terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Alguns poemas brasileiros: "Paupéria revisitada", de Ricardo Aleixo

Sigo com a série sobre os poetas convidados para o festival de Poesia de Berlim, lendo hoje com vocês um de meus poemas favoritos a sair da mão e garganta de Ricardo Aleixo (Belo Horizonte, 1960), o excelente exemplo de poesia satírica contemporânea que é "Paupéria revisitada", mostrando-nos claramente como a poesia pode ainda exercer algumas de suas funções milenares em meio à comunidade linguística e política a que pertence e na qual se insere. Sem perder a qualidade em sua materialidade de signos, o texto caminha ainda entre a tradição literária e a oral... ora, sequer é realmente ainda necessário fazer estas distinções dualistas, é simplesmente poesia como se fazia no Medievo, entre os Goliardos, por exemplo - escritoral. Os melhores poetas contemporâneos hoje no Brasil, em minha opinião, os que estão tomando para si o desafio de reconquistar o público de poesia que se perdeu entre os anos 80 e 90, têm conquistado seus melhores resultados justamente no campo da poesia satírica. Aqui, Aleixo consegue ao mesmo tempo exortar tanto os produtores quanto os consumidores. Parece-me um poema mui bem sucedido.


Paupéria revisitada
Ricardo Aleixo

Putas, como os deuses,
vendem quando dão.
Poetas, não.
Policiais e pistoleiros
vendem segurança
(isto é, vingança ou proteção).
Poetas se gabam do limbo, do veto
do censor, do exílio, da vaia
e do dinheiro não).
Poesia é pão (para
o espírito, se diz), mas atenção:
o padeiro da esquina balofa
vive do que faz; o mais
fino poeta, não.
Poetas dão de graça
o ar de sua graça
(e ainda troçam
— na companhia das traças —
de tal “nobre condição”).
Pastores e padres vendem
lotes no céu
à prestação.
Políticos compram &
(se) vendem
na primeira ocasião.
Poetas (posto que vivem
de brisa) fazem do No, thanks
seu refrão.

Máquina Zero (2004)

§



§

Na Oficina de Tradução do Festival de Berlim, Ricardo Aleixo terá por parceira a poeta alemã Barbara Köhler (n. 1959), que estreou em livro com Deutsches Roulette. Gedichte 1984-1989 (1991), e desde então publicou sete livros, o último sendo Niemands Frau. Gesänge zur Odyssee (2007). Barbara Köhler traduziu Gertrude Stein e Samuel Beckett para o alemão, nos volumes:

Gertrude Stein: zeit zum essen. eine tischgesellschaft. objects, food and portraits by Gertrude Stein (Audio-CD, 2001)
Gertrude Stein: Tender Buttons. Zarte knöpft (2004)
Samuel Beckett: Trötentöne / Mirlitonnades. Gedichte (2005)


Como nas postagens com poemas de Horácio Costa e Jussara Salazar, gostaria de encerrar com outros poemas, mas creio que o melhor é simplesmente reproduzir aqui o artigo sobre Ricardo Aleixo, com vários poemas, que preparei especialmente para a Modo de Usar & Co. em outubro de 2008.



Ricardo Aleixo
por Ricardo Domeneck, especial para a Modo de Usar & Co.
20 de outubro de 2008


Ricardo Aleixo nasceu em Belo Horizonte, em 1960. Seu trabalho vem crescendo e fertilizando-se nas fendas entre disciplinas da nossa ainda engessada taxinomia de gêneros, aumentando as fissuras na superfície do fixo, já que logo abaixo o campo que une as atividades artísticas do poeta é um campo comunitário, compartilhável. Assim, podemos chamá-lo de poeta, artista visual e sonoro, compositor, locutor, performador, ensaísta, curador. No entanto, acredito que o fluir poético de seu trabalho une perspectivas diversas, que acabam muitas vezes separadas no discurso crítico monológico, e ele está entre os poetas que se formaram na década de 80/90 e iniciaram um processo de renovação do conceito de Joyce/Noigandres do verbivocovisual, renovação que se manifesta em uma multiplicidade de ênfases, fazendo de seus poemas (escritos, sonoros, corporais) "quinas", ângulos dos quais se pode observar o território poético das linguagens do poeta contemporâneo, daquele que gosto de chamar de multimedieval. O próprio poeta mineiro chama seu trabalho de "reverbvocovisual".

