais amados da língua alemã, com textos cheios de humor e de uma sensibilidade lírica extremamente delicada. Um poeta que esteve fincado em seu tempo e, mais de duas décadas depois de sua morte, ainda é cantado... literalmente cantado. Que ambição maior pode ter um poeta?



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sábado, 30 de julho de 2011

Uma das performances mais sinceras da qual a História da Humanidade possui um registro.

Alguém diga às sereias da catástrofe, por favor, que enquanto uma pessoa específica couber e de repente não mais couber nos braços de outra pessoa que quer apenas a especificidade daquele corpo daquele cheiro, haverá poesia lírica. Dedicada a todos os que não têm medo de, como dizem os americanos em tom de sarro, wear their hearts on their sleeves. É mesmo uma sensação de incredulidade, querida Nina, what a shame to have to write a song like that!

"I do not believe the conditions that produce a situation that demanded a song like that!"
- Nina Simone.



Nina Simone canta "Feelings", de Loulou Gasté/Morris Albert

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terça-feira, 26 de julho de 2011

"O solteiro mais cobiçado do mundo"





O solteiro mais cobiçado do mundo


Era um jovem com o mais promissor
dos futuros. Nascido em um império,
dele herdeiro. Cresceu entre duas
capitais do que chamamos de "alta
cultura", com esta naturalidade nossa
de quem salta cadáveres por pressa,
cidades-clímax, feitas de sonhos
de proporções magníficas, ou, talvez,
praticamente maníacas. Gerado
no útero da mulher, dizia-se,
mais linda do mundo, o pai,
alega-se no mesmo tom superlativo,
o todo-poderoso dentre os homens
sobre a Terra conhecida. Este menino
e logo rapaz, com futuro do qual
se esperava nada menos que o gigante
e o mamute, tão promitente, era filho
de deuses, nada menos que organismo
divinizável. Em suas veias
desaguavam o Tibre e o Nilo,
em suas glândulas se agitava
o Mediterrâneo. Quem
duvidaria que seus genes
eram estopa e estofo para Homeros,
Virgílios? O que poderia impedi-lo
de tornar-se maior que Alexandre,
o Grande? O que deteria o destino
ainda pubescente deste futuro
macho-alfa supremo do planeta?
Não se sabe se ele herdou os traços
afrodisíacos da mãe (que cria,
porém, ser encarnação de Ísis), se
herdou o jeito de Marte do pai (que
por sua vez cria encarnar Roma). Isso
tudo foi há muito tempo. Cesárion,
filho de Caio Júlio César
e Cleópatra Diva Filopátor,
tem 17 anos, é uma fonte
da qual jorram testosterona
e sonhos, em suas coxas
habita toda uma dinastia.
Mas Cesárion, dezessete
anos de idade, um dia (há não
tanto tempo) o feto mais
promissor do futuro,
será morto hoje
por ordens de Otaviano,
seu irmão adotivo,
o futuro Augusto.
Talvez fruto
e exemplo da velha batalha
entre ornamento e função,
limite fisiológico de tudo
o que é idealizado,
sabemos que coroa
alguma jamais
protegeu
qualquer pescoço
e cidadão ou meteco,
rei ou plebeu,
alguém entre vocês
ainda tem dúvidas
sobre quais as relações
entre promessa e futuro?



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domingo, 24 de julho de 2011

A Bénédicte de Laura Erber e seu diálogo com Péret

Laura Erber

A poeta carioca Laura Erber (n. 1979) lançou há pouco um livro virtual pela Editora da Casa, intitulado Bénédicte vê o mar. A publicação virtual traz uma pequena apresentação da autora, e uma orelha assinada por Angélica Freitas. É a publicação mais recente da poeta, também artista plástica, desde seu lançamento duplo em 2008, quando a mesma Editora da Casa lançou Vazados & Molambos (Florianópolis: Editora da Casa, 2008), e também veio a lume no Brasil a edição bilíngue português/inglês de Os corpos e os dias (São Paulo: Editora de Cultura, 2008), originalmente lançado na Alemanha em 2006, com tradução de Timo Berger para o alemão. Escrevi sobre os dois livros aqui: http://ricardo-domeneck.blogspot.com/2009/03/dois-livros-de-laura-erber.html

Este Bénédicte vê o mar foi composto ao lado de vários desenhos de Laura Erber diretamente no iPad, formando um trabalho que conjuga o gráfico e o textual. O título é um jogo sonoro com o nome da poeta portuguesa de origem belga Bénédicte Houart, a quem o trabalho é dedicado. Não apenas os poemas como os próprios desenhos parecem dialogar com o trabalho tão simples e direto de Houart.

Esta Bénédicte de Erber se move dentro da consciência do que não parece ser biografável, mas é, no entanto, biodegradável, como ela escreve num dos poemas. Trata-se de uma poesia que aceita a pobreza dos nossos recursos, e poderá desagradar os que buscam o grandioso indizível. Esta personagem que vive no porão de uma marmoraria me fez, em alguns momentos, pensar em "Nevers", a personagem francesa do filme Hiroshima Mon Amour (1959), escrito por Marguerite Duras e dirigido por Alain Resnais, com sua passagem pelo porão da casa, nos dias em que ela foi "jovem e louca em Nevers, louca de amor". Não sei o que levou a Bénédicte de Erber ao porão, mas cedo ou tarde todos nós passamos por ele.

