terça-feira, 27 de maio de 2014

A culpa é de Hollywood

                              a Jonas Lieder


Querido, para alguns de nós,
desde o começo,
foi sempre assim que as coisas
funcionaram: affectus ou nada.

Enquanto meus colegas de escola
aguardavam ansiosos
em Highlander
lá pelos idos de 1986
que os imortais cortassem
suas mútuas cabeças,
eu me debulhava em lágrimas
pela morte do primeiro amor
de Christopher Lambert,
o útero seco de sua mulher,
ela que tanto quis dar-lhe filhos,
sem que ele ou ela ou mesmo nós
àquela altura da estória
soubéssemos que a esterilidade
era coisa dos imortais.

E pelas montanhas escocesas ecoava
a voz de Freddie Mercury, exigindo
uma resposta, qualquer resposta:

"Who wants to live forever?"

E minhas glândulas lacrimais
imploravam
que eu as deixasse em paz.

Era o tempo em que ainda havia
estória e História.

Como era prazeroso e mais simples
apaixonar-me
por Timothy Hutton em Ordinary People,
por River Phoenix em Running on Empty,
aguardar seus novos filmes,
como se espera pela visita
de um primo, o favorito, do litoral.

Os sentimentos eram não imaginários,
mas imaginados, críamos
que entendíamos todas as canções.
Fingíamos a dor que todavia
não sentíramos, não
deveras.

O passado era tão curto,
nossas bagagens, leves.

As dores eram abreviadas
por uma legenda
que dizia TRÊS ANOS DEPOIS
e esses três anos duravam apenas
um corte na ilha de edição.

E quando alguém morria,
a morte era só uma reviravolta
da trama, e doía,
mas bastava esperar que se encarnassem
novamente, feito Budas,
em novas personagens
de novos filmes.

The End nos redimiria a todos.

As perdas tinham uma espécie de glamour,
ficavam fora do quadro os lençóis de suor,
o suor só de um,
que sempre parece cheirar mal,
o café da manhã
com o pão duro e o café frio,
os cigarros baratos, baratos.

Agora sabemos que os TRÊS ANOS DEPOIS
precisam ser vividos segundo a segundo.

Que um acaso qualquer benevolente,
que traga reunião, concerto, concórdia,
das mãos de um roteirista generoso,
quiçá algo cafona, se vier,
será só isso, um acaso benevolente,
mas já não acreditamos muito na existência
do roteirista generoso, ainda que sintamos
que a trama continua cafona,
imperdoavelmente cafona.


§

Berlim, 27 de maio de 2014.




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