segunda-feira, 31 de outubro de 2011

"Pequeno estudo sobre os ciúmes" (2007), o poema mais conciso de minha *tosse*

Abaixo, o poema mais conciso que este vosso verborrágico contemporâneo já cometeu, tão apropriado, além de demonstrar que até mesmo eu tenho parcos, ainda que raros, momentos de lucidez.


Ricardo Domeneck, "Pequeno estudo sobre os ciúmes" (2007)

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domingo, 30 de outubro de 2011

Das canções favoritas: "Dear Darkness", de PJ Harvey

Capa do álbum White Chalk (2007)


"Dear Darkness" é uma das canções mais belas e tristes de um dos álbuns mais belos e tristes de Polly Jean Harvey (Dorset, sul da Inglaterra, 1969), intitulado White Chalk (2007). Eu sou admirador declarado da escrita e música da trobairitz inglesa. Conheço poucos capazes de tamanha agressividade em sua tristeza. Ela foi certamente uma influência sobre mim. Mas, se em canções da década de 90 como "Rid of me" ou "Rub till it bleeds", ela esposava uma melancolia raivosa sem muitos paralelos em sua concisão pontiaguda, em várias entrevistas após o lançamento de White Chalk (penso nas implicações de depuração e míngua deste título), PJ Harvey comentou alguns dos infernos pessoais que levaram à escrita de canções como esta "Dear Darkness" ou "The Devil". A simplicidade aqui não é mero estilo, não é o deserto estiloso dos epígonos de Cabral. É o deserto vivido e legítimo do próprio Cabral, como também penso na incisão (mais que concisão) dos textos de Emily Dickinson ou Lorine Niedecker, se pensarmos na língua inglesa, ou em Orides Fontela dentro da poesia brasileira. O texto me pega já em seu título, que se transforma nos primeiros versos: há algo de vulnerabilidade extrema nas palavras "dear darkness", sem mencionar os versos finais, que me parecem uma coisa de tirar o fôlego: "Dear darkness / Now it's your time to look after us / 'Cause we kept you clothed / We kept you in business / When everyone else was having good luck // So now it's your time / Time to pay / To pay me and the one I love / With the worldly goods you've stashed away / With all the things you / Took from us". Pelo menos, tiram o meu. Cito esta canção em um poema do meu próximo livro. Foi inevitável roubar de Polly Jean.






Dear Darkness
Polly Jean Harvey

Dear darkness
Dear darkness
Won't you cover, cover
Me again?


Dear darkness
Dear
I've been your friend
For many years

Won't you do this for me?
Dearest darkness
And cover me from the sun

And the words tightening
The words are tightening
Around my throat

And
And


Around the throat
Of the one I love

Tightening

Dear darkness
Dear darkness
Now it's your time
To look after us

'Cause we kept you clothed
We kept you in business
When everyone else was having good luck

So now it's your time
Time to pay
To pay me and the one I love
With the worldly goods you've stashed away
With all the things you
Took from us


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sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Jovens poetas europeus: Nora Gomringer


Conheci Nora Gomringer em dezembro de 2007, quando nos apresentamos juntos no festival Berlín-Barcelona: Transferència Poètica, na capital catalã, organizado pelo Instituto Goethe e Projectes Poétics Sense Títol, dirigido por Eduard Escoffet. Éramos 4 poetas berlinenses, com Monika Rinck e Ann Cotten além de Nora e moi. No ano seguinte, dividimos palco uma vez mais no Festival Yuxtaposiciones, na Casa Encendida, em Madri. Nora é uma das melhores poetas vocais que já tive o prazer de ver/ouvir, e seus textos sustentam-se na página, o que explica a força de suas performances. Publicou cinco livros de poemas até o momento: Gedichte (2000), Silbentrennung (2002), Sag doch mal was zur Nacht (2006), Klimaforschung (2008) e Nachrichten aus der Luft (2010). Preparei a postagem abaixo para a Modo de Usar & Co. em 2009. Estava pensando em seu poema "Du baust einen Tisch / Você constrói uma mesa", e quis compartilhá-lo uma vez mais.



Nora Gomringer
Ricardo Domeneck, especial para a Modo de Usar & Co., a 11 de setembro de 2009

Nora Gomringer nasceu em Neunkirchen, no estado alemão do Sarre (Saarland), em 1980. Cresceu entre a Alemanha, a Suíça e os Estados Unidos, devido às viagens e residências de seu pai, o poeta suíço-boliviano Eugen Gomringer. Estudou Literatura Anglo-americana, Germanística e História da Arte. Estreou em livro no ano 2000, com o volume Gedichte, ao qual se seguiram Silbentrennung (2002), Sag doch mal was zur Nacht (2006) e Klimaforschung (2008), coletâneas de textos e poemas, sempre acompanhados de álbuns sonoros com a oralização de sua maior parte. Está entre os poetas alemães mais ativos no terreno de pesquisa da poesia oral e sua relação com a poesia escrita. Entre os muitos prêmios recebidos por seu trabalho oral e literário, destacaríamos o Prêmio de Poesia Nikolaus Lenau, concedido a Nora Gomringer em 2008. A poeta vive hoje na pequena cidade alemã de Bamberg.


Apresentamos nesta postagem dois textos de Nora Gomringer, tentando exemplificar suas pesquisas poético-oral e poético-literária. No vídeo abaixo, o texto oral "Du baust einen Tisch", oralizado em Barcelona em dezembro de 2007, durante o festival Transferència Poética: Berlín-Barcelona, organizado pelo Instituto Goethe da cidade, com a participação ainda das poetas Monika Rinck, Ann Cotten e deste que vos escreve. O acompanhamento musical é do grupo barcelonês Bradien.



POEMAS DE NORA GOMRINGER


(Nora Gomringer, "Du baust einen Tisch", com o grupo Bradien, Barcelona, dezembro de 2007)

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Você constrói uma mesa
tradução de Ricardo Domeneck

Mesa sob a qual você então estica os pés
Mesa para a qual você carrega tábuas num cruzamento
Você constrói para ela
E para si uma mesa
Uma mesa para dois sob a qual
Quatro pés possam esticar-se
Uma mesa à qual você se senta com ela
Eu o vi carregar tábuas num cruzamento
Tábuas para uma mesa
Que você constrói com ela
Para os seus pés e seu esticar-se
Mesa para quatro cotovelos
Quatro pés
Quatro antebraços
Duas panelas
Uma mesa para vocês dois
Para a qual você arrasta tábuas num cruzamento
No qual estou com meu carro
Você constrói uma mesa
Mesa para ela e mesa para você
Uma merda de mesa para vocês dois
Sob a qual vocês esticam seus pés
Um diante do outro
Diante de si
Mesa sob e sobre a qual tudo é dito
Uma mesa assim uma mesa para dois
Para a qual tábuas são arrastadas num cruzamento
Diante de mim
Você constrói uma mesa
Uma mesa sob a qual eu pisaria nos dedos de todos
Uma mesa à qual já não sou assunto
Uma mesa assim você constrói para ela
Contanto que sob esta ela estique os pés
Que ela coma
O que você põe à mesa
Que você constrói
Da qual você carrega as tábuas
Diante de mim
No farol
Você passou com tábuas para uma mesa
Quisera
Que você a construísse para...

:

Du baust einen Tisch
Nora-Eugenie Gomringer

Tisch unter den du dann Füße streckst
Tisch für den du Bretter über die Kreuzung trägst
Du baust für sie
Und dich einen Tisch
Einen Tisch für zwei unter den sich
Vier Füße strecken können
Einen Tisch an dem du sitzt mit ihr
Ich habe dich Bretter über eine Kreuzung tragen sehen
Bretter für einen Tisch
Den du baust mit ihr
Für ihre Füße zum Darunterstrecken
Tisch für vier Ellbogen
Vier Füße
Vier Unterarme
Zwei Töpfe
Einen Tisch für euch zwei
Für den schleppst du Bretter über eine Kreuzung
An der ich stehe mit meinem Auto
Einen Tisch baust du
Tisch für sie und Tisch für dich
Einen Scheißtisch für euch zwei
Unter den ihr eure Füße streckt
Entgegenstreckt
Euch entgegenstreckt
Tisch unter und an dem alles gesagt ist
So einen Tisch einen Tisch für zwei
Für den Bretter über eine Kreuzung geschleppt werden
An mir vorbei
Baust du einen Tisch
Unter dem ich jedem auf die Zehen trete
Einen Tisch an dem ich kein Gespräch mehr bin
So einen Tisch baust du für sie
So lange sie ihre Füße unter ihn streckt
Isst sie,
was du auf den Tisch bringst
den du baust
dessen Bretter du schleppst
an mir vorbei
im Scheinwerfer
gingst du vorbei mit Brettern für einen Tisch
ich wünschte
du bautest einen für...