Convido vocês a lerem o que ela escreve dos fundos da marmoraria, visitando a página da Editora da Casa:




Além do livro Bénédicte vê o mar, queria mostrar a vocês a bela tradução que Erber fez de um poema de Benjamin Péret, postada já há alguns dias na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co.:


OS MORTOS E SUAS CRIANÇAS
Benjamin Péret, do livro Le Grand Jeu, 1928

Se eu fosse alguma coisa
não alguém
diria aos filhos de Édouard
providenciem
e se eles não providenciassem
eu iria para a floresta dos reis magos
sem galochas e sem ceroulas
como um eremita
e haveria certamente um grande animal
sem dentes
com plumas
e redondo como um vitelo
que viria uma noite devorar minhas orelhas
Então deus me diria
você é um santo entre os santos
pegue este automóvel
O automóvel seria sensacional
oito cilindros e dois motores
e no centro uma bananeira
que camuflaria Adão e Eva
fazendo

mas isso será objeto de outro poema

(tradução de Laura Erber)

§

O que não mostramos por lá, no entanto, e que tomo a liberdade de mostrar aqui, é o poema que Erber desentranhou do poema de Péret, intitulado "Velho oeste":



VELHO OESTE
Laura Erber

se eu fosse um outdoor
não alguém
diria aos netos de Édouard
esqueçam
e se eles não esquecessem
eu pegaria um avião para a Amazônia peruana
sem galochas e sem etnógrafos-linguistas
como um eremita
e haveria certamente
um bando de crianças
sem dentes
com plumas
revirando os cabelos
de suas mães
trôpegas
redondas
como um aniversário de morte
e viriam de noite
me pedir dinheiro
e remédios para o piriri
então deus adormeceria
sem dizer
“pegue este automóvel”
e o automóvel teria sido
híbrido e o couro escarlate
e de um lado e do outro da estrada
bananeiras camuflariam
o espetáculo surpreendente
da copulação dos zumbis



Encerro com uma entrevista da poeta e artista plástica, que passou uma temporada em Copenhague, onde pesquisou e escreveu sobre o trabalho do cineasta Carl Theodor Dreyer (1889 – 1968). Concedida ao Arquivo Dreyer, ela discute sua pesquisa:





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sexta-feira, 22 de julho de 2011

Uma canção de Ann Peebles e um poema de Angélica Freitas

Manhã de chuva em Berlim. Difícil não acordar com vontade de cantarolar a clássica de Ann Peebles, "I can´t stand the rain" (1973).





Tenho pensando num poema da minha querida Angélica Freitas nestes últimos dias, chamado "O livro rosa do coração dos trouxas", uma série de 12 textos que ela publicou no primeiro número impresso da Modo de Usar & Co.. Mais especificamente no primeiro poema da série, com sua visão sobre o fim de relacionamentos. Será possível tornar-se realmente amigo de um ex? Depois de compartilhar a vida de uma maneira tão intensa, passar a compartilhá-la de outra maneira? Talvez leve tempo. E como em quase tudo o que é difícil, the only way out is through. Querida Angélica, estou tentando seguir seu conselho de pensar no passado só se me der prazer. Mas é difícil, quando o passado é uma bolha de prazer encapsulado por um inchaço dolorido e doloroso.



Primeiro texto da série O livro rosa do coração dos trouxas
Angélica Freitas


eu quando corto relações
corto relações.
não tem essa de
briga de torcida
todos os
sábados.
é a extinção do estádio.
vejo as forças
que atuam; a tesoura,
o papel,
a vontade de cortar.
tudo é provocação?
então embrulha
tua taquicardia
num sorvete de amêndoas,
reza que derreta.
quando lembro do
corte revivo a
ferida.
melhor não.
o corte é definitivo,
a dor retorna em forma
de milão madri
ou liverpool
quando convocada.
ricardo
lembra do teu passado
só se te dá
prazer.
how elizabeth
bennet of you.
mas tirar
deleite da perda,
convencer fulana
de que minha fraqueza
não oblitera?,
exigir um rio de janeiro
com gatos e livros,
legítima esposa?,
fico sonhando com
a viagem a um país onde a
língua seja vértebra
sobre vértebra,
palavras com j
antes do l,
e cacos gregos
que me devolvam
ao aluguel da casa.


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quarta-feira, 20 de julho de 2011

Mais uma noite na companhia de amigos-heróis


Organizar uma festa todas as quartas-feiras é uma trabalheira danada. Em geral, somos apenas um grupo de amigos que se encontra para tocar suas canções favoritas. Mas nestes mais de 6 anos, primeiro organizando a Berlin Hilton, agora SHADE inc, tive algumas noites de quarta-feira e madrugadas de quinta-feira realmente memoráveis. Algumas memórias se perderam depois de tantos rabos-de-galo, como costumávamos dizer na Vila Madalena no início do século em botecos, quando me encontrava com amigos como o então jovem poeta Érico Nogueira, os então jovens cineastas Pablo Gonçalo e Pablo Martins, os jovens atores, os futuros escritores e editores de moda, meus amigos infinitamente queridos dos tempos paulistanos, se espalhando pelos botecos de Pinheiros para as biritas depois das aulas na Universidade de São Paulo. Tempos lendários.

Aqui em Berlim agora, me espalho pelos botecos de Prenzlauer Berg e Kreuzberg, com os amigos e já não tão jovens videoartistas, não tão jovens curadores e escritores para os Schnaps nossos de cada dia. Com alguns deles, organizo a festa às quartas-feiras, por onde já passaram alguns heróis meus, hoje amigos. Vou evitar o name-dropping, quase sempre deselegante.