Se podemos discutir seu trabalho concentrando-nos em cada manifestação específica, como muitas vezes se faz, lançando o foco sobre seu trabalho literário, sua escrita, seus livros de poemas, creio que no caso de Ricardo Aleixo esta prática é especialmente prejudicial para a compreensão do alcance de sua poesia.

O trabalho com a oralidade e a prática da poesia sonora, no Brasil, ainda parecem tratadas como apêndices do núcleo literário do trabalho poético. A partir da década de 80, poetas como Philadelpho Menezes, Arnaldo Antunes, André Vallias e Ricardo Aleixo entregaram-se ao trabalho de renovação poética de certos paradigmas da poesia de vanguarda, tanto do início do século como do pós-guerra, momento em que vários grupos espalhados por cidades como São Paulo, Paris, Viena, Berlim, Nova Iorque e Tóquio retomaram as estratégias de grupos como o do Cabaret Voltaire. No caso destes poetas brasileiros dos anos 80/90 (após mais um período de nova retomada destas estratégias, como no caso da revista L=A=N=G=U=A=G=E e de certos grupos berlinenses), o trabalho é feito a partir de graus e ângulos distintos, trazendo mais uma vez perturbações para o já documentado, de certa forma, com as novas tecnologias.

O caso de Ricardo Aleixo parece-me particularmente interessante pois, se ele claramente passa a fazer uso das novas possibilidades tecnológicas para esta renovação verbivocovisual, há ainda em seu caso a introdução de perspectivas de outros códigos e culturas, e o que me parece especialmente fascinante em seu trabalho é a tentativa permanente, em sua "obra permanentemente em obras", de atingir um equilíbrio entre verbo, voz e escrita, transformar o verbivocovisual em uma espécie de tríade rotativa de ênfases não-hierarquizadas. Neste aspecto, torna-se essencial compreender a importância da performance em seu trabalho, não apenas como prática artística, mas a partir de suas implicações est-È-ticas, quando um poeta decide fazer de seu corpo o eixo de rotação e translação de sua linguagem e de suas intervenções nela e através dela. É por isso que, antes de discutir os textos escritos ou as peças sonoras de Ricardo Aleixo, eu gostaria de falar sobre o seu "poema corporal", que incorpora o visual em todos os seus meandros, a partir do seu poemanto.





Conheço este trabalho, infelizmente, apenas por fotografias e vídeos, mas sinto a necessidade de iniciar este texto de apresentação de certas peças poéticas de Ricardo Aleixo com esta sua criação. No segundo fragmento do poema-ensaio "O Poemanto: Ensaio para Escrever (com) o Corpo", Aleixo escreve:

Movendo-me ali,
na exigüidade espacial
das efêmeras formas escultóricas
produzidas pelas corpografias
que improviso,
tenho vivido situações que,
por ultrapassarem
a dimensão da performance
(como gênero artístico),
projetam-me numa zona
de percepções expandidas,
em nada semelhantes a
experiências vivenciadas
no cotidiano.


Contemplar este vídeo-performance de Aleixo traz imediatamente à mente e ao corpo uma variedade de referências e implicações do trabalho poético:


(Ricardo Aleixo, "des(continuida(des # 1", poema visual e performance com poemanto)