§

Cama
tradução de Ricardo Domeneck

Uma banquisa
Que vaga pelo mundo
Até haver barulho
E surgir a luz
A derreter os corpos
De focas em humanos

Que reentram em circulação
A rota aquosa
Nas veias alargadas dos dias

Aqui descansam os peixes
Logo abaixo da superfície
Espalham-se, quando a luz desce
Apresentam-se dois à caça
E juntos acampam

:

Bett
Nora Gomringer

Eine Eisscholle
Die in der Welt treibt
Bis es Licht wird
Und Lärm gibt
Der die Robbenleiber
Zu Menschen schmelzt

Die wieder eingehen in den Kreislauf
Die wässrige Bahn
In den geweiteten Adern der Tage

Hier ruhen die Fische
Knapp unter der Oberfläche
Streuen sich, wenn das Licht sinkt
Zur Jagd finden sich zwei ein
Die gemeinsam lagern


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quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Hoje à noite, 27/10, Planningtorock apresenta-se no encontro COMA - Conexões Exploratórias em Música e Performance Híbrida, em Belo Horizonte


Planningtorock


Eu já deixei claro inúmeras vezes aqui o quanto sou apaixonado pelo trabalho desta mulher. Dentre os artistas vivendo em Berlim, é certamente uma das que mais me fascinam e me deixam contente por compartilhar o mesmo oxigênio.

Hoje à noite começa em Belo Horizonte o encontro COMA - Conexões Exploratórias em Música e Performance Híbrida, que contará com apresentações da incrível, sim, esta Janine Rostron, mais conhecida como Planningtorock. Além dela, meus queridíssimos heróis, o duo Tetine, e outros artistas brasileiros trabalhando na fronteira entre gêneros: textualidade, música, vídeo. Mais informações na página do festival. Se você estiver em Belo Horizonte, não perca esta oportunidade. Planningtorock apresenta-se às 21:00, esta noite.



Página do festival:


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JANINE ROSTRON, mais conhecida como PLANNINGTOROCK



Planningtorock - "Doorway", do álbum W (DFA Records, 2011)

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Planningtorock - "The breaks", do álbum W (DFA Records, 2011)

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Planningtorock apresentando-se ao vivo em Berlim em 2009.

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Descobrindo Mary Margaret O´Hara

Estava na casa de um amigo aqui em Berlim ontem, entupindo-nos de café preto exageradamente forte e bolando cigarros com tabaco barato, enquanto ele me mostrava o novo álbum de sua banda, que deverá ser lançado no ano que vem. Em uma das faixas, quem canta com ele como vocalista convidada é a canadense Mary Margaret O´Hara (Toronto, 1951). Eu não a conhecia. Meu amigo, que também é canadense, então me disse que ela é uma verdadeira lenda do rock e folk no Canadá, com o que jornalistas gostam de chamar de cult status, tendo lançado um único álbum, intitulado Miss America (1988). Bandas como This Mortal Coil e Cowboy Junkies já gravaram suas canções. O que mais me impressionou é que ela canta com Morrissey em "November Spawned a Monster", o que me fez sentir como um fã muito relapso. Mal podia crer que aquela criatura havia passado despercebida por mim todo este tempo, após ouvir tanta música canadense nos últimos anos. Desde que voltei para casa com o álbum, ele roda na vitrola digital sem parar. Sinto que me sobrevem uma nova obsessão. Para quem não a conhece e para os que já a apreciam, Mary Margaret O´Hara:




Mary Margaret O´Hara, "When you know why you´re happy", ao vivo,
do álbum Miss America (1988)


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Mary Margaret O´Hara, "Body´s in trouble", vídeo oficial,
do álbum Miss America (1988)


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Mary Margaret O´Hara, em cena do filme The Events Leading Up to My Death (1991),
com sua canção "Year in song" ao fundo.

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Mary Margaret O´Hara, "Something I dreamed last night",
do filme Youkali Hotel (2004)


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Mary Margaret O´Hara no famoso programa Q.

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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

"Praticando o `dérive´: trajeto Charlottenburg – Mitte, Berlim, 5 de outubro de 2011": poema inédito e pequena nota a quem possa interessar



Este é provavelmente o último poema inédito que publicarei por aqui neste ano de 2011. Os vários inéditos que me restam, quero guardar para meu próximo livro, que pretendo lançar no primeiro semestre de 2012. Livro que venho preparando há bastante tempo, intitulado Ciclo do Amante Substituível, título cafona como só eu, com textos escritos entre 2006 e este nosso ano catastrófico de 2011. Do que se trata? Ah, senhor e senhora, anotem aí, é puro melodrama disfarçado de ironia. Self-deprecation é o que nos salva do ridículo completo. Será um livro exclusivamente de minha lírica amorosa. O livro estava praticamente pronto, mas certos acontecimentos dos últimos meses e o fluxo de poemas que geraram em mim acabaram transformando a coletânea. Meu projeto inicial era simples: esvaziar a gaveta. Mas o livro ficaria gigantesco (devo ter mais de 80 poemas, e vocês sabem que não sou exatamente o mais minimalista dos poetas brasileiros contemporâneos), o que me levou a cortar muitos textos, além de toda uma seção, e decidir publicar apenas o calhamaço principal: minha lírica amorosa e desamorosa dos últimos anos. Ainda não me decidi se incluirei nele o pequeno livro Cigarros na cama (Rio de Janeiro: Berinjela, 2011). Creio que não.

De qualquer maneira, acho apropriado encerrar a publicação de inéditos deste ano com este poema, abaixo. Não sei até que ponto isto é claro ou relevante, mas o que mais me interessa no formato do blogue, e o que às vezes tento empreender aqui, é justamente usar seu formato diarístico para, ao mesmo tempo, investigar, pesquisar, caçoar, homenagear, praticar, satirizar, emular certa noção de poesia lírica que o Romantismo nos legou. Para isso, o formato do blogue é perfeito. Mesmo porque o que me interessa nos últimos tempos é o limite do circunstancial, parte de minha obsessão pela função do contexto no trabalho com a linguagem, e minha militância pela historicidade do trabalho poético. Ah, escrever versos de circunstância é minha única ambição, senhor, senhora!

O poema abaixo, provavelmente tão falho quanto todos os meus outros, encena um pouco disso tudo. Eu sou hoje, neste momento de minha existência, um poeta lírico. Os antilíricos que sejam felizes, desejo-lhes todo o sucesso do mundo! Mas como escreveu Herberto Helder: "Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar." Tanto que, faz já dois meses, comecei a dar por encerrada (pelo menos por ora) minha investigação da noção de poesia lírica herdada dos Românticos e voltei-me de vez para o Medievo: agora, ao lado de dois músicos, escrevo canções. E escrever isso aqui, agora, faz-me pensar que parece apenas consequência natural que vem desenovelando-se desde que entrei com roupa e tudo numa banheira para filmar aquele vídeo para a TV Cultura, em 2006, chamado "Garganta com texto". Nos próximos meses, quero passar meus dias bebendo café, fumando cigarros e escrevendo cantigas de amigo e cantigas de escárnio. Meu mestre agora é Martim Codax.




Praticando o dérive: trajeto Charlottenburg – Mitte, Berlim, 5 de outubro de 2011

Com os pés, digo sim
a este 5 de outubro,
como se eu tivesse outra
alternativa. E tenho. Não
sei, talvez fora o início
da caminhada, ter saído
de um local de burocratas,
minha vontade burguesa
de instituir minha diferença,
rodear-me de uma cerca
de luxo intelectualizado. E
com apenas 3 euros e 75
centavos no bolso, o dérive,
por exemplo, significa
a economia
que me permitirá amanhã
o almoço.
É 2011 e ainda sou poeta
pobre, moço. Mas, dessarte,
posso escrever este poema,
este, que ora vai já a 1/5,
imagino,
de sua duração, esta chance
de seguir fazendo
de mim l'indivu du spectacle.
Quiçá tenha sido o fato
de que estar tão longe,
no oeste
da cidade, sempre me faça
sentir de viagem.
Queria desviar-me,
esquadrinhar o desatino,
perder o leme,
não tanto estar à deriva
quanto escalavrar proa e popa,
esperar um vento
qualquer que fizesse das paredes
do meu estômago
vazio o bojo de lona
entesado das velas
duma embarcação, não bêbada,
mas em abstinência, abstinência.
Fico assim quando contigo
no pensamento, rijo,
hirto.
Não sei se chego
com estes passos
a uma nova experiência
da cidade que é também
tua. Na psicogeografia
dos situacionistas,
que eu diligentemente
busco assim praticar, influía
meu peito de bicho
em estase amoroso,
tornando-me um georadar
qualquer no campo minado
de uma terra que tão-só
uma nova ciência,
oxalá uma espécie
de erogeologia,
poderia agora mapear.
De qualquer forma,
é impossível a linha reta
nesta tua terra
e cidade cortada
por canais e ruínas.
De tão quotidianas,
minhas descobertas
não entreteriam os viciados
em epifanias. De que lhes adianta,
ou mesmo a ti, por exemplo,
saber que a cafta
no pão, que seria a única
refeição do meu dia, custa
ali 20 centavos menos? Que a
Savignyplatz continua
cheia de berlinenses e turistas
ricos? Mas fumei durante o trajeto
seis de meus Gauloises.
Queria bastar-me, suar dentro
das minhas próprias roupas,
dizer: cheirem, este é o meu cheiro,
produzido por meu corpo
em troca mercantil com o oxigênio
compartilhado com árvores,
ratos, cigarros. E contigo.
Na livraria do Instituto
Helmut Newton, o livro
com o trabalho fotográfico
de Linda MacCartney
mostrava mortos outrora vivos.
Pensei no milagre da radiofonia
na gravação das vozes,
poder escutar hoje
os mortos dos desastres
dos natais passados,
enquanto compunha este texto
em uma de nossas línguas
ocidentais, que são tão-só
fonografia.
Queria telefonar para ti, moço,
dizer: “Consider Jeff Buckley,
who was once handsome,
pale, sexy, gorgeous and tall
as you
”, mas tu
não entenderias a citação
ou estas minhas metonímias
em frangalhos que nada mais
querem dizer que “soon
is too late
”.
Cantarolei então “Cais”,
como se eu fosse Elis;
“Single”, tal qual Thorn;
“Maldigo del alto cielo”,
pensando em Violeta Parra
e seu acessório
balístico para têmporas;
qualquer coisa
feito Feist, ou,
como o caolho tristonho,
“I might be wrong”.
E eu quem sabe esteja.
Queria mesmo, nesta terra
famosa por suas Guerras,
dizer: tu e quantos Bismarcks,
quantos milhões de exércitos,
criatura, crês necessários
para me desatinar e abismar?
E, sabes?, o anjo
sobre a Coluna da Vitória
parece-me cada dia menor,
de proporções cada vez mais
humanizadas. Toda separação
é perfectível em nossa relação,
como um espetáculo de sociabilidade,
na união e divisão das desaparições
graduais da tua pele, tua
desorganização do meu território.
O Portão de Brandenburgo
está mais uma vez aberto,
suas colunas retas como cambitos,
e eu queria era ver tropas
passando por elas, como eu um dia
debaixo de tuas pernas.
E é assim, como sujeito e como
representação, ao chegar
a minha casa alugada,
o aluguel atrasado,
sozinho, a catinga
no quarto de cigarros e cinzas,
sem quem me componha cantigas
de amigo ou de escárnio,
que eu elaboro esta estratégia
genial, machucar as gengivas
de propósito com a escova,
para caminhar pelas ruas
sentindo-me beijado de língua
pelos próximos dias a fio,
em deriva,
derivado de tua míngua.


Ricardo Domeneck


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domingo, 23 de outubro de 2011

Leslie Feist, curandeira.




Há dois songwriters/cantautores anglófonos dos quais sigo as carreiras, acompanho cada lançamento com a expectativa de quem espera o bote salva-vidas no meio do oceano, e as ondas crescendo. Um deles é o norte-americano Sufjan Stevens, sobre o qual já escrevi aqui. A outra é a canadense Leslie Feist, mais conhecida apenas como Feist. Ontem tive a oportunidade iluminada de vê-la/ouvi-la ao vivo pela primeira vez aqui em Berlim. Foi uma noite maravilhosa, há muito não via tanto carisma emanar de uma mesma pessoa sobre o palco, com aquela voz que, de alguma maneira misteriosa, consegue conjugar fragilidade e potência.

Eu tenho meus misticismos pessoais e malucos. Por exemplo, Björk, de alguma maneira, sempre lança álbum novo quando estou passando por uma turbulência, e, ora, o que me impede de acreditar que ela os lança para me salvar? Mas este ano o misticismo do meu umbigo é outro: o último álbum de Feist, The Reminder, foi lançado em 2007, o ano de início de algo importantíssimo em minha vida, e canções como "My Moon My Man", "1234" e "I feel it all" foram como hinos da minha alegria nos últimos anos. Agora, quatro anos depois, quando a alegria específica e com carteira de identidade que começara em 2007 acabou-se, Feist lança este Metals, com algumas canções que estão certamente ajudando a me cicatrizar. Se "I feel it all" foi meu hino de alegria com um certo moço, agora eu tenho esta lindíssima "The circle married the line" para cantarolar minha tristeza, tristeza que está se acalmando e começando a deixar a paz da compreensão em seu lugar. Quando os primeiros acordes desta canção começaram ontem à noite, baixei muito a cabeça, ergui muito a cabeça, pestanejei, ergui os olhos até o teto, fechei-os, cantei. Obrigado por ajudar, Feist. Espero um dia poder apertar sua mão e dizer um obrigado.




Feist canta sua canção "The circle married the line", do álbum Metals (2011).


The circle married the line
Leslie Feist

I know it'll need to go from good to worse
Living in the past begins the ending first
All I want is a horizon line
Get some clarity following signs
I'll keep on the path that leads up to the clearing
Keep some distance while the words comes in so near and
Then I'll head out to horizon lines
Get some clarity ocean-side

Realize what you know that you know by now that...
First light was, last light was alright when
The circle married the line
First light was, last light was alright when
The circle married the line

Even from away he is near me
Making me unendingly teary
Makes me remember the things that I forgot
It's as much what it is as what it is not
In a room sleeping so peacefully
Fall away from him to be less than lee
All we need is a horizon line
Get some clarity following signs

Realize what you know that you know by now that
Realize what you know that you know by now that...

First light was, last light was alright when
The circle married the line


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sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Algumas perguntas, ainda sobre a edição da revista "Cuardernos Hispanoamericanos" dedicada à Literatura Brasileira

Desde que recebi e li o número 735 da revista Cuardernos Hispanoamericanos dedicado à Literatura Brasileira, e principalmente após escrever o último artigo aqui neste espaço, no qual o comento, algumas perguntas têm-me incomodado, martelado minha cabeçoila já amassada. Uma delas diz respeito a uma asserção que eu mesmo fiz: a de que, por estar incluído na seleção, sentia-me impedido de comentá-la criticamente.

Isso ficou me incomodando. Ora, ninguém quer cair na cabotinagem do elogio, nem na ingratidão da invectiva, mas certamente estes são os extremos da crítica que precisamos todos evitar, para que a crítica seja efetiva, honesta e possa funcionar. Em geral, o que ocorre é a falência da crítica, e por mais que este conceito de falência esteja tão em voga, hoje em dia considero como única verdadeira falência da crítica o silêncio.

Uma das coisas que passei os últimos dias perguntando-me é: estar incluído impede-me ou obriga-me a um comentário crítico? Talvez nenhum dos dois, mas a resposta então seria a atitude mais comum: o silêncio, ao qual geralmente me recuso, como vocês já devem ter percebido. Minha bocarra gigante.

Se no artigo anterior simplesmente comentei o número da revista em alguns de seus aspectos, gostaria de expor agora algumas perguntas no espírito do diálogo, elaborando alguns pontos do meu artigo e, em outros, até mesmo corrigindo-os. Como o próprio Jorge Henrique Bastos citou em uma mensagem, após escrever-lhe expondo algumas discordâncias, a crítica deveria ser como o que Pound chamou de "conversation between intelligent men", sem os usuais ataques de nervos e egos que tão frequentemente vemos no Brasil.

§ - Como a revista afirma dedicar o número à Literatura Brasileira hoje, ainda que eu esteja ciente de que os nomes intocáveis de Graciliano Ramos, Clarice Lispector ou Vinícius de Moraes não são, infelizmente, óbvios para um leitor espanhol, talvez houvesse sido mais condizente com o propósito do número reservar tal espaço, seja o da mera menção ou da discussão, para autores vivos, produzindo realmente hoje.

§ - Afirmei em meu último artigo que a revista parecia bem-informada. A verdade é que, tratando-se por exemplo da prosa contemporânea brasileira, eu próprio não me sinto bem informado, pois não a acompanho ou visito de forma assídua. Imagino que os nomes de João Almino, Adriana Lisboa e Frances de Pontes Peebles sejam exemplos da prosa brasileira recente que merecem estar na revista. Infelizmente, não conheço seus trabalhos, não posso afirmá-lo ou negá-lo. Portanto, não se trata de criticar exclusões, mas de sugerir que um número futuro venha a tratar de autores como Veronica Stigger, Joca Reiners Terron, João Filho, Bernardo Carvalho, Sérgio Medeiros ou Nuno Ramos, dentre os que conheço um pouco melhor. São autores muito diferentes entre si, com a característica comum de estarem produzido trabalho sério, discordemos ou não de suas escolhas ou quanto ao resultado que alcançam.

§ - Certamente a existência de traduções de livros dos autores na Espanha torna-se um fator compreensivelmente considerado por um editor, mas continua me parecendo um problema crítico muitíssimo sério no número, que um autor tão não-influente (para usar um eufemismo educado) quanto Lêdo Ivo, por ser amplamente traduzido na Espanha tenha tomado o lugar de direito de poetas muito superiores a ele, como Augusto de Campos e Leonardo Fróes. Superiores como técnicos da linguagem, além de muito mais influentes e relevantes para o debate poético contemporâneo. Imagino que algumas pessoas incluiriam ainda Manoel de Barros nesta lista.

§ Não posso criticar a inclusão de Nélida Piñon por não conhecer seu trabalho. Sei que seu romance A República dos Sonhos (1984) é respeitado por certos setores da intelligentsia nacional. Lamento apenas que Márcia Denser, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca e Sérgio Sant´Anna não tenham encontrado acolhida na revista, não como substitutos, mas ao menos como companheiros, autores certamente mais influentes entre os prosadores mais jovens. Poderíamos mencionar ainda Raduan Nassar, mesmo que ele já não produza hoje. De qualquer forma, o lamento quer, na verdade, servir como sugestão para publicações futuras da revista.

§ Entende-se que a revista quisesse concentrar-se em autores vivos, mas a morte prematura e recente de autores como Haroldo de Campos e Hilda Hilst não impede que eles estejam extremamente vivos e muito mais presentes no debate contemporâneo que autores como Lêdo Ivo, por exemplo.

§ A parte mais difícil de comentar é justamente aquela em que estou incluído, intitulada "Antología de la poesía actual brasileña", com organização e introdução de Jorge Henrique Bastos e traduções de Vicente Araguas.

O trabalho de qualquer antologista me parece sempre árduo, cheio de armadilhas incontornáveis e de recepção quase invariavelmente ingrata. A literatura e a poesia contemporâneas de um país são sempre campos minados com e por debates est-É-ticos em andamento e nunca realmente resolvidos, releituras e reformulações críticas, teias comportando-se como correntes, raios e margens ansiando pelo centro e núcleo. Não é à toa que a maior parte da crítica escolhe o caminho do retrospectivo e não do prospectivo, para usar as hábeis expressões de Dirceu Villa. É muito mais fácil olhar para o passado, escrever sobre o que já está estabelecido como bom e relevante. É um trabalho crítico necessário e importantíssimo para a saúde de uma literatura, que pode envolver muita criatividade e inteligência para os que não querem simplesmente inchar a bibliografia crítica sobre os autores, mas realmente debater aspectos muitas vezes despercebidos por outros críticos, contemporâneos ou não. No melhor dos casos, tal crítica consegue ser retrospectiva e prospectiva ao mesmo tempo. Basta pensarmos nas leituras de Walter Benjamin ou, no Brasil, as de Haroldo de Campos e Augusto de Campos dedicadas a Joaquim de Sousândrade e Oswald de Andrade; a que Flora Süssekind dedicou a Sapateiro Silva; ou os trabalhos editorial e crítico de James Amado e João Adolfo Hansen com a obra de Gregório de Matos. É claro que não vamos mencionar aqui os nomes dos preguiçosos que simplesmente acreditam poder ganhar o prêmio ao apostarem no cavalo vencedor depois que este já cruzou a linha de chegada, ou os que meramente regurgitam o que já foi dito por bons autores sobre bons autores, em paráfrases engenhosas e esbanjando embasamento acadêmico universitário, com longas listas de bibliografia especializada dando ar de autoridade a suas defesas do engessado, estes agentes do status quo, bandeirantes de quintal.

Como Dirceu Villa expôs em seu último artigo ("Retomando a conversa", in O Demônio Amarelo, terça-feira, 11 de outubro de 2011) – com a elegância que já lhe é conhecida, a única crise hoje no Brasil é a ausência de uma crítica forte e preparada que se disponha a ler a poesia e a literatura do presente sem antolhos, sem atitudes iracundas por vezes dignas de adolescentes (o que mais parece abundar hoje no Brasil é a ala do enfant terrible na casa dos 50 anos de idade - so embarrassing and unbecoming - , e há revistas que até se especializam neste nicho), tendo achaques feito sereias da catástrofe porque os autores de seu tempo não estão seguindo os caminhos que gostaria que seguissem, ou porque não estão emulando os seus mestres eleitos. Por vezes, tenho a impressão de que o problema de tais críticos é não entender muito bem a relação entre poesia e crítica, ou seja, confundem qual das duas é o cavalo e qual a carroça. Quero voltar ao artigo de Dirceu Villa em outro momento, pois ele discute o Nobel a Tranströmer e outras questões que me interessam, mas por ora retorno à nossa discussão, que não está, porém, distante da que ele empreendeu ali.

Pois eu discutia o trabalho do antologista. Se a palavra antologia, a partir do grego, nos leva à ideia do colhimento e arranjo de flores – daí a palavra florilégio em português; e se a palavra crítica, também a partir do grego, nos leva à ideia de separar, discernir, fica patente que uma antologia de poetas/poemas é, em primeiro lugar, um trabalho de crítica autoral, talvez antes mesmo de ser um livro de poemas, pois passa a estar condicionado por esta ação que se quer discernente, fazendo do antologista-crítico uma espécie de apanhador no campo, não de centeio, mas de joio e trigo. E aí começam os grandes problemas que nos vão levar com tanta frequência à discussão sobre a subjetividade inescapável e a objetividade possível no ato de antologiar.

Talvez tudo isso pudesse ser resolvido com o cuidado rigoroso na hora de intitular antologias. Ao intitular o recolho de poemas na revista "Antología de la poesía actual brasileña", Jorge Henrique Bastos talvez tenha aberto portas a discordâncias que não teriam lugar na discussão se os poetas/poemas ali apresentados não acabassem tendo que operar como representativos. Trata-se de um risco sempre presente em antologias de caráter nacional. Convida tanto aos rancores regionais como a pelejas est-É-ticas. O espaço reduzido, permitindo tão-só um poema de cada um dos 6 poetas (dois no caso de Damázio, sem mencionar os outros quatro autores e seus poemas mencionados no ensaio), acaba inevitavelmente sujeito à insuficiência. É algo a ser pensado, por exemplo, a decisão dos editores em optar pela publicação de poemas inéditos, quando talvez houvesse sido melhor a publicação do que cada autor tem de melhor em sua obra, já que são todos jovens e não têm livros editados na Espanha. Mas, com espaço para apenas um poema, seria difícil representar até mesmo o trabalho de cada poeta, quem dirá o de todo o Brasil. São problemas muitas vezes incontornáveis, mas que não precisam embargar o projeto.