Mas é que hoje será outra noite especial no clube NBI (Neue Berliner Initiative), onde organizamos a festa há 6 anos. De passagem pela cidade, teremos um DJ set com Fischerspooner, com a presença de Casey Spooner e sua companheira Lauren Flax atrás da mesa dos DJs. Conheci Casey no ano passado, quando ele passou por Berlim e veio à nossa festinha de quarta-feira. Decidimos que faríamos algo quando ele voltasse, o que só aconteceu agora. Lauren Flax discotecou na festa no ano passado. Quando comecei a discotecar em Berlim por volta de 2003, ainda imperava o electroclash, que teve dois berços: Nova Iorque e Berlim. O duo Fischerspooner (Warren Fischer e Casey Spooner) havia acabado de lançar seu álbum intitulado simplesmente #1, após lançar singles de sucesso como a canção "Emerge", um dos hinos daquele momento. Suei muito com esta canção em clubes berlinenses como o lendário Black Girls Coalition.

No vídeo abaixo vemos a gravação do vídeo para "Emerge", com imagens de sessões de fotos com Casey Spooner e o fotógrafo Terry Richardson. Quando escreverem a história do início deste século maluco, imagino que será difícil não mencionar personalidades como a de Casey Spooner e Terry Richardson. Vale mencionar que eu tinha uma crush abismática no dançarino do grupo, o ator Jeremiah Clancy, que aparece no vídeo com olho roxo e o nariz sangrando. Há dez anos... uma época de excessos auto-indulgentes. Me diverti muito.





Toca ainda hoje à noite o querido Joel Gibb, vocalista e letrista (em outras palavras, o poeta lírico) da banda canadense The Hidden Cameras, que mora em Berlim. Já escrevi sobre ele aqui, e traduzi uma de suas letras. O vídeo abaixo é seu mais recente.





Encerra a noite meu amigo e DJ em ascensão na cena noturna berlinense, Marius Funk. Abaixo, seu mix mais recente.




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segunda-feira, 18 de julho de 2011

Da série das Brigas Cinematográficas Favoritas: a de "Doubt" (2008)



As personagens de Meryl Streep e Philip Seymour Hoffman em Doubt (2008),
dirigido por John Patrick Shanley.

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sábado, 16 de julho de 2011

Leitura de poesia com músicos hoje à noite em Berlim

Hoje à noite farei uma leitura ao lado dos poetas Daniela Seel, Gerhard Falkner, Oya Erdogan, Gabriele Guenther e Christian Steyer, acompanhados dos músicos Els Vandeweyer, Andrea Sanz-Vela, Helen Gillet, Antonio Borghini, Matthias Schubert, Florian Bergmann, Matthias Bauer, Johannes Lauer, Sara Ercoli, Liz Albee, Lothar Fiedler, Antonis Anissegos, Almut Kühne e Georg Graewe, numa velha fábrica no bairro berlinense chamado Wedding, hoje transformada em espaço alternativo para ocupações e intervenções de artistas.

Farei duas leituras. Na primeira, improvisarei ao lado da musicista espanhola Andrea Sanz-Vela, que toca viola de arco. Na segunda, ao lado do videoartista grego Andreas Karaoulanis e do clarinetista alemão Florian Bergmann.

O projeto é uma iniciativa da cantora Almut Kuehne, que interpretará canções baseadas em textos da poeta alemã Anja Utler.

Estou também contente de participar ao lado da querida Daniela Seel, uma das forças motrizes da cena poética berlinense, editora da mais prestigiosa editora independente da cidade, a Kookbooks, e do senhor Gerhard Falkner, nascido em 1951 e um dos poetas mais respeitados de sua geração.

Vamos ver no que dá, acho que será a primeira vez que lerei com acompanhamento musical.





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terça-feira, 12 de julho de 2011

Compreensão é uma queda sem amortecimento no contexto próprio

Uma das fotos mais famosas de Nan Goldin,
do livro The Ballad of Sexual Dependency


Quantos poemas e canções, lidos e escutadas por anos, aqueles que pensamos compreender, entender, à luz de uma nova situação parecem entrar de forma tão natural sob a nossa pele, a ponto de acreditarmos que pela primeira vez os compreendemos de verdade? Como se nunca antes os houvéssemos lido, escutado.

Alguns poemas e canções têm voltado à minha mente com um frescor estranhíssimo nos últimos tempos, como se eu agora, com 34 anos, vários pés-na-bunda, inúmeras ascenções de alegria e quedas em alergia, estivesse um tiquinho mais apto a compreendê-los. Um tiquinho só mais apto.

Há épocas em que certas textos, certas fotografias, cenas de filmes, começam a nos seguir na rua, uma companhia estranha, obsessiva. Vou compartilhar com vocês três companhias obsessivas dos últimos tempos, que eu sinto estar começando a compreender melhor, não com qualquer noção de inteligência besta, apenas uma sensação de que eles estão começando a me pertencer de uma maneira que antes não era possível. A primeira é a foto de Nan Goldin que abre esta postagem, uma de suas mais famosas, do livro The Ballad of Sexual Dependency (1986). Outra companhia é um poema famoso do Drummond.


Consolo na Praia
Carlos Drummond de Andrade

Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.