Se pensamos imediatamente em Arthur Bispo do Rosário e seu "Manto para encontrar Deus", (artista que poderia ser visto como um dos mais espetaculares poetas-visuais do pós-guerra) outras referências inundam a mente. Pois, aqui poderíamos mencionar outro aspecto importante da obra de Ricardo Aleixo, aquele que acaba sendo descrito muitas vezes como "etnopoético", seguindo o conceito de Jerome Rothenberg. Em seu segundo livro, A Roda do Mundo (1996), Ricardo Aleixo publicara uma série de poemas para os orixás afro-brasileiros, e observar a performance poética de Aleixo no "poemanto" é adentrar o território poético-xamânico, pensar, ao mesmo tempo, tanto em orixás como Obaluaye ou Omolu, quanto em artistas como o Joseph Beuys da performance "I like America and America likes me" ou o Hélio Oiticica dos "Parangolés". O próprio Aleixo aponta para algumas destas referências em seu texto "O Poemanto...", mencionando Arthur Bispo do Rosário, Hélio Oiticica e comentando a semelhança entre o "Poemanto" e o culto dos eguns.

O que mais me interessa, porém, é o grau inédito de CORPoralidade que encontramos em seu trabalho. Mesmo em Augusto de Campos (ou Arnaldo Antunes) encontramos em grande parte o trabalho "textual-sonorizável", como no maravilhoso "cidade/city/cité". O trabalho sonoro de Ricardo Aleixo afasta-se em grande parte do que eu chamaria de "tentação do transcrevível", fazendo uso da oralidade como manifestação poética em si, menos dependente da escrita que a fixa que do corpo que a produz. Sem buscar hierarquias entre oralidade e escrita, respeitando cada uma em sua manifestação e necessidade/utilidade para o poeta, Ricardo Aleixo vem produzindo uma obra em que o poético só pode ser compreendido em sua multiplicidade, sem gerar contradições entre voz e signo, sem opor a concretude de uma à concretude da outra. Em uma entrevista, perguntado sobre este possível "paradoxo" do poeta sonoro que escreve livros, Aleixo respondeu:

"Não vejo qualquer paradoxo nisso. Proponho a oralidade, ou melhor, a vocalidade, como um elemento composicional tão importante, na confecção do poema, quanto as palavras, os silêncios e tudo o mais. Voz como, ela própria, um dispositivo tecnológico, compreende? Não há, no meu projeto criativo, dicotomia entre a voz e a letra, para retomar aqui o título de uma obra fundante de Paul Zumthor. Ambas são, na melhor das hipóteses, complementares."


Na resposta, Aleixo cita outra referência essencial para o seu trabalho, o estudioso suíço da oralidade/vocalidade, Paul Zumthor. Seu estudo Introduction à la poésie orale (1983) é uma das leituras mais importantes para qualquer poeta interessado na multiplicidade poética que vai além da escrita. No entanto, ainda que Zumthor muitas vezes assuma a posição de ativista anti-literário, chamando nossa atenção para os perigos da hegemonia da escrita e o que ele vê como a consequente opressão da oralidade, Ricardo Aleixo tem buscado uma perspectiva não-hierárquica.

Uma das peças sonoras de Ricardo Aleixo que mais aprecio é o poema sonoro "Ratos podem pensar". O processo de criação deste poema ilumina alguns dos aspectos que venho discutindo. Trabalhando com a própria voz, assim como a voz do músico Benedikt Wiertz, de sua filha Flora, de 5 anos, e sua mãe Íris, o poema é um belíssimo exemplo do trabalho sonoro de Ricardo Aleixo.

Interessa também tomar esta peça para ilustrar como críticos agem, muitas vezes, de forma pueril diante do trabalho poético sonoro e oral, crendo que, ao transcrever o "texto", transportando-o do registro oral para o escrito, podem então julgar este "texto" sob os parâmetros unívocos daqueles que trabalham com o poético-literário.

Baseando-se na simples frase "Ratos podem pensar como os humanos", e trabalhando-a com sua mãe e filha, unindo estas vozes à colagem de material sonoro alheio, esta peça é uma investigação potente e tocante do processo de aquisição e perda da linguagem, pois Aleixo trabalha com sua filha de 5 anos, passando pelo maravilhoso processo de aprendizagem do arcabouço lingüístico da cultura em que nasceu e dos variados usos desta linguagem, e com sua mãe, que passa pelo doloroso processo de perda da linguagem, num avançado estágil da condição primeiramente diagnosticada por Alois Alzheimer em 1901.