Continuo acreditando que este número da revista Cuadernos Hispanoamericanos, dedicado a escritores brasileiros, deveria ser visto com alegria, mesmo com seus pontos questionáveis e de discordância possível. Imagino que alguém mais cínico dirá que acredito nisso apenas por ter meu trabalho mencionado. Ora, quanto a um leitor que pense desta maneira sobre mim, fico apenas pasmo que ele perca tempo lendo meu blogue. Exponho estas perguntas porque meu senso crítico e de honestidade realmente me levaram a ver o último artigo como insuficiente e falho.

Agradeço a Jorge Henrique Bastos, assim como a Benjamín Prado e Juan Malpartida, o respeito com que claramente conduziram seu trabalho. Exponho aqui estas perguntas no espírito das palavras de Pound que Bastos citou em nosso debate particular: como conversation between intelligent men – conversa que me dá prazer ter, com ele, os editores da revista e os leitores e leitoras deste espaço.

Nascido em 1964 em Belém do Pará, com passagens por São Paulo, Rio de Janeiro e Lisboa, onde organizou a antologia Poesia Brasileira do Século XX - dos modernistas à actualidade (Lisboa: Antígona, 2002), Jorge Henrique Bastos tem um trabalho jornalístico, editorial e crítico sérios, colaborador em revistas e jornais tais como Diário de Lisboa, Independente, LER, Colóquio-Letras e Camões, sendo responsável ainda, por exemplo, pela primeira edição portuguesa de Macunaíma - o herói sem nenhum caráter (Lisboa: Antígona, 1998) e pela primeira edição brasileira do poeta Herberto Helder, O CORPO O LUXO A OBRA (São Paulo: Iluminuras, 2000).

Quanto ao editor Benjamín Prado, meu respeito, junto com o dos outros três editores da Modo de Usar & Co., está já estampado tanto em nosso primeiro número impresso, com vários poemas do espanhol, quanto em nossa franquia eletrônica.

Abraço a todos os homens e mulheres inteligentes que passam por este espaço,

aqui despeço-me,

Ricardo Domeneck – passando frio em Berlim.


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terça-feira, 18 de outubro de 2011

"Cuadernos Hispanoamericanos", revista espanhola dirigida por Benjamín Prado, dedica seu número 735, de setembro de 2011, à Literatura Brasileira Hoje

Recebi este fim-de-semana meu exemplar do número 735 da revista espanhola Cuadernos Hispanoamericanos, que tem como diretor o poeta e romancista Benjamín Prado, e Juan Malpartida como redator-chefe. Este número é o primeiro a ser lançado em edição bilíngue espanhol-português, inteiramente dedicado à chamada Literatura Brasileira Hoje, com atenção especial à poesia, em minha impressão pessoal.

É sempre estranho escrever criticamente sobre um volume no qual seu próprio trabalho comparece. Jorge Henrique Bastos, que escreve um ensaio sobre a atual poesia brasileira e que busca evitar qualquer partidarismo, menciona meu trabalho e inclui um poema inédito meu na mini-antologia da revista. O ensaio, intitulado "Poesia brasileira recente: bicho de sete cabeças", discute certos aspectos e parâmetros visíveis em alguns jovens poetas surgidos neste século, e comenta, além do meu trabalho, o de Eduardo Sterzi, Tarso de Melo, Angélica Freitas, Marília Garcia, Micheliny Verunschk, Dirceu Villa, Reynaldo Damázio, Rodrigo Garcia Lopes e Mariana Ianelli. Pareceu-me uma tentativa honesta de abordagem crítica, e consciente da própria impossibilidade do ensaio panorâmico da poesia em um país de proporções continentais. É claro que sempre será possível discordar-se dos nomes incluídos. Serão representativos estes poetas? O título do número da revista talvez convide a este tipo de crítica. Sou obrigado a me abster de comentar demais, pois estar incluído me impede. Não sei se a revista chegará ao Brasil, mas seria frutífero se fosse lida criticamente por outros. De qualquer maneira, publicamente ou não, tenho certeza que haverá quem se descontente com a seleção. A minha própria teria sido outra, mas isto tão facilmente cai no afã ocioso de simplesmente atacar listas incompletas com outras listas incompletas. É um campo minado, o da organização de antologias. O que seria interessante: analisar criticamente as inclusões, o que, como já disse, estou impedido de fazer por estar entre elas. Esta mini-mostra de poesia atual traz cinco poemas inéditos de Ferreira Gullar, e ainda os poemas "Memorando", de Mariana Ianelli; "Cefalópode", de Dirceu Villa; "E pur si muove" e "Cosmogonia", de Reynaldo Damázio; "Cerco", de Micheliny Verunschk; "El duende", de Rodrigo Garcia Lopes"; e encerra-se com meu poema intitulado "Eu", inédito em livro. As traduções para o espanhol ficaram a cargo de Vicente Araguas.

Ferreira Gullar é o grande homenageado da revista, com poemas, ensaio crítico e uma pequena entrevista. Sua presença no mercado editorial espanhol tem sido constante nos últimos anos, e diz-se que a tradução de seu Poema Sujo (1975) teve "impacto" no país ibérico, o qual ele parece ter visitado nos últimos anos para leituras de seus poemas. Podemos discordar de praticamente tudo o que Gullar hoje diz na imprensa brasileira, assim como podemos ter visões conflituosas sobre a qualidade verdadeira e real de sua poesia, certamente irregular, mas seria difícil negar a influência de seu trabalho sobre vários poetas.

Sabemos que a visão da poesia de um país estrangeiro está sempre marcada por sua presença através de traduções, que nem sempre refletem a posição de um poeta em seu próprio país. Por exemplo, algum dia ainda pretendo escrever sobre a posição de Paul Celan dentro da poesia germânica: imagino que um brasileiro, sabendo que Celan é um dos poetas mais traduzidos e celebrados da língua alemã no pós-guerra (no estrangeiro), imaginará que sua poesia é central dentro da tradição poética germânica. Pois tal leitor brasileiro se surpreenderia com a maneira como é ilhada a influência de Celan na poesia alemã do pós-guerra. Muito conflui para isso, mas me parece um exemplo interessante. Portanto, a publicação de antologias poéticas de Gullar na Espanha, assim como a de seu Poema Sucio, explicam seu grande vulto na revista, que não me parece injusto. A revista, imagino, quis dedicar-se apenas a poetas vivos, o que talvez explique a ausência completa de Haroldo de Campos em suas páginas, já que nos últimos anos a Espanha viu vir a lume tanto a belíssima antologia organizada por Andrés Fischer sob o título Hambre de Forma: Antología Poética (Madri: Vientisieteletras, 2009), como ainda, com tradução e prólogo de Andrés Sanchez Robayna, a publicação de Crisantiempo (Barcelona: Acantilado, 2006).

Aqui, porém, alguém poderia reclamar o lugar de direito que deveria ter sido reservado à obra de Augusto de Campos dentro do número de uma revista dedicado à literatura brasileira de hoje. Uma explicação possível, mas certamente não uma justificativa, talvez venha do fato de Augusto de Campos não ter ainda sido tão traduzido na Espanha como seu irmão. Mesmo a inserção de Haroldo de Campos no circuito de traduções parece ter-se dado apenas após sua morte, o que nos deixa um tanto deprimidos. Porém, a ausência de Augusto de Campos torna-se muito mais alarmante quando percebemos quem é o segundo poeta brasileiro com maior espaço na revista: Ledo Ivo. Imagino que um leitor brasileiro agora pare e pasme, mas a verdade é que Ledo Ivo é hoje um dos poetas brasileiros mais traduzidos na Espanha, ao lado de poetas como os já mencionados Ferreira Gullar e Haroldo de Campos, além de Armando Freitas Filho. Esta presença de Ledo Ivo em certos países europeus sempre me assusta. Já me perguntei se sua completa insignificância, como já escrevi recentemente, dentro do debate poético contemporâneo brasileiro se dê por preconceitos vanguardistas nossos, herdados da década de 50, que nos fazem por em xeque a poesia brasileira da década de 40. Pois bem, após uma viagem à Espanha em que encontrei vários livros de Ledo Ivo em livrarias, resolvi verificar se eu havia deixado algo passar por minha atenção. No entanto, a mim a poesia de Ledo Ivo segue parecendo um caso claro de frouxidão de linguagem, de um lirismo que beira no máximo o pseudofilosófico. Qualquer poema de Augusto de Campos ou Leonardo Fróes demonstra maior consciência tanto da materialidade como da opacidade necessárias da linguagem poética. Completamente distanciada dos questionamentos mais interessantes no debate poético brasileiro, o trabalho de alguém como Ledo Ivo talvez gere ressonância dentro da poesia espanhola principal que, com exceções, muitas vezes assemelha-se à do Grupo de 45. O único outro caso na revista que talvez pareça estranho a um brasileiro é a eminência de Nélida Piñon entre os prosadores. Não conheço o trabalho da ex-presidente da ABL, jamais li um de seus livros. Sei que ele é respeitado no âmbito hispânico. No Brasil, não sei quanta ressonância ou influência tem.

No entanto, excetuando as aparições controversas de Ledo Ivo e Nélida Piñon, o número da revista pareceu-me bem informado, apenas enfrentando a dificuldade praticamente intransponível de dar a conhecer a literatura de um país como o Brasil, tentando incluir tanto poetas e prosadores do pós-guerra imediato como as vozes recentes do século XXI. O ensaio de Vicente Araguas refere os leitores espanhóis a figuras importantes do entreguerras e do pós-guerra, como Tom Jobim, Oscar Niemeyer, Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira, Érico Veríssimo, Rubem Fonseca, Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Carlos Drummond de Andrade. A nós estes nomes podem parecer óbvios, mas não o são na Espanha, infelizmente. Assim como a gigantesca e incontornável Clarice Lispector parece ser um vulto sobre toda a revista, como deveria ser, mencionada em alguns artigos. João Almino e Adriana Lisboa comparecem como prosadores contemporâneos. Ronaldo Correia de Brito escreve sobre o também gigantesco Graciliano Ramos, este que foi um dos maiores acontecimentos de linguagem no Brasil. Para mim, um romance como Angústia (1934) segue parecendo melhor do que qualquer coisa que eu tenha lido de Steinbeck e Camus, por exemplo. Ou mesmo de Hemingway, para dizer a verdade.

Em novembro, o Brasil é o homenageado no Europália. Em 2013, na Feira do Livro de Frankfurt. Espero que seja o início do processo que fará de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Hilda Hilst e outros, finalmente, os household names que deveriam ser na Europa, para que os europeus finalmente mereçam por completo sua reputação de cultos.


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Nota: Marília Garcia lembrou-me que Haroldo de Campos ainda estava vivo quando foi lançada na França, em tradução de Inês Oseki-Dépré, o volume Galaxies (La Souterraine: La main courante, 1998).


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domingo, 16 de outubro de 2011

A poeta finlandesa Cia Rinne na Hilda Magazine

Cia Rinne


As últimas postagens da Hilda Magazine, que edito com meu parceiro britânico Oliver Roberts, têm sido dedicadas a vários poetas trabalhando nas fronteiras entre gêneros poéticos distintos. Após mostrarmos trabalhos dos americanos Pamela Z, poeta sonora e performer; CAConrad, poeta-escritor que é um dos motores da jovem poesia contemporânea norte-americana; e Kelly Zen-Yie Tsai, poeta vocal nova-iorquina; além da australiana Kusum Normoyle, poeta sonora e performer mesclando à sua maneira noise e body art; postamos hoje "Sounds for soloists", trabalho da finlandesa Cia Rinne, baseado no texto "Notes for soloists". Vi referências ao trabalho de Rinne pela primeira vez em um ensaio de Marjorie Perloff, que me foi indicado pela companheira Angélica Freitas. O trabalho de Cia Rinne me parece uma junção muito interessante do textual e do sonoro. Doem-lhe alguns minutos de seus ouvidos:





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sábado, 15 de outubro de 2011

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Hoje à noite, em Berlim, performances da Planningtorock e do duo Creep, no já lendário clube Berghain


Já escrevi aqui várias vezes sobre a artista multimídia britânica Janine Rostron, mais conhecida como Planningtorock. Creio também já ter escrito sobre Lauren Flax e Lauren Dillard, o duo nova-iorquino Creep. Hoje à noite, eles tocam juntos no maior e mais lendário clube berlinense da atualidade, o Berghain, local onde sempre quis ver Planningtorock, por ter talvez o melhor sistema de som da cidade. Estou exultante. A música da Planningtorock salva meus neurônios do naufrágio toda vez que a vejo em ação. E Flax e Dillard estão entre as pessoas mais deliciosas que conheci este verão. Queria que todos vocês pudessem estar aqui hoje.



Planningtorock - "The breaks", do álbum W.


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Creep (featuring Romy Madley Croft, da banda The XX) - "Days"

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quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Dois vídeos encontrados nos meus arquivos, de performances em nosso evento semanal, entre o satírico e o xamânico: Angie Reed & TV Buddhas

Hoje é quarta-feira, segunda semana de pausa do nosso evento semanal aqui no Berlimbo. Mais tarde, encontro-me com os donos do clube onde desde 2005 organizamos as performances, concertos, instalações e DJ sets seguidos de celebração festeira, para discutirmos a reabertura no novo local.

Nos últimos dias, subi fotos antigas acumuladas para a página oficial, e, fuçando em meus arquivos, encontrei alguns vídeos de performances já digitalizados mas que eu ainda não havia editado e disponibilizado na Rede. Ontem editei dois deles: da performance da americana Angie Reed, em 2006, e a do duo israelense TV Buddhas, em 2009. Foi uma combinação engraçada, pois não poderia imaginar artistas mais diferentes em seus temperamentos.




Angie Reed é uma multiinstrumentista e poeta-vocalista satírica. O vídeo mostra sua performance para sua canção mais conhecida, chamada "Hustle A Hustler", que é, creio, do álbum XYZ Frequency (2005). Angie Reed nasceu em 1976, e vive em Berlim há muitos anos, onde começou a carreira como baixista e segunda vocalista da banda Stereo Total. Em 2003, lançou seu primeiro álbum solo, o conceitual Angie Reed Presents the Best of Barbara Brockhaus (2003), produzido por Patrick Catani. Sua performance em nosso evento, que eu adoro dizer ser our own private Cabaret Voltaire, deu-se em 2006, creio que em novembro. Sua performance me faz pensar na poesia cantada dos trovadores do trobar leu, de poetas satíricos da Idade Média como os Goliardos, coisa que me atinge por vezes na performance de poetas vocais contemporâneos, como quando me apresentei com o catalão Albert Pla em um festival de poesia de Madri. Vê-lo sobre o palco, rodeado pelo público, cantando suas canções, interrompendo-as para vociferar imprecações contra o governo e a igreja, fez-me sentir-me no coração da idolatrada salve salve tradição poética medieval. Senti o mesmo nas duas vezes em que tive a sorte maravilhosa de assistir a performances do grupo Tiger Lillies, por exemplo, com o fenomenal poeta-vocalista satírico Martyn Jacques à frente.

Abaixo, o trobar leu de Angie Reed.



Angie Reed vocaliza sua "Hustle A Hustler" em nosso evento semanal, em novembro de 2006.



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O segundo vídeo é do duo TV Buddhas, de Israel. Creiam-me, eu não uso o adjetivo "xamânico" com frequência, sou leitor apaixonado de Eliade e acho que esta tradição é abusada por muitos charlatães, especialmente no Brasil. Nem acho que este vídeo vá ser capaz de dar a ver o que estas duas criaturas fizeram no meio da nossa pista de dança por cerca de 45 minutos. Eu fiquei impressionadíssimo. Entre os artistas trabalhando com música hoje no mundo, nos últimos tempos tive esta experiência apenas com os criadores de persona, como Fever Ray e Planningtorock. Mas, nesta noite em questão, capturada mal mas registrada no vídeo abaixo, eu realmente senti nestes dois seres humanos o poder do xamânico. Com vocês, um excerto de uma experiência verdadeira, a performance dos TV Buddhas no nosso evento, em 2009.