O poema foi publicado em A Rosa do Povo, de 1945. À data de sua publicação, Drummond tinha 43 anos. Há novos ou outros sentidos que só compreenderei quando me aproximar desta idade? Ou os amores perdidos até esta data dos meus 34 anos já começam a me mostrar que consolo é este? Há perdas e consolos pela frente. Quantos poemas e canções ainda têm as portas vedadas para minha compreensão porque eu preciso perder mais um ou dois amores, um ou dois amigos, reconhecer uma ou outra impossibilidade?

Que susto hoje ao escutar pela milésima vez uma canção favorita, a "Running up that hill" da (suprema) Kate Bush, e sentir um halo de compreensão maior se abrir sobre as palavras cantadas, como se eu a estivesse escutando pela primeira vez! Aquelas palavras memorizadas ao longo de tantos anos se entregando de maneira nova, aquele início:

It doesn't hurt me
Do you wanna feel how it feels?
Do you wanna know, know that it doesn't hurt me?
Do you wanna hear about the deal I'm making?
You
It's you and me
And if I only could
I'd make a deal with God
And I'd get him to swap our places
I´d be running up that road
Be running up that hill
Be running up that building
If I only could








Às vezes me parece muito triste aquela ideia de Wittgenstein, nossa prisão dentro do eu pelo fato "do mundo ser sempre o meu mundo". Mas Wittgenstein jamais a chamaria de prisão, isso é patetice minha, pois Wittgenstein não acreditava na possibilidade de estar do lado de fora - e a aceitava.

E nesta luz, entre Wittgenstein dizendo que "o mundo é sempre meu mundo", e Kate Bush dizendo "Come on, angel / Come on, darling / Let's exchange the experience", será que há muita diferença? Tenho amigos que vão ficar bravos mais uma vez por eu misturar um filósofo com uma cantora de música pop, mas eu sou mesmo caso perdido neste aspecto.

Não, nós jamais chegamos a convencer Deus a trocar nossos lugares. Em algum momento, talvez, alguém chegue com as próprias pernas a perda ou alegria parecida, e só então uma compreensão mútua?

E então dizemos ao Outro, usando vocativos como angel e darling, dizemos estas palavras patéticas:


You don't wanna hurt me
But see how deep the bullet lies



A bala, como sempre, está funda demais em nosso couro para que o outro veja ou sinta.

"O inferno são os outros"? Não. Eu acho que prefiro pensar que o paraíso sou eu quando estou com os outros... ou com um outro bem específico, com nome e endereço.

Fique aí no Paraíso, você.

Quem sabe eu possa visitá-lo.

Ou, como Frank O´Hara terminou aquele poema,

of light we can never have enough
but how would we find it
unless the darkness urged us on and into it
I am dark
except when now and then it all comes clear
and I can see myself
as others luckily sometimes see me
in a good light



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segunda-feira, 11 de julho de 2011

Traduzido por Aníbal Cristobo e uma conversa com ele sobre poesia

Aníbal Cristobo


Ao longo da última semana, o poeta argentino Aníbal Cristobo apresentou traduções de seis poemas meus em seu blogue, Kriller 71, parte de sua série de postagens semanais de traduções, nas quais já traduziu ao longo de uma semana inteira poemas de brasileiros como Marília Garcia, Carlito Azevedo e Arnaldo Antunes; portugueses como Manuel António Pina; norte-americanos como Kenneth Koch e Mary Jo Bang; ou catalães como Gabriel Ferrater, etc.

Aníbal, como vocês devem saber, nasceu em Buenos Aires, em 1971. Viveu alguns anos no Rio de Janeiro, onde publicou seu primeiro livro Teste da Iguana (1997), ao qual se seguiram Jet-lag (2002) e Krill (2002), reunidos no volume Miniaturas Kinéticas (2005) da coleção de poesia contemporânea Ás de Colete, da Cosac Naify, a mesma pela qual saíram meus dois últimos livros, a cadela sem Logos (2007) e Sons: Arranjo: Garganta (2009). Aníbal vive hoje em Barcelona.



Aníbal Cristobo lê três de seus poemas


Vocês podem ler todas estas traduções feitas por Aníbal seguindo o link abaixo:



Ele também conduziu uma pequena entrevista comigo, traduzida e apresentada ontem. Reproduzo-a abaixo com minhas respostas em português.


Conversa entre Aníbal Cristobo e Ricardo Domeneck, julho de 2011.


AC: Cómo empezaste a escribir poesía?

RD: Respondendo de forma bem prática, foi quando abri os manuais escolares de literatura que encontrei na minha casa (minha mãe é professora) e li os primeiros poemas, misturando tudo, o "Pré-história" de Murilo Mendes e o "Pneumotórax" do Bandeira, aquele soco sarcástico do "Acrobata da dor" de Cruz e Sousa e as "Ideias íntimas" do Augusto dos Anjos com os poemas satíricos do Gregório de Matos. Durante muito tempo o único acesso que tinha à poesia era o de manuais escolares. Eu morava numa cidade pequena, não sabia que era possível comprar livros só de poemas, então eu caçava manuais escolares, lembro-me de como ficava feliz quando eles iam além do Pré-Modernismo ou mesmo do primeiro Modernismo e traziam poemas de Drummond, Vinícius de Moraes, Cecília Meireles... alguns tinham exemplos da Poesia Concreta e das outras vanguardas brasileiras da década de 50, ou mesmo letras de canções de Caetano Veloso e Chico Buarque. Quando eu encontrava manuais mais completos assim eu ficava em estado de alegria absoluta, especialmente se traziam poemas que eu não conhecia. Antes disso tudo, creio que minha primeira exposição à poesia e à ideia do que era um poeta foi com Vinícius de Moraes e os seus sonetos famosos.

