quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Areia na farofa



                                               a Sebastian Wehle



O ano de novo
acaba e o cansaço
não finda,
finca-se, é o mesmo.
Em verdade aumenta
a inflação, os juros
acumulados de bancos,
as cáries, os nomes
bloqueados na Rede.

Mais uma vez, a ressaca
de 1° de janeiro
dará a sensação talvez
de tabula rasa
mas será só o puxar
da toalha
à mesa, os víveres
salpicando os azulejos.
Da forma como a fome
ainda rege o estômago
após a meia-noite,
que não reabastece,
automática, as veias.

E este nhoque
está uma inhaca,
esta farofa, um'areia,
e melhor seria ser eu
o peru recheado.

Vêm os comerciais,
asseguram competir
ao calendário
novo me ressarcir,
contudo esse reveião
à minha revelia
não mais
me engambela,
nem sequer engano
a mim mesmo
com minhas resoluções,
só serão menos
os  cigarros
porque o bolso
ganhou outro buraco.

Mas cumpro os rituais.
Pulo as ondas,
visto-me de branco,
dou os abraços
e faço as promessas
de mais telefonemas,
mais encontros
e mais cinemas,
mais concertos
com mais sorrisos,
mais café e vinho,
oxigênio compartilhado
entre as mesmas quatro
paredes, celebro o Bebê
Mágico e lanço ao mar
oferendas à Rainha,
que as devolve,
é de seu praxe.

Então saio às ruas
e os prédios
ainda são os mesmos
se não os preços,
caminho
com os braços
despencados
ao longo do torso
sob o torcicolo,
e se as mãos balangam
ao léu das pernas
é só para que o corpo não
caia.

E quiçá esta fosse
a solução, a mudança,
o vero ano novo,
a única resolução séria,
cair
na sarjeta, no meio-fio,
na contramão, na ciclovia
atrapalhando Haddad
ou Merkel,
cair,
que ação de coragem!,
cair feito o mercado
de ações
e não se levantar mais.

É isso. É? Porque
se eu gritasse, alguém
daria por certo a ordem
e mandaria de novo a mensagem
de que a minha voz
já cansou a beleza dos anjos.







Berlim, 23 de dezembro de 2015.



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quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Politicamente... correto ou consciente?


Tive uma conversa com um poeta que respeito imensamente, mas do qual discordo em quase tudo, sobre a questão do "politicamente correto" quando se trata da literatura. O que segue abaixo é uma versão de uma das minhas respostas à conversa, porque talvez interesse a outros.

A questão para mim é saber diferenciar entre o politicamente correto e o politicamente consciente, já que por trás da batalha contra o "politicamente correto", em muitos casos, sinto na verdade uma batalha contra o "político" e contra o "histórico" na literatura. Quando se começa a falar sobre isso, sinto com frequência mais uma tentativa de retorno a uma ideologia que tem muitos nomes, mas que pode ser sentida a partir de Hugo Friedrich em sua Estrutura da Lírica Moderna (1956), por exemplo, e que no nosso fin de siècle passado mostrou-se no mumble jumble que transformava em sinônimos conceitos como "sincronia histórica", "pós-utópico" e "trans-historicidade".

Falamos sobre trabalhos que tiveram a coragem de olhar o "Mal", ou "O Horror" de Mistah Kurz, nos olhos. Citamos textos como o Niemandsrose (1963), de Celan. Celan foi um autor que lidou com um Horror histórico, real, que tinha contexto, nomes de gente de carne e osso. E não há aqui mesmo, nas Américas, um Mal e um Horror que precisam ser olhados nos olhos, que ainda estão entre nós e formam a fábrica de nossa sociedade, como os genocídios indígena e africano no nosso continente?

Elencar trabalhos que estejam lidando com este Mal ajudaria? Não sei. Será que nós teríamos reconhecido o "Niemandsrose", tivéssemos sido contemporâneos de sua escrita?

Falemos por exemplo de uma das grandes faces do Mal em nossa doentia civilização ocidental: o sequestro e escravização de milhões de seres humanos do continente africano. Há o livro Zong! (2008), de M. NourbeSe Philip, que olhou este horror de frente. O livro é baseado no fato real do navio Zong e num processo jurídico de 1781, quando aquele navio negreiro lançou ao mar cerca de 140 homens e mulheres africanos, que teriam sido vendidos como escravos, porque os traficantes perceberam que ganhariam mais dinheiro coletando o "seguro da carga" que "a vendendo". O Mal. O Horror. Eis um exemplo de uma autora, mulher negra nascida em Trindade e Tobago, lidando com um dos capítulos mais malévolos da História das Américas. Sem pestanejar e sem recorrer ao esconderijo do sublime.

Há também La sodomía en la Nueva España (2010), de Luis Felipe Fabre, no qual o autor, homem homossexual nascido no México, parte dos arquivos da Inquisição Mexicana, quando homossexuais foram queimados em praça pública na Cidade do México, para compor um livro extraordinário em "retábulos" e "villancicos", conhecedor que é das formas mais sofisticadas do Barroco hispânico.

Dois exemplos, que leio com uma atenção de quem compartilha oxigênio com estes autores do nosso continente e sente a necessidade de lidarmos com a face do NOSSO MAL, em vez de fazer como muitos, que leem Paul Celan como uma espécie de "poeta órfico", e não como o poeta eminentemente histórico que é, recebendo hoje o tipo de atenção que Rilke recebeu no país pelo Grupo de 45.

Portanto, eu pergunto: o terrível destino dos homens e mulheres que pereceram na Shoah, judeus, atinge-nos a todos, mas o terrível destino dos homens e mulheres que foram lançados ao mar, na embarcação Zong, sendo negros, antige-nos a todos ou apenas aos negros? O terrível destino dos homens homossexuais que foram queimados em praça pública na Cidade do México atinge-nos a todos, ou apenas a homossexuais?

Qual é a fronteira do universal, se o há?

Ao escreverem estes dois livros que julgo excepcionais, mas com clara intenção também de intervenção histórica e política, a escritora (negra) