quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Ibn Sahl & Lorca. O sexo. A idade. A morte. De poetas e seus leitores.


Aos atuais e futuros assassinos nossos

Este texto começou como uma celebração dos poetas Ibn Sahl e Lorca, e foi, ao longo do fim de semana, após as últimas notícias da República Federativa, transformando-se em outra coisa, entre o ponto do choro e o do vômito.



Descobrir um texto do jovem poeta Abu Ishaq Ibrahim Ibn Sahl al-Isra’ili al-Ishbili, ou apenas Ibn Sahl, dito de Sevilha, porque ali nasceu em 1212, no al-Andalus. Ler seu poema.

Muitas vezes um belo rapaz de lábios rubros
me pergunta sorrindo: – qual a tua religião?
Eu lhe respondo: em teu amor encontro minha fé,
meu paraíso, meu Deus e minha eternidade.



(Tradução de Paulo Azevedo Chaves, in Nus. Editora Comunicarte, 1991).


Ler que era judeu homossexual convertido ao Islã, de quem o regente almorávida de Ceuta, Abu Ali Ibn Khallas, diria quando morto num naufrágio: "a pérola retornou ao mar". Pensar então em Federico García Lorca, na mesma Andaluzia, agora sob domínio cristão, escrevendo 700 anos depois.

El amor duerme en el pecho del poeta
Federico García Lorca

Tú nunca entenderás lo que te quiero 
porque duermes en mí y estás dormido. 
Yo te oculto llorando, perseguido
por una voz de penetrante acero.

Norma que agita igual carne y lucero 
traspasa ya mi pecho dolorido
y las turbias palabras han mordido 
las alas de tu espíritu severo.

Grupo de gente salta en los jardines
esperando tu cuerpo y mi agonía
en caballos de luz y verdes crines.

Pero sigue durmiendo, vida mía.
Oye mi sangre rota en los violines.
¡Mira que nos acechan todavía!



Pensar em rapazes de lábios rubros que me tiraram o fôlego. Como aquele berlinense dentre os favoritos, que foi batizado, por seus pais, Lorcan. Lorcan?! Como não o celebrar como príncipe, não de forma arcana, mas lorcanamente?



Ricardo  Domeneck - "Lorcan" (2010)


Ciúmes
Ana Cristina Cesar

Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma 
Tão distraidamente


Perceber então que os dois poetas morreram com a mesma idade. Ibn Sahl em 1251, Lorca em 1936, ambos com cerca de 38 anos de idade. Perceber que eu próprio estou quase com 38. Escrever, em inglês e português, versinhos de desespero amuado.


RSVP
Ricardo Domeneck

Ey pesar, chico, boy oh boy, 
you are so real, it´s surreal. 
I'm as old as Lorca, Ibn Sahl, 
as they died. Please, hurry.


:

Ey pesar, chico, boy oh boy,
és tão real, parece surreal.
Tenho a idade de Ibn Sahl
e Lorca mortos. Vem, corre.




Ver que menino, em persa, é pesar. Pensar que apropriado. Todo amuado na vida individual.

Mas então ler a notícia de que outro adolescente homossexual foi torturado e assassinado no Brasil este fim de semana. Sentir-se imerso, para além da solidão pessoal, na vida de outros. Na morte de outros. Pensar nos direitos humanos na República. Não a de Catulo, mas a minha, onde, cidadão, sou meteco, membro de segunda categoria. Escrever outro poema de desespero amuado, entre o ponto do choro e o do vômito.


Hino à Bandeira
Ricardo Domeneck

Recebe o afeto que se encerra
em meu peito putanil, querido,
este címbalo da nossa guerra.

Não é à toa que colegas persas
a clamar vocativos a meninos
vocalizavam aquele Ey pesar.

Dos pênis eretos, ponte pênsil
que une amores sim místicos
pelo épico de nosso epidídimo

a um Eros que chega, perpassa
todas as lágrimas geográficas
a inundar a nossa casta poesia.

Séculos depois, gosto de pensar
em Lorca, naquela Andaluzia,
dizer Ey pesar, que mono estás!

einem Buben, to a boy, un chico,
ciente de Ibn Sahl e Jack Spicer
a mirar por meus olhos meninos:

declarar este nosso ato vingativo
a vós que vos fazeis açougueiros
de príncipes, persas e brasileiros.



Perceber que eu tenho quase a idade dos poetas quando mortos. Pensar em outros que chamo de parapatriarcas. Frank O´Hara e Jack Spicer mortos aos 40. Pensar que outros de minha laia morreram ainda mais cedo. Mario Faustino, Ana Cristina Cesar.

Mas que muitos de nós foram mortos, torturados, enforcados, condenados à morte por servir a um Eros talvez tão-só reflexivo, sem escrever poemas que nos fizessem lamentá-los. Sentir uma penúria enorme, uma vontade de atiçar-se e acender-se em fogo perante um Congresso, um Parlamento, uma Igreja. Escrever mais versinhos de desespero amuado.


Certidão de ineficiência
Ricardo Domeneck

No trigésimo-sétimo de minha anuidade,
marinando no próprio suor, estirado
num colchão, a barba já cinza,
cansado de livros e filmes,
como os dias, um após o outro, as mãos
doloridas da ninharia de Onan
que entretem por minutos a ciência
de todos os usos mais lúcidos
do corpo, percebo que me foi dado 
o mesmo tempo que tiveram 
Cruz e Sousa, Radnóti, Maiakóvski, Lorca,
ainda assim mais que outros. E daí? 
Não há linha de chegada, não há troféu, 
que imbecilidade 
seria me comparar ao sucesso 
destes que hoje são ossos e obras
completas. 

Houve um tempo em que cria
que sobreviveria 
se passasse dos trinta e dois 
por ser a idade em que alguns favoritos 
fizeram o check-out
Augusto dos Anjos, Pedro Kilkerry,
para mencionar apenas os que compartilharam
comigo desta terra que ora os cobre,
e vejo que qualquer faixa etária 
é boa para a morte
e garante farta companhia de poetas.

Fui útil, funcional, coringa da comunidade,
moringa lacrimal? Só enxuguei o choro
onde devia ter tolhido a lágrima pelo corte
conjunto da cabeça, distraí por segundos
o que talvez
estivesse desperto para as manchetes
do jornal e quase a tirar da bainha
a parúsia, mas meus lullabies
poetizados tão-só
o mandaram de volta ao sofá.
Mesmo os punti luminosi 
pessoais, que assíduo 
coletei e colhi, eram coisa baça, baça.
O tempo pedia contenção de energia.
O tempo queria a ironia do pássaro
já acostumado com a gaiola,
que só canta 
por doubles entendres
para não ofender 
o captor.



Este pequeno artigo começou como uma celebração. Mas, como? Sentir-se inútil, a grande inutilidade da poesia, aquela propagandeada por poetas, em geral homens que respondem, nos formulários do censo, com o X nas caixas apropriadas, corretas. Casado e caucasiano. Ser apenas a palmeira, furiosa e vertical. Fechar-se entre quatro paredes, como quer a população dominante, para que não perturbemos a criação e educação de seus filhos e filhas, os que estão sendo cuidadosamente preparados para se tornarem os nossos futuros assassinos.





Ricardo Domeneck, Bebedouro, estado de São Paulo, 16 de julho de 2014.



Este texto é dedicado a Kaique Augusto e  Alexandre Ivo, in memoriam




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