É uma coisa muito louca, mas eu tenho uma memória muito antiga também, criança ainda (eu tinha dez anos), do anúncio do Plantão do Jornal da Globo sobre a morte de Carlos Drummond de Andrade em 1987. É estranho, mas eu me lembro claramente de estar assistindo algo na TV e a programação sendo interrompida para anunciar a morte dele. Eu me lembrava do anúncio da morte de sua filha uma semana antes e me lembro de como aquilo me marcou, minha mãe correndo da cozinha para ouvir a notícia (como ela sempre fazia quando vinha aquela vinheta do Plantão do Jornal da Globo) e dizendo algo como: "Coitado, morreu de tristeza". É uma memória que sempre me acompanhou, não sei o porquê. Eu tinha dez anos, nem sei se já entendia o que era um poeta. Mas o fato dele morrer alguns dias depois da filha, com minha mãe dizendo que ele morrera de tristeza, aquilo ficou na minha cabeça. A situação acabou aparecendo num poema do meu primeiro livro mais tarde.

O primeiro livro de poesia que eu comprei, juntando dinheiro, foi o Eu do Augusto dos Anjos. Lembro de mais tarde ter comprado o Farewell (1996) do Drummond quando saiu, e os volumes com os heterônimos do Pessoa. Comecei a escrever sob o impacto destas descobertas, ainda adolescente, e escrevia pequenos contos também.

AC: Viendo tus poemas nuevos, tengo la sensación de que hay en ellos una mayor narratividad, o una narratividad menos fragmentada que en los libros anteriores. Aún cuando los textos siguen estando permeados por ese espíritu babélico, esa posibilidad de que diversas lenguas, citas y registros puedan irrumpir en ellos, tengo la sensación de que hay una ordenación del caos, desde lo íntimo hacia lo universal, que aparece atravesada por la ironía y la auto-ironía. Te parece que hay algo de cierto en esto?


RD: É sempre tão difícil falar sobre o próprio trabalho sem cair em certas armadilhas, pecados que já cometi demais, mas vamos tentar: houve sim uma mudança, especialmente para quem lê os poemas do meu último livro publicado, Sons: Arranjo: Garganta, e os poemas mais recentes que venho publicando no meu blogue. Correndo o risco de ser auto-explicativo (ou algo pior), eu tentaria falar sobre a mudança da seguinte maneira: especialmente nos poemas do último livro, eu estava muito obcecado com a tentativa de seguir o que eu chamo às vezes de "poética das implicações". Eu não queria que os poemas dissessem algo, meu interesse estava justamente em dar um curto-circuito neste dizer, criando textos que tivessem significado a partir das implicações da maneira como foram compostos. Eu cheguei a trabalhar com tautologias, um fenômeno da linguagem que me fascina, o que para muitos deve parecer uma loucura. Houve quem mencionasse como era impossível citar versos do livro, pois sozinhos eles realmente não faziam o menor sentido. Eu queria mesmo isso, que apenas o conjunto dos versos justapostos funcionasse. Eu acho também que nos meus dois últimos livros, que formam uma especie de álbum duplo pois foram escritos de forma paralela ainda que publicados com 2 anos de intervalo, meu impulso crítico misturava-se completamente à poesia. Talvez por isso eles pareçam frios a algumas pessoas. Às vezes eu acho que, ao passar a escrever crítica propriamente dita na Modo de Usar & Co., eu tenha talvez me libertado da sensação de necessidade de fazer isso nos poemas.

Nos poemas mais recentes, que estou reunindo para o meu próximo livro, minhas vontades mudaram. Eu venho pensando muito em um paradigma ensinado por Pound, quando ele sugere como parâmetro:

"...nada – nada que você não possa, em alguma circunstância, sob a tensão de alguma emoção, realmente dizer."

O que me levou a uma poesia, como você disse, com maior narratividade, talvez, ou menos fragmentada. Mas para dizer de forma bem clara e íntima, eu tenho me perguntado muito: por que eu comecei a escrever poesia? Não foi porque eu li poemas que me emocionaram? Eu acho que apenas voltei a estes poetas. Eu não quero mais correr o risco de escrever poesia apenas para poetas. Eu não quero viver no mito da poesia "inútil". Eu tenho pensado nas funções milenares que os poetas sempre tiveram em suas comunidades. Eu queria muito poder exercê-las, sem qualquer concessão ou facilitação. Pound também falou sobre o bom poema, aquele que entusiasma o especialista e emociona o leitor comum. Hoje em dia, isso me parece um desafio magnífico e eu acredito firmemente que a poesia só poderá voltar a ter seu papel central na cultura se aceitarmos este desafio.


AC: Pero esa definición no dejaría de lado a muchos poetas que te gustan, que leés, traducís, divulgás? Quiero decir, no sería quizás oportuno analizar que es el "lector común"? Un lector de poesía, me parece, ya no es alguien muy "común" -al menos en términos estadísticos. No pensás que otro camino podría ser trazado también desde la educación, formando a las personas en la idea de que la poesía es una actividad más, una manifestación cultural igual a otras que sí son incluidas en la educación, como la música o el dibujo -desarrollando una percepción poética en las personas desde la infancia? Y, finalmente, esa identificación de la poesía con aquello que puede ser dicho, de algún modo, no haría que la poesía se alineara con los "discursos de las certezas", perdiendo buena parte de su capacidad de cuestionar nuestra percepción del lenguaje y de lo real?


