quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Dicionário sem memória


                           "Demasiado velho para pegar em armas e combater como os demais
                            foi-me generosamente atribuído o cargo inferior de cronista
                            e registro – sem saber para quem – a história do cerco"

                                                Zbigniew Herbert, "Crônica de uma cidade sitiada"


Quando a base da pirâmide
ensaia mover-se, o cume
não cambaleia
ou desequilibra-se
de suas certezas cimeiras.
Em Tácito, Percênio
não passa de um bufão,
as legiões panônicas
um bando de preguiçosos
oportunistas entre o féretro
de Augusto e a tiara a Tibério.
Quem hoje negaria
reivindicação tão plausível
de um denário
por jornal, serviço
de dezesseis anos?
Insolência plebeia.
"Estão ociosos,
por isso gritam",
disse Faraó dos hebreus
e aumentou-lhes
sobremaneira a carga
horária sem holerite.
E mesmo a Euclides
custou bipartir o Sertão.
Ainda assim, desfilamos
a cada Quinze de Novembro
para festejar
outro golpe de milicos.
Repitam comigo:
Peixoto, Vargas, Médici.
Vem aí a nova novela das 7.
"Mudar para não mudar", cerne
da ordem e progresso
na República Federativa.
Dos irmãos Vinagre
à Revolta do vinagre,
de Palmares à Chibata,
rebelar-se contra o castigo
convida mais chicote
e acinte. Nas cenas
do próximo capítulo,
veremos na acrópole
e na ágora, na Augusta
e no Senado, os cidadãos pasmos
ante rebeliões de ex-escravos,
e outros bárbaros subjugados
que recusam e questionam
suas dádivas civilizatórias.
Que se contentem
como metecos, brada-se
do Oiapoque ao Chuí.
Onde já se viu?
Classes
inferiores exigindo catarse
em seus teatros, ao alcance
de sua acústica?
É o fim das pilastras
dóricas desse Eldorado.
Há quem tenha dicionário
mas não muita memória.
"Guerra psicológica",
pronuncia a presidente
cercada de engenheiros,
não de poetas. Mas,
como vimos em Tácito,
sabe-se que mesmo escribas
defendem sua gleba.
Toda transição
tem seus desafetos.
Augusto e Tibério,
Lula e Rousseff.
Tive menos sorte
que Catulo, não apenas
na repartição do talento:
aquele ao menos
morreu numa República.
Ora viva nossa crônica
Síndrome de Estocolmo.
"Ó abre alas", 
mas não muito largas
pois vivemos
em cidade sitiada.
Do Velodrôme d´Hiver
ao Reformatório Krenak,
de Deir ez-Zor a Babi Jar,
de Guantanamo a Guanajay, 
de Wounded Knee e Sandy Creek
a Haximu e Capacete.
Sabemos o destino
dos povos menores
a cada Queda de Muro.
O Gigante acordou, Johnny Walker
não
anda de ônibus.
A História
ora uma graphic novel,
e o velho  tédio
de ouvir o capitão
gritar "Isso é motim!",
no filme, quando começa
o motim. Você
já foi a Inhotim?
Perdoem-nos, leitores.
Escritores vivemos confusos,
em nosso pledge of allegiance,
desde 1789. E 1917
deixou-nos propriamente
esquizofrênicos.
Mais um ano,
mais mil danos
e nenhum substituto
para o Angelus Novus.
Sim, lamentamos as lacunas
da narrativa, todos os mortos
que não tiveram tempo
de ter seus próprios capítulos,
ou sequer suas notas
de rodapé, mas History,
queridos,
is the chronicle of leftovers.
E em certos países, restos
são a nutrição perfeita
na lavagem para porcos.



(dezembro de 2013 - janeiro de 2014)


§

Nota:


Com os últimos versos escritos em 2013 e os primeiros de 2014. A primeira ocasião, uma releitura de Auerbach. A última? Os últimos acontecimentos risíveis da República.

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