("Ratos podem pensar", poema sonoro de Ricardo Aleixo, 2008)

A única fruição possível para esta peça é a sua audição, como deveria ser com toda peça poética baseada na voz, na oralidade, na corporalidade, desmascarando a discussão limitada que ainda é regida no Brasil por literatos que não compreendem a especificidade do trabalho poético-sonoro. Esta peça de Ricardo Aleixo assume forte carga conceitual, sem perder de vista o dictum poundiano de que only emotion endures, numa peça que pede ser compreendida nos termos em que foi composta, abrindo as perspectivas críticas para suas implicações.

Abaixo, a peça sonora "Margens", de Ricardo Aleixo, que trabalha a partir de outro texto conciso, parco, que passa a assumir uma multiplicidade de sentidos com as qualidades de indeterminação apresentadas pela oralidade:


("Margens", poema sonoro de Ricardo Aleixo)

Ricardo Aleixo retoma algumas da estratégias das vanguardas do início do século e do pós-guerra, em um trabalho que se baseia no que chamo de poética de implicações. O uso da colagem sonora liga-o tanto aos poetas do Cabaret Voltaire como aos Lettristes parisienses e a Henri Chopin.

Abaixo, um dos poemas visuais de Ricardo Aleixo, em que o poeta se entrega ao cultivo de texturas sonoras e visuais, cageanamente justapostas. O poeta o descreve nos seguintes termos: "Radiovideoarte. Refilmagem, por meio de dispositivos os mais diversos, de fragmentos de imagens extraídas de trabalhos anteriores do autor. Sons de rádio misturados à antipercussão gerada pela inserção de objetos como papel e isopor no espaço entre os dois microfones de um gravador digital. Finalizado em outubro de 2008."

Mobilestabile from ricardo aleixo on Vimeo.



Seu trabalho literário talvez seja o mais conhecido. Estreou com o livro Festim (1992), publicando nos anos seguintes os livros A Roda do Mundo (1996, em colaboração com Edimilson de Almeida Pereira), Quem faz o quê? (1999), Trívio (2001), A aranha Ariadne (2003) e Máquina zero (2004).

O poeta, que já declarou ter em Augusto de Campos e Sebastião Nunes dois de seus principais mestres, tem marcado seu trabalho poético pelo uso est-É-tico do parco, do pouco, em uma sensibilidade que me parece ir além do "gosto pelo objetivo", mas que parece surgir de uma necessidade espiritual implícita de aceitação e criação ética de um espaço de poesia povera. A exuberância em seu trabalho surge a partir da multiplicidade que consegue unir singeleza e veemência. Em seu primeiro livro, encontramos o poema "Linhas":

incontáveis linhas
como que dispersas
impensáveis línguas
como que dos persas
cruzam-se no infinito:
ou tornam-se linguagem
ou deixam o dito
por não dito

[de Festim, 1992]

Em seu último livro publicado, Máquina Zero (2004), esta poesia assume caráter político de resistência e indignação. Um de seus textos chama-se "Paupéria Revisitada":

Putas, como os deuses,
vendem quando dão.
Poetas, não.
Policiais e pistoleiros
vendem segurança
(isto é, vingança ou proteção).
Poetas se gabam do limbo, do veto
do censor, do exílio, da vaia
e do dinheiro não).
Poesia é pão (para
o espírito, se diz), mas atenção:
o padeiro da esquina balofa
vive do que faz; o mais
fino poeta, não.
Poetas dão de graça
o ar de sua graça
(e ainda troçam
na companhia das traças
de tal “nobre condição”).
Pastores e padres vendem
lotes no céu
à prestação.
Políticos compram &
(se) vendem
na primeira ocasião.
Poetas (posto que vivem
de brisa) fazem do No, thanks
seu refrão.


[de Máquina zero, 2004]


Muito poderia ainda ser dito sobre o trabalho de Ricardo Aleixo, mas o espaço de um blog não permite grandes incursões mais profundas. Melhor é disponibilizar e reunir para os leitores/espectadores/ouvintes algumas das peças escritas, sonoras e visuais de Ricardo Aleixo, este poeta "reverbvocovisual" e "multimedieval".