RD: Talvez minha última resposta tenha dado a sensação de uma oposição, como se uma coisa excluísse a outra. Vou tentar elaborar um pouco melhor. De qualquer forma, isso é realmente uma perpepção muito pessoal, a partir do meu próprio trabalho. Sabe, eu penso sempre nos trovadores medievais como parâmetro. Havia entre eles, como se sabe, o trobar leu, o trobar ric e o trobar clus. Este equilíbrio, a coexistência entre estas práticas e parâmetros trazia saúde à tradição. Talvez o problema esteja na busca de uma definição unitária para a poesia, algo que sempre existiu no pensamento estético, mas alcançou uma certa obsessão a partir dos românticos. Os modernistas também tinham esta ambição de encontrar uma teoria ou parâmetro que unificasse toda e qualquer experiência poética. Isso teve consequências negativas, eu creio. Gosto muito, por exemplo, da discussão do crítico italiano Alfonso Berardinelli sobre o trabalho de Hugo Friedrich e a tentativa de estabelecer um parâmetro único de compreensão para a poesia moderna, que acabou por excluir tantos poetas que hoje são muito mais lidos que alguns dos chamados Altos Modernistas. Eu acredito que há uma certa tendência hoje em dia a valorizar apenas a poesia da tradição do trobar clus. Uma época em que todos queiram ser poetas do trobar clus não pode encontrar um público amplo. É claro que havia poetas que se especializavam em um ou outro, e isso ainda é completamente legítimo. Mas havia a variedade de práticas para as distintas funções e possibilidades da poesia. Há obviamente um problema de educação, como você expôs em sua pergunta, mas eu falo aqui mais sobre o que nós poetas podemos fazer. Há sempre que se ter em mente a que público se está dirigindo. Não adianta impor os sonetos religiosos de Gregório de Matos a adolescentes, quando seria muito mais eficaz apresentá-los à poesia satírica do mesmo autor. Trata-se de um exemplo de problema no ensino de poesia nas escolas. Não se trata de facilitar as coisas. Não estou pregando qualquer forma de concessão ou populismo. Eu acredito que hoje, diante da situação em que estamos, não adianta depender demais do que o Governo e seus Ministérios de Cultura e Educação estão fazendo se nós produzirmos tão-somente poesia que consegue interessar apenas a outros poetas e acadêmicos. Você tem razão: não existe um "leitor comum", mas durante todas as eras os poetas cumpriram diversas funções que foram sendo relegadas a outros artistas. Quando eu falo sobre o "dizer", trata-se da negação de que a poesia se resuma exclusivamente à função poética, o que permite que nós por vezes nos percamos demais em joguinhos sígnicos (e não com pouca frequência cínicos). Eu acredito que a função poética não oblitera a função referencial da linguagem ou qualquer outra das funções. A linguagem poética chama a atenção para sua própria estrutura como linguagem, mas nos grandes poetas isso não impede que seus textos ao mesmo tempo cumpram várias outras funções, como emocionar ou educar. Eu não entendo porque isso parece ter se tornado pecado para poetas. Eu entendo o perigo que você menciona, o dos "discursos das certezas", mas o poema que consegue ao mesmo tempo dizer e fazer não precisa se incluir em qualquer discurso das certezas, não precisa ser panfleto. Parece-me muito mais arrogante (e por vezes podendo beirar o charlatanismo) o clichê da poesia que quer dizer o "indizível", por exemplo. Neste aspecto talvez meu problema seja ter lido Wittgenstein demais, eu não consigo deixar de cheirar certo charlatanismo nesta ambição do "indizível", nem consigo crer que isso se enquadre de verdade a poetas que são tão frequentemente sequestrados e abusados para este discurso, seja Mallarmé ou Celan. Veja bem, eu mesmo tenho textos em que nego completamente a noção da poesia que "diz" qualquer coisa, especialmente no meu último livro, em que muitos textos frustram a vontade do leitor de criar o que se poderia chamar de "texto-fantasma", uma paráfrase do poema, que seria seu "significado" imanente ou transcendente. Agora, eu não posso esperar que todos se interessem por esta função analítica do poeta sobre a linguagem. Acabam sendo realmente poemas para especialistas talvez, ou para pessoas interessadas em linguística e história da literatura. E quanto aos leitores que, de forma completamente legítima, vão buscar na poesia consolo por um pé-na-bunda, pelo fim de um relacionamento, pela própria mortalidade e a dos que amam, os que querem simplesmente embebedar-se com palavras, emocionar-se? Se os poetas escritores não cumprem esta função milenar da poesia, os leitores vão buscar isso na poesia cantada, no cinema, em qualquer outra arte. O discurso da inutilidade da poesia é muito complicado, e tem trazido problemas apenas, em minha opinião. Quando eu falo sobre est-É-tica, não estou tentando estabelecer uma moral poética, mas trata-se apenas da crença na historicidade da poesia, de que o poeta pertence a seu tempo, cumpre uma função na sua cultura, na sua comunidade. Meu último livro se chama Sons: Arranjo: Garganta pelo meu interesse em forma, função e contexto. Eu queria apenas ser capaz de cumprir o maior número possível de funções que me foram legadas e herdei dos meus antepassados poetas. Sem uma definição unitária que dê conta de toda e qualquer manifestação poética. Aceitar os limites do dizível parece-me longe de qualquer discurso de certezas. Não sei se me fiz claro ou se compliquei ainda mais a questão.