TV Buddhas em nosso evento semanal, em setembro de 2009.




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domingo, 9 de outubro de 2011

"O cartógrafo confuso" ou "Notas às margens do Tejo", poema inédito, escrito em Lisboa



O cartógrafo confuso
ou Notas às margens do Tejo

a luz a luz de lisboa
após uma década de chiaroscuro
em berlim me cega me atordoa
depois de suar por ruas
de sujeira e descalabro
que fazem sentir-me em casa
posto-me feito um mastro
cambaleante
diante do estuário do tejo
no miradouro do cais das colunas
com esta folha de papel sulfite
apoiada sobre um livro de ruy belo
fumando um dos meus gauloises
cantarolo “cais” diante das águas
querendo enfim borrar a fronteira
entre a escrita e a vida
o esganiçar da minha voz
assustando as gaivotas
as garças as pombas
mas os peixes seguem próximos
logo abaixo do espelho das águas
dentro de seu líquido espaço
acústico
e não sei se estou longe da cama
que me foi emprestada
pois os portugueses apesar
de haverem viajado o mundo
têm parâmetros esquisitíssimos
de distância
e digo eis que cheguei até aqui
mas ninguém entenderia o que
com aqui quero dizer
se o futuro é uma folha em branco
certamente está amassada
e cheia de vincos
o nome o rosto de um moço
que se invisibilizou
fazem com que os limites
da cidade de lisboa
se estendam até a alemanha
não compreendo que cartógrafos
ignorem tal força centrípeta
em seus mapas
que imperialistas e conquistadores
não tenham jamais adotado tal estratégia
para aumentar seus impérios
ora perder e então viajar



Ricardo Domeneck. Lisboa, 24 de setembro de 2011, no miradouro do Cais das Colunas.


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sábado, 8 de outubro de 2011

James Blake regrava "A case of you", uma das canções mais bonitas de Joni Mitchell, para seu novo EP, intitulado "Enough Thunder"


Com certeza trata-se de seu respeito pela tradição dos songwriters, à qual ele próprio parece querer pertencer, além de ser de uma esperteza brilhante. Após regravar "The limit to your love", de Feist, para seu album de estreia, James Blake agora regrava "A case of you", de Joni Mitchell, para seu novo EP, intitulado Enough Thunder (outubro de 2011). Imagino se ele tenta trazer alguma familiaridade para sua música, que talvez ainda seja para muitos ouvidos estranha. Ele certamente quer ser ouvido além das fronteiras do movimento que o catapultou, o do dubstep britânico. Não se pode virar estrela com aquela estranheza bonita. Justiça seja feita: sua regravação de "Limit to your love" mostra-o fiel tanto à canção como a suas origens. No caso de "A case of you", ele parece ter se curvado muito mais a Mitchell, é uma versão mais convencional e fiel, digamos, que "Limit to your love".

Por enquanto, minha canção favorita no EP é a deslumbrante (realmente deslumbrante) "Not long now", mas fiquei muito tocado por sua regravação de "A case of you", que mostro abaixo, na original de Mitchell e na versão de Blake, seguidas do texto. Que texto. Eu amo aquela primeira estrofe: "Just before our love got lost you said / 'I am as constant as a northern star' / And I said, 'Constantly in the darkness / Where´s that at? / If you want me I´ll be in the bar'".





Joni Mitchell - "A case of you", do álbum Blue (1971)



James Blake - "A case of you", de Joni Mitchell - versão gravada para o EP Enough Thunder (2011)


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A Case of You
Joni Mitchell

Just before our love got lost you said
“I am as constant as a northern star”
And I said “Constantly in the darkness
Where’s that at?
If you want me I’ll be in the bar”

On the back of a cartoon coaster
In the blue TV screen light
I drew a map of Canada
Oh Canada
With your face sketched on it twice
Oh you’re in my blood like holy wine
You taste so bitter and so sweet

Oh I could drink a case of you darling
Still I’d be on my feet
oh I would still be on my feet

Oh I am a lonely painter
I live in a box of paints
I’m frightened by the devil
And I’m drawn to those ones that ain’t afraid

I remember that time you told me you said
“Love is touching souls”
Surely you touched mine
‘Cause part of you pours out of me
In these lines from time to time
Oh, you’re in my blood like holy wine
You taste so bitter and so sweet

Oh I could drink a case of you darling
And I would still be on my feet
I would still be on my feet

I met a woman
She had a mouth like yours
She knew your life
She knew your devils and your deeds
And she said
“Go to him, stay with him if you can
But be prepared to bleed”

Oh but you are in my blood
You’re my holy wine
You’re so bitter, bitter and so sweet

Oh, I could drink a case of you darling
Still I’d be on my feet
I would still be on my feet


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sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Sobre Tomas Tranströmer e minha pequena nota na "Folha de S. Paulo" de hoje

Na segunda-feira, em correspondência com o artista brasileiro Laércio Redondo, radicado em Estocolmo há muitos anos, falávamos sobre o trabalho de dois poetas do país: Gunnar Ekelöf (1907 - 1968) e Tomas Tranströmer (n. 1931). Mal sabíamos que dois dias depois o segundo estaria nos jornais do mundo todo.

Ekelöf é praticamente uma instituição, sua obra é incontornável, muitíssimo influente. Eu o considero um dos poetas mais elegantes (e melancólicos) que já li. Todos os meus amigos suecos o leem, alguns são admiradores declarados. Já a posição de Tomas Tranströmer talvez seja mais complicada. Obviamente, é mais jovem (em comparação com Ekelöf), e, sendo um poeta contemporâneo, vivo, cai na rede das disputas pelas parcas vagas no cânone, na teia das comparações quase sempre injustas. Não sou sueco, não conheço os debates poéticos do país. Estive uma única vez em seu solo, e, ainda por cima, na cidade de Malmö, ligada por uma ponte a Copenhague, na Dinamarca. Tranströmer é, no entanto, o poeta contemporâneo sueco mais traduzido, publicado e conhecido fora do país. Está entre os poetas europeus mais famosos no continente, ao lado de autores como seu conterrâneo Lars Gustafsson, Paul Muldoon (da Irlanda do Norte), Yves Bonnefoy (França), Tomaž Šalamun (da Eslovênia), ou os recentemente falecidos Inger Christensen (Dinamarca) e Edwin Morgan (Escócia), sem mencionar os laureados Seamus Heaney (Irlanda) e Wislawa Szymborska (Polônia). Em minha opinião, a Alemanha não tem, hoje, um poeta que assuma este tipo de "estrelato". Aquela que é chamada por alguns de "Grande Dama da Poesia Germânica", minha adorada Friederike Mayröcker (Áustria), é praticamente desconhecida fora do ambiente germânico ou mesmo dentro dele. E, se pensarmos bem, mesmo estes autores não têm a influência, como public intellectuals, digamos, que T.S. Eliot teve no passado, ou Joseph Brodsky teve até a década de 80. A que Octavio Paz e Czesław Miłosz tiveram até suas mortes.

Ora, como brasileiros, sabemos que ser amplamente traduzido não é, em si, status que indique a importância do poeta em seu próprio país. Um dos poetas brasileiros vivos que mais encontro em tradução aqui na Europa é Ledo Ivo, e sabemos da insignificância de seu trabalho dentro do debate poético contemporâneo brasileiro.

Mas Tomas Tranströmer não é Ledo Ivo algum, eu ousaria dizer. Seu trabalho é de uma clareza bastante elegante, de uma simplicidade lírica que me alegra muito, até o ponto em que posso julgá-lo, conhecendo-o a partir de publicações em alemão e inglês. Soube através de alguns artigos lidos desde sua premiação com o Nobel ontem que sua religiosidade encontra resistência na Suécia, e que seu trabalho já foi acusado de "alienado", por "furtar-se à discussão das grandes questões". Sinceramente, eu nunca entendo bem o que querem dizer com "grandes questões". Se o envelhecimento, a morte e a desolação amorosa não são grandes questões, não sei bem o que seriam. Pergunto-me se poemas como "Citoyens", com seu relato de um sonho em que Danton e Robespierre comparecem, ou "Sobre a História", em que comparecem Goethe, Gide e Dreyfus, abordam este conflito.