---nota de Ricardo Domeneck.

§

Abaixo, apresentamos poemas visuais e escritos de Ricardo Aleixo,
com três poemas inéditos.


TRÊS POEMAS INÉDITOS DE RICARDO ALEIXO:



Cabeça de serpente

a serpente morde a própria cauda. a serpente pensa que morde a própria cauda. a serpente apenas pensa que morde a própria cauda. a serpente morde a própria cauda que pensa. a serpente morde a própria cauda suspensa. a serpente pensa que a própria cauda morde. a serpente pensa com a própria cabeça. a serpente sonha que simula o próprio silvo. a serpente sonha ser outra serpente que simula o próprio sonho e silva. a serpente pensa e silva selva adentro. a serpente sonha que pensa e no sonho pensa que as serpentes sonham. a serpente pensa que sonha e no sonho pensa o que as serpentes pensam. a serpente morde sem pensar no que pode. a serpente pensa que morde a própria causa. a serpente pensa e morde em causa própria. a serpente pensa e morde apenas o que pensa. a serpente pensa que pensa e morde o que pensa. a serpente morde o que pensa e o que morde. a serpente pensa o que pensa a serpente. a serpente se pensa enquanto serpente. a serpente se pensa enquanto ser que pensa. a serpente pensa o que pensam as serpentes. a serpente morde o que pensa a serpente. a serpente morde o que mordem as serpentes. a serpente morde o que pode. a serpente pensa em se morder. a serpente morde sem pensar o que pode. a serpente morde sem pensar o que morde o que pode. a serpente morde o que morde. a serpente morde enquanto pode. a serpente pensa sem palavras. a serpente só não pensa a palavra serpente. a serpente só não morde a palavra serpente. a serpente pode o que pode sem palavras. a serpente morde o que pode sem medir palavras. a serpente mede de cabo a rabo a própria cabeça. a serpente emite a própria sentença. a serpente morde a própria cabeça


[de Modelos vivos, inédito]


§§§


Estrondo

para Maria Esther Maciel


Naquele entrecho
mais lento dos
dias, aqui, onde,

não importa o
modo como os pés
pisem as folhas

ao caminhar, o
barulho quebradiço
da sombra deles

(espraiada entre
a calçada e as
pedras-escombros

da casa) bem poderia,
se ouvido por
uma detalhista

como você, ser
chamado de troar,
estouro, estrondo.


[de Modelos vivos, inédito]


§§§


Noite


O menino viu
sair da boca

da mulher, talvez
sua mãe, uma voz

estrídula e lábil, que
logo desandou,

em cadência
de sonho, a quê?

– A enumerar desas-
tres já ocorridos

e por ocorrer,
a fecundar

harpias, a frisar
as marcas

da passagem
da pantera pelo quarto,

a aturdir relógios,
a enegrecer o sol

e outras mais
de tais proezas.


[de Modelos vivos, inédito]


§§§

Poema visual-sonoro de Ricardo Aleixo:



Real irreal from ricardo aleixo on Vimeo.
("Real irreal", Ricardo Aleixo. Videopoema. Direção, câmera, edição, poema, voz e sound design: Ricardo Aleixo. 2008)

§§§


Texto de Ricardo Aleixo,
acompanhando uma tradução de Hans Magnus Enzensberger
em seu blog:



Este poema não é meu. Este é um poema escrito pelo alemão Hans Magnus Enzensberger. Este é um poema que eu não posso ler no original. Este é um poema que só posso ler em português. Este não é um poema português. Este é um poema escrito em alemão por um alemão e traduzido para o português falado no Brasil por Kurt Scharf (um alemão?) e por (um brasileiro?) Armindo Trevisan. Este é um poema que decidi postar no meu blogue. Este poema agora é meu. Este é um poema que você está lendo como se fosse seu. Este poema é seu.