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domingo, 10 de julho de 2011

Christian Marclay: para quem se interessa pelo trabalho sonoro, de colagem e de apropriação




Christian Marclay nasceu na Califórnia. É um compositor e artista visual trabalhando com as conexões entre barulho, som e música, usando também vídeo e apropriando-se de cenas do cinema. Foi pioneiro no uso de turntables como instrumentos.


Christian Marclay

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quarta-feira, 6 de julho de 2011

Na companhia de Woody Allen




Nas últimas semanas, eu devo ter visto e revisto uma grande parte da filmografia de Woody Allen, com especial predileção pelos filmes feitos entre o fim dos 70 e dos 80. Sempre curti, mas no momento está sendo uma diversão muito proveitosa. Revi os favoritos, como Annie Hall (1977), Manhattan (1979), o bergmaniano Interiors (1978), do qual sempre gostei, seu mais trágico; Hannah and her sisters (1986), maravilhoso; os menores, talvez, mas ainda assim fascinantes, como Another Woman (1988), com a incrível Gena Rowlands, ou September (1987). Mas ainda não havia visto este Stardust Memories (1980), com uma Charlotte Rampling muito jovem, Allen num momento Otto e Mezzo, realmente muito bom. Deixo aqui o vídeo compartilhado no Youtube, onde está dividido em sete partes, mas é possível vê-lo na íntegra. Vale muito.





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terça-feira, 5 de julho de 2011

Uma canção dos irmãos lindíssimos Angus & Julia Stone

Angus & Julia Stone


Um amigo que conheci recentemente me deu de presente uma compilação de canções, com vários artistas que eu não conhecia. Gosto muito de presentes assim, sem mencionar que é uma maneira muito legal de conhecer um pouco mais alguém novo em nossa vida. Uma das canções chama-se "Heart Full of Wine", da dupla de irmãos australianos Angus & Julia Stone. Muito bonita a canção, sem mencionar o fato de que os dois músicos são verdadeiras visões de beleza física. Quis compartilhar.



"Heart Full of Wine", do EP de mesmo nome, lançado em 2007.

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domingo, 3 de julho de 2011

Algumas cicatrizes, a ascese violenta e "A Mula de Deus", de Hilda Hilst

"34 com cicatrizes", de José Leonilson (1957 - 1993)


Na última postagem, citei Hilda Hilst com os versos: "Essa sou eu / Poeta e mula", de um dos poemas mais febris da década de 90, texto que foi publicado pela primeira vez no final de seu romance Estar Tendo. Ter Sido (1997). Eu havia acabado de chegar a São Paulo, tinha 19 anos. Deparei-me com uma resenha sobre o romance, na qual o jornalista reproduzia os versos: "Palha / Trapos / Uma só vez o musgo das fontes / O indizível casqueando o nada // Essa sou eu. // Poeta e mula". Em meio àquela cabralice exagerada, pedregulhosa e ressecuda da poesia da década de 90, eu, que estava já começando a sofrer de anemia emocional por conta de tanto antilirismo, me sobressaltei muito e pensei: "Evoé, um oásis!" Nos próximos dois anos, li tudo o que a mulher escreveu e passei a seguir seus passos, dizendo: com Murilo Mendes e Hilda Hilst, mestres, até o fim da carreira dos meus dias como poeta. Ô mestre de Juiz de Fora, ô mestra de Jaú! Comecei a passar os livros dela para meus amigos, criamos um pequeno culto em torno da mulher. Nós queríamos um matriarcado, Clarice Lispector de um lado, Hilda Hilst do outro. Um dia decidimos que iríamos a Campinas, encontrar a Casa do Sol e conhecê-la. Creio que já contei esta história aqui, mas se você está nesta página é porque você é meu amigo, mesmo que desconhecido, e como meu amigo você deve saber que eu sou meio compulsivo, obsessivo e repetitivo (perdoe). Protelamos por várias semanas. Quando estávamos preparados para a viagem, vem a notícia pela imprensa: Hilda Hilst morta, a 4 de fevereiro de 2004. Naquela tarde, desci a Avenida Brigadeiro Luís Antônio (em São Paulo) a pé, a caminho do Parque do Ibirapuera. Na cabeça, ia compondo o seguinte poema, que mais tarde se tornaria a primeira das "Seis canções óbvias", publicadas no meu livro de estreia, Carta aos anfíbios (2005):


das Seis canções óbvias

1.

Sair da cama, disse,
.....foi simplesmente
.....uma idéia incrível
.....e deliberada
De invernos frutíferos
.....construíram-se
.....muitos infernos na
.....primavera
A cama é um inferno pessoal
.....e intransferível
E a pele vestida à noite
.....desprega-se para acompanhar
.....outra calçada pela manhã
A transferência de corpo pratico-a
.....com diligência
É tudo tão simples, dizem
Hilda Hilst havia medo da morte
.....e morreu
.....assim como o MASP
.....é ao mesmo tempo
.....museu e mirante
Ergue-se o deliberado sobre
.....simples patas


(Carta aos anfíbios, Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2005)


Houve duas mortes de poetas brasileiros que me deixaram realmente de luto: a de Orides Fontela, em 1998, e a de Hilda Hilst, em 2004. Muitas outras me entristeceram muitíssimo, como a de João Cabral, a de Wally Salomão, a de Haroldo de Campos. Mas as mortes de Orides Fontela e Hilda Hilst foram como perdas pessoais, difíceis de explicar, pois eu jamais as conheci, infelizmente.