Descobri o trabalho de Tranströmer há alguns anos, quando percorria os sebos de Berlim à procura das edições de poesia de uma casa editorial extinta, da antiga Berlim Oriental, que se chamava Verlag Volk und Welt (Editora Povo e Mundo), que publicava muitas antologias, de poetas muito diferentes entre si (tanto estética como politicamente), como Dylan Thomas, William Carlos Williams, Vladimir Maiakóvski, Ai Qing, Odysséas Elýtis, entre outros. Nesta coleção encontrei minha primeira antologia de poemas de Tomas Tranströmer, traduzidos para o alemão por poetas da Alemanha Oriental, como Richard Pietrass.

Soube que Tomas Tranströmer recebera o Prêmio Nobel de Literatura de 2011 de uma maneira curiosa. Ao chegar ao meu apartamento, após passar o dia cuidando de certas burocracias alemãs (kafkianas) necessárias, encontrei, antes de ler qualquer notícia, uma mensagem da Folha de S. Paulo, pedindo-me um comentário crítico (com espaço minguado) sobre o novo ganhador do Nobel, o poeta sueco Tomas Tranströmer, para a "Ilustrada" desta manhã. Tomada de surpresa, imagino que a redação estava em polvorosa para conseguir publicar algo de concreto sobre um poeta sem volumes traduzidos no Brasil. Eu mesmo, tomado de surpresa, tentei esboçar em algumas linhas o que pensava sobre Tomas Tranströmer e seu prêmio. Minha nota, editada, apareceu esta manhã, creio, no jornal. Deixo vocês com a nota, aqui expandida. Passarei os próximos dias lendo Tranströmer (estou carregando uma antologia alemã de seus poemas desde a tarde de ontem) e talvez volte a alguns dos pontos. Trata-se de uma pequena nota, cheia de impressões. Minha comparação, por exemplo, entre Tranströmer e Montale é extremamente subjetiva, e tem apenas a ver com a maneira como os dois poetas pareceram distanciar-se de uma noção de poesia pura a caminho de uma escrita mais marcada pelo quotidiano. Não é uma comparação hierárquica.


Tomas Tranströmer, com justiça
especial para a Folha de S. Paulo (versão ampliada)

É comum que a premiação de um poeta com o Nobel gere surpresa e a corrida por informações sobre o autor, tão frequentemente desconhecido, a não ser que se trate de pesos-pesados como T.S. Eliot, em 48, Czeslaw Milosz, em 80, ou Joseph Brodsky, em 87. O último poeta a ter seu trabalho reconhecido pelo prêmio foi a polonesa Wislawa Szymborska, em 1996, àquela altura também razoavelmente desconhecida fora da Europa. No ano anterior, a premiação do poeta irlandês Seamus Heaney causara alvoroço e surpresa parecidos. A década de 90 viu uma única premiação de um poeta parecer, digamos, óbvia, quando o santa-lucense Derek Walcott o recebera em 1992, ou Octavio Paz em 1990, tecnicamente ainda anos 80. Nenhum poeta foi premiado na última década. Talvez pudéssemos refletir sobre a recepção da poesia na cultura contemporânea a partir desta falta de equilíbrio, quando na verdade há ainda poetas muito influentes sem este reconhecimento, como o sírio Adonis ou o norte-americano John Ashbery, certamente mais famosos e influentes em âmbito global, pelo menos antes do Prêmio, que os novelistas Hertha Müller ou John M. Coetzee. No ano passado, quando o Prêmio concedido a Mario Vargas Llosa foi anunciado, eu estava participando da Bienal de Poesia organizada pela Universidade de Lieja, na Bélgica. Todos os participantes se mostraram decepcionados que o Prêmio não houvesse sido dado a Tomas Tranströmer, algo que tomavam por quase certo, e o sueco acabou recebendo o Prêmio da Bienal daquele ano, também concedido a outros poetas pouco ou muito antes do Nobel, como Giuseppe Ungaretti ou Saint-John Perse.

Tomas Tranströmer é hoje o poeta sueco mais traduzido no mundo, ainda que completamente desconhecido no Brasil, onde, com a exceção de publicações esparsas em revistas, o poeta ainda não teve volume publicado, pelo menos nada pude encontrar que estivesse em catálogo. Na Europa, é considerado um dos mais importantes poetas vivos do continente, e sua posição no cânone poético sueco do pós-guerra talvez só possa ser comparada à de Gunnar Ekelöf (1907 – 1968), pelo menos para olhos estrangeiros que contemplam a poesia do país do lado de fora de suas fronteiras.

Em poemas do início de sua carreira, como “Tempestade”, “Solitárias casas suecas” ou “Aquele que acordou com o canto sobre os telhados”, Tranströmer esposava uma poética de ritmos regulares, imagética clara e objetiva, o que talvez o ligue a poetas como o espanhol Jorge Guillén, ao francês Paul Valéry. Aos poucos, sua obra enriqueceu-se de ritmos, passando a adotar versos longos, em poemas de fôlego, como no belo “Mares do norte”, em que versos de ritmo quase sálmico unem-se à técnica da enumeração e a quase-prosa que Allen Ginsberg tornaria famosa e popular em um poema como “Uivo”.

Tranströmer a empregaria ainda em poemas como “Schubertiana”, ou recorreria à prosa propriamente dita em textos como “Funchal” e “Respostas breves”. Ele, no entanto, não parece querer tomar partido entre oposições como objetividade e subjetividade, tradição e vanguarda. Tais oposições parecem encontrar guarida natural em sua obra, com delicadeza e elegância. Mesmo em seus livros posteriores retorna à tradição da poesia nórdica, mas com uma simplicidade que parece ser fruto de uma sabedoria arduamente conquistada.

O desenvolvimento de sua poesia por vezes me lembra a de Eugenio Montale, outro premiado com o Nobel. Com 80 anos, nascido em Estocolmo em 1931 (o que o torna contemporâneo de poetas brasileiros como Ferreira Gullar e Augusto de Campos), o poeta luta há tempos com sérios problemas de saúde. Este prêmio talvez venha agora como a coroação de uma obra que, desde seu primeiro volume em 1954, balança-se em equilíbrio elegante entre a tradição europeia de uma poesia metrificada e pura, e as contribuições das vanguardas que levaram a poesia ocidental a novos territórios rítmicos e temáticos.

O que podemos esperar é que o poeta receba agora maior acolhida no mercado editorial brasileiro.


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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Poemas que continuam salvando minha vida: "Tu estás aqui", de Ruy Belo

Ruy Belo


Sei bem que a esta altura, ou talvez devesse dizer a esta fundura do campeonato entre poços, eu deveria deter minha boca ao perceber outro louvor a escapar-se dela, deveria estar ocupado na prática de imprecações, fazendo as maldições de Violeta Parra em "Maldigo del alto cielo" parecerem muxoxos, pois é realmente difícil esquecer quando nossa mente faz tudo para obliterar com tampões de palavras as obturações da Oblivion, e ele, ora, não está mais aqui, e mesmo assim eu digo: "Tu estás aqui", como se eu vivesse no poema de Ruy Belo, o sortudo.



Tu estás aqui
Ruy Belo

Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-las para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui


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domingo, 2 de outubro de 2011

"O poeta lírico na Sala de Justiça"


.........................................O poeta lírico na Sala de Justiça

.........................................eu e eu sempre
.........................................sonharemos ser
.........................................super
.........................................heróis, talvez
.........................................que se tocassem
.........................................com anéis
.........................................(se não
.........................................de casamento)
.........................................mas dissessem
.........................................por exemplo
........................................."super-siameses,
.........................................ativar!", a ejetar
.........................................relâmpagos
.........................................mutatis mutandis
.........................................enquanto eu
.........................................asseveraria
........................................."forma de Macaca
.........................................fuscata
!"
.........................................(por ter róseos
.........................................e desprotegidos
........................................ os glúteos)
.........................................e eu
.........................................acrescentaria
........................................."forma de um
.........................................pé de gelo!"
.........................................e dessarte
.........................................eu e eu
.........................................pelos séculos
.........................................dos séculos
.........................................nos bastaríamos


Ricardo Domeneck, setembro de 2011, iniciado num avião entre Lisboa e Berlim, terminado em minha cama entre cigarros e risadas do ridículo de si mesmo.


§

Para os muito jovens, o "contexto histórico":



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