§§§


Monovolume: liberdade em ângulo




Mary Vieira grafa a concreto
o discurso reto
do mito
da liberdade do homem
numa praça da cidade vazia
(com seus mais de dois milhões
de habitantes)
onde todo mundo
conhece todomundo
mas faz que não
que nunca nem viu antes, vi
vo

[de Festim, 1992]


§§§


Poética


Aprendi com Valéry
um pouco disto que faço:
“Eu mordo o que posso”
(palavra, carne ou osso)
Me acho
me acabo de vez
me disfarço

[de Festim, 1992]

§§§

Cine-olho


Um
menino
não.
Era
mais
um
felino
um
Exu
afelinado
chispando
entre
os
carros
-
um
ponto
riscado
a
laser
na
noite
de
rua
cheia
-
ali
para
os
lados
do
Mercado.



[de A roda do mundo, 1996]


§§§


Xangô


O que
lança pedras
de raio
contra a casa
do curioso
e congela
o olhar do
mentiroso.
Leopardo,
marido de Oiá.
Leopardo,
filho de Iemanjá.
Xangô cozinha
o inhame
com o vento
que sai
de suas ventas.
Dá um nome novo
ao muçulmi.
Ele fica vivo
quando pensam
que já está morto.
Orixá que mata
o primeiro
e mata
o vigésimo-
quinto.
Xangô persegue
o cristão
com seu grito,
nuvem
que ensombra
um canto do céu.
Leopardo
de olhar coruscante,
não permitas
que a morte
me leve
um dia
antes.

[de A roda do mundo, 1996]


§§§


Mamãe grande


todas
as águas do mundo são
Dela. fluem
refluem nos ritmos
Dela. tudo que vem.
que revém. todas
as águas
do mundo são
Dela.
fluem refluem
nos ritmos Dela.
tudo que
vem. que revém.
todas as águas
do mundo
são Dela. fluem
refluem
nos ritmos Dela. tudo
que vem.
que revém.


[de A roda do mundo, 1996]

§§§


Mesmo esta agora, é


Nunca pude escrever nem uma
única linha sobre as casas onde morei.
Nunca, para você ter uma idéia,
alguma delas amanheceu com
estrondos, fendas inexplicáveis ou um
gato degolado junto às rosas
e à pequena horta.

Eram casas, apenas. Estruturas,
antienigmas, pedras encimando
pedras. Mesmo esta, agora, é
uma mera máquina de signos –
demasiado gastos para que se extraia
dela, na melhor das hipóteses, mais
que uma outra (mera) máquina de
signos gastos.


[de Trívio, 2001]


§§§


Dedicatória


Prefiro a paciente
proeza das traças,

meu caquético rapaz,
aos versinhos

bem traçados
dos quais

te mostras capaz
(assépticos e sérios

como os de
ninguém mais).

Ah! Ler-te é
penetrar na paz

dos cemitérios.
Pelo modo como caminhas,

nota-se que ainda
respiras, mas

já entreleio,
junto aos títulos

dos teus livros,
os dois precisos

vocábulos
("Aqui jaz")

com que, um dia,
te saudarão os vivos.


[de Máquina zero, 2004]

§§§


Máquina zero


Quarto dia: entendo que o q
ue preciso, se q

uero mesmo continuar a p
erambular com alguma chance de êxito p

or uma cidade ( duas ) como Berlim, é
de sapatos de largo fôlego. Caminho ( penso e

nquanto caminho ), permeável a t
udo: ao frio sol cortante, às crianças t

urcas com seu comércio informal de b
rinquedos usados, à b

eleza sem rumo da adolescente que ( longas p
ernas abertas sobre um p

rosaico selim de bicicleta ) c
avalga o c

omeço da tarde, aos grafites que “d
ariam belas fotos”, à Topografia d

o Terror, às ruínas, ao r
asta que me saúda ( “R

asta!” ) na Wilhelmstrasse, às l
ascas do Muro na vitrine da pequena l

oja, ao a
marelo-zoom do metrô a

pontando na curva a
ntes do teatro, à

História,


[de Máquina zero, 2004]

§§§§

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