sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Poemas de William Zeytounlian



William Zeytounlian é um poeta brasileiro, nascido em São Paulo, em 1988. O poeta nasceu no seio da comunidade armênia paulistana, e este é um fator determinante em sua escrita. Formado em História, o autor desenvolve hoje um trabalho de pesquisa sobre a História do século XVII, uma "História dos comportamentos silenciosos", a partir de tratados e máximas morais da época de Luís XIV. Sua história familiar e memória contituem outro aspecto importante, com o relato do massacre de sua família no Genocídio Arménio, perpetrado pelo Governo Otomano (hoje Turquia) em 1915. 

Esse genocídio, que os armênios chamam de Mets Yeghem, ou Grande Crime, é pouco discutido e conhecido, e até hoje ainda não foi reconhecido pelo Governo Turco. Este silêncio sobre ele, segundo historiadores, serviria de inspiração e incentivo para aquele genocídio que outro povo sofreu no século XX, chamando-o de Shoah, a Catástrofe. O armênios também usam a palavra Aghet, catástrofe, para o extermínio de seu povo nas mãos do governo dos Jovens Turcos, liderado por Talaat Pasha (1874–1921).

Nas palavras de Zeytounlian, "a violência como estratégia política e o cínico processo de construção de uma subjetividade em uma cidade que se destroi (SP)" estão ainda entre seus interesses como poeta.

O protesto político é um terreno escorregadio para a poesia. Mas acredito que os poemas de William Zeytounlian fincam seus pés, nos melhores momentos, em uma clara preocupação melopaica e no que me parece uma leitura atenta do trabalho de Maiakóvski (via Schnaiderman/Campos), como se pode notar especialmente em um texto como "A morte de um homem livre". Sua lírica concisa em alguns dos outros poemas, se ligada à prática objetivista na cidade de São Paulo dos últimos anos do século passado e início deste, diferencia-se mais uma vez por um claro talento e preocupação com a sonoridade. Há experimentação de linguagem ainda em textos plurilíngues, como o interessante "Shibolet II".

Seu trabalho foi incluído na antologia de poesia contemporânea É Que Os Hussardos Chegam Hoje (São Paulo: Editora Patuá, 2014). William Zeytounlian é, além de poeta, um dos principais esgrimistas brasileiros. Vive entre São Paulo e Paris, e escreve sobre literatura no espaço I Beg Your Pardon, no qual também publica poemas e traduções. Pretendo acompanhar seu trabalho com atenção.

E conforme vou acompanhando seu trabalho, vou pensando que ainda não posso dizer se, como esgrimista, ele é um poeta, mas ele me parece certamente ser um poeta com talento de esgrimista.



POEMAS DE WILLIAM ZEYTOUNLIAN

divina violência

O CINISMO PEDE AOS DESPOSSUÍDOS QUE ACEITEM O ULTRAJE COMO UM DEVER MORAL. O ÚNICO DEVER MORAL DOS DESPOSSUIDOS É DESTRUIR O CINISMO COM ULTRAJE.

haveria –
ode ou elogio –
senda sutil
ou suportável –
em que eu pudesse
ponderar o indizível,
em que eu pudesse
inscrever o que é
execrado;
                     para que um
                     entendimento
                     transtornado
                     se tornasse,
                     enfim,
                     inteligível?


§

A soma

trás um verso,
estranho léxico
em regresso –

inversa assim
a dúvida que
assoma a dívida
  reincidente,
  antiga,
   rediviva:

o velho dedo
que envereda
na ferida.

§


[Gesto alheio]

Gesto alheio
eco do afeto
há muito
dispensado:

eu te
acreditava
morto.

do rastro
de que lapso
te recuperei?

como no mastro
da mente
icei
o pano do rosto
difuso,
novamente?

Gesto alheio
eco do afeto
há muito
dispensado:

a tudo escapado,
menos ao ato
de um átimo,
ao traço esparso
de um
momento.


§

Armênia

há uma dimensão dupla da história escrita a partir dos depoimentos de um sobrevivente. certamente é um discurso sobre o passado. mas antes de tudo, é um discurso sobre o presente, ou antes, um discurso sobre o projeto que o sobrevivente tem sobre o interlocutor. com um sobrevivente, entramos na vala coletiva do passado com nossas roupagens atuais, como os apóstolos de um quadro renascentista ou dante no inferno.

o alfabeto sobre o escudo
revela a relva, a areia abreviada
nós, devir débil sopro surdo
nós, memória e olvido de uma raça


§

Debater política

NA CRISE, UM ROMPANTE DE LOUCURA É UM DELÍRIO DO REAL.

tudo
melífluo,
incerto,
certos versos
insistiam
em voltar:

vagavam
aqui e acolá
em raros
intervalos –
interstícios
do hospício.

hoje, têm
sentido;
têm abrigo:

loucos
são os
outros.

§

Imperativo categórico

A NÃO-VIOLÊNCIA É UM LUXO DO QUAL NEM TODOS PODEM SE SERVIR.

oráculo manual
um gesto desenha
palavras:

o passado se funde
ao futuro
com um passo –

a verdade de si
tem o vigor das
verdades –

nada mais
senão unir
o ser ao tempo
o dever ao devir.

§

A morte de um homem livre


A ‘L’ MAIÚSCULO QUE DEVEMOS À PALAVRA ‘LIBERDADE’ É TÃO PROVISÓRIO QUANTO NECESSÁRIO

I.

um tempo cego
descortina –
desgarra-se
impassível
à rotina:

um homem livre
está morto
e minha mente vaga
na neblina virgem
do dia.


cedo ou tarde
brotaria a lástima
a contrapelo
de nossos gritos –
a contratempo
de nossos apelos 
a vida lavra
o momento
da palavra:


                       morto.

vã é a luta
(é sabido de tudo):
sobretudo o luto
bebeu e brindou
sua cota de versos.


nova é a batalha
rasgada com a navalha
no horizonte
do hoje;
na aurora da hora
que desatina o
presente
é preciso estar vivo
é preciso ter força
matar o cinismo
jovem
antes que sepulte
a ideia de um homem
junto com seu corpo.

II.

do palácio
um inimigo da liberdade
brinda a coragem
do homem livre;
a palavra ‘humanismo’
ressoa pálida
entre seus lábios.

na catedral fria
o governador
encomenda um réquiem
hipócrita,
reza com ardor
olha ao teto absorto:
agradece a deus
que um homem livre
está morto.

o partido encomendou munição
para homenagear
o homem livre:
a saraivada
será disparada
contra a fila
trêmula
de dissidentes.

um presidente
lamenta
sinceramente
todos riem
todos choram
há palavras
e gestos
o suficiente
para deixar o ar
com náuseas.


mas um homem livre
sabe
que um homem livre
não precisa
de carícias falsas
para dormir tranquilo:
menos ainda
para
MORRER.

III.

gravamos
nossos nomes
nos muros
onde fuzilaram
uma raça
e querem apagar
o único alfabeto
que nos restou –

sentam-se sobre
as dobras
de um milênio
de barbáries
e querem fumar
a memória
da humanidade
em um cachimbo.
o momento é incerto,
                       é obscuro.
mesmo a poesia
queima
na fogueira
do absurdo.
até a crise
está em crise:
a saída
é um tiro surdo,
no escuro.

mas é verdade
que vagamos demais
sobre a vala comum
da humanidade
para esquecermos
por vaidade
e tão cedo.

§

poema shibbolet II (experimentação)

de acordo com a bíblia (juízes 12:1-7), na guerra travada entre os efraimitas e os galaaditas, os efraimitas eram reconhecidos (e consequentemente mortos) por não conseguirem pronunciar a palavra 'shibbolet' (pronunciavam 'sibbolet'). hoje, diz-se que um shibbolet é a palavra de uma língua qualquer cuja pronunciação é impossível para estrangeiros. há muitos casos históricos e fictícios de genocídios baseados na prova do shibbolet: distinguia-se o outsider por uma frase ou palavra e, em seguida, o matava.

o poema abaixo se utilizou de shibbolets em catalão, português, dinamarquês, russo, polonês, castelhano, frísio, finlandês e holandês.


schibbolet II
william zeytounlian

Setze jutges d’un mengen
Fetge d’un penjat
Pão, garbanzo, scheveningen,
En griene tsiis wa’t dat.

Soczewica, net sizze kin
Francisco höyryjyrä
Rødgrød med młyn
Doroga, fløde, brea.

Se a fenda boquiaberta
Abismasse o verbo enfim
Ao intent d’alma inquieta

No words would claim within.
Encore…
dans la rive
        sonnerait
Son
profond
 schibbolet.

§

poema shibbolet


shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhibbolet   
§

[Do pacto dos viventes]

Do pacto dos viventes
O ato final seja selado

Que a sela dos carros
De sol nenhum coroado
Hasteie enfim o surdo
E pálido murmúrio
Que treme nervoso e silente
Dentre os gritos vãos
De nossas chagas.

§


Festa monstra
(detalhe epigramático)

asco? nojo?
aqui não!
não hoje!

resistir ao
doce gozo
é coisa pouca,
é coisa vã:

eu adoro
o cheiro
de napalm
de manhã.

§


atraso e eminência

beckett cioran proust certeau rochefoucauld agamben
todas as frases que li nos últimos 10 anos são viscerais
absolutamente vitais. imprescindivelmente exigentes
é preciso que se viva de alguma forma           aquilo
as penas mergulhadas nas trevas do presente
intempestivamente exige-se um sacrifício ou gesto
shakespeare dostoiévski foucault levi baudelaire


                          não sei o que fazer.


§

Sobre a História do silenciado genocídio armênio, assista ao perturbador Aghet - Um Genocídio (2010), de Eric Friedler.



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