Deixo vocês abaixo com o poema completo de Hilda Hilst, "Mula de Deus". Desconheço poesia desta natureza mística na poesia principal brasileira, em geral dominada pelos machos agnósticos. Tal misticismo carnoso. É como a cena final da porca em A Obscena Senhora D (1982). Economia de meios será melhor como ato de ascese? Há o momento para o seco e para a pedra, e também o momento para o úmido, para o que incha? Tal força, que é ao mesmo tempo anti-inflamatória e inflamatória, eu creio encontrar em Clarice Lispector e Hilda Hilst, em Lúcio Cardoso e Arthur Bispo do Rosário. Em Murilo Mendes e Jorge de Lima. Na ascese violenta de José Leonilson, como no trabalho que usei para ilustrar esta postagem. A violência da ascese, da secura verdadeira, aquela que João Cabral de Melo Neto deu a conhecer em "Uma Faca Só Lâmina" (1955) e eu por vezes tenho a impressão que poucos seguiram, talvez por preferirem ver a secura como técnica para um estilo, quando ela era tão, tão est-É-tica (perdoe, mais uma vez, minhas obsessões). A ascese de uma pobreza, como a que Carlos Drummond de Andrade nomeava "Nudez". Mesmo os machos agnósticos sabiam que o melhor é "na secura nossa amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita." Orides Fontela a escrever:


...........A um passo
...........do pássaro
...........res
...........piro



Acabei de postar este texto com uma ilustração de José Leonilson e então percebo como é apropriado: "34 com cicatrizes". Amanhã completo 34 anos. Hoje é meu último dia na idade da crucificação. E este blogue só existe, às vezes eu penso, porque eu vivo, usando as palavras de Hilda Hilst, na busca de "ornejos de outras mulas (para) se juntarem aos meus." E então, quem sabe, "Escoiceando os ares, espumando de gozo / Assustando mercado e mercadores", cada um de nós possa dizer: "Alegrou-se de mim o coração".



Mula de Deus
Hilda Hilst

I

Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Alta, dourada, me pensei.
Não esta pardacim, o pelo fosco
Pois há de rir-se de mim O PRECIOSO.

Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Lavei com a língua os cascos
E as feridas. Sanguinolenta e viva
Esta do dorso
A cada dia se abre carmesim.

Se me vires, SENHOR, perdoa ainda.
É raro, em sendo mula, ter a chaga
E ao mesmo tempo
Aparência de limpa partitura
E perfume e frescor de terra arada.

II

Há nojosos olhares sobre mim.
Um rei que passa
E cidadãos do reino, príncipes do efêmero.
Agora é só de dor o flanco trêmulo.
Há nojosos olhares. Rústicos senhores.

Açoites, fardos, vozes, alvoroço.
E há em mim um sentir deleitoso
Um tempo onde fui ave, um outro
Onde fui tenra e haste.

Há alguém que foi luz e escureceu.
E dementado foi humano e cálido.
Há alguém que foi pai. E era meu.

III

Escrituras de pena (diria mais, de pelos)
De infinita tristura, encerrada em si mesma
Quem há de ouvir umas canções de mula?

Até das pedras lhes ouço a desventura.
Até dos porcos lhes ouço o cantochão.
E por que não de ti, poeta-mula?

E ornejos de outras mulas se juntaram aos meus.
Escoiceando os ares, espumando de gozo
Assustando mercado e mercadores

Alegrou-se de mim o coração.

IV

Um dia fui o asno de Apuléius.
Depois fui Lucius, Lucas, fui Roxana.
Fui mãe e meretriz e na Betânia
Toquei o intocado e vi Jeshua.
(Ele tocou-me o ombro aquele Jeshua pálido).

Um tempo fui ninguém: sussurro, hálito.
Alguém passou, diziam? Ninguém, ninguém.

Agora sou escombros de um alguém.
Só caminhada e estio. Carrego fardos

Aves, patos, esses que vão morrer.
Iguais a mim também.

V

Ditoso amor de mula, Te ouvi murmurando
Ó Amoroso! Ditoso amor de mim!
Poder amar a Ti com este corpo nojoso
Este de mim, pulsante de outras vidas
Mas tão triste e batido, tão crespo
De espessura e de feridas.

Ditoso amor de mim! Tão pressuroso
De amar! (E de deitar-se ao pé
De tuas alturas). Corpo acanhado de mula

Este de mim, mas tão festivo e doce
Neste Agora
Porque banhado de ti, ó FORMOSURA.

VI

Tu que me vês
Guarda de mim o olhar.
Guarda-me o flanco.
Há de custar tão pouco
Guardar o nada
E seus resíduos ocos.

Orelhas, ventas
O passo apressado sob o jugo
Casco, subidas
Isso é tudo de mim
Mas é tão pouco...

Tu que me vês
Guarda de mim, apenas
Minha demasiada coitadez.

VII

Que eu morra junto ao rio.
O caudaloso frescor das águas claras
Sobre o pelo e as chagas.

Que eu morra olhando os céus:
Mula que sou, esse impossível
Posso pedir a Deus. E entendendo nada
Como os homens da Terra
Como as mulas de Deus.

VIII

Palha
Trapos
Uma só vez o musgo das fontes
O indizível casqueando o nada

Essa sou eu.

Poeta e mula

(Aunque pueda parecer
Que del poeta es locura
).



(Hilda Hilst, Estar sendo. Ter sido. São Paulo: Nankin, 1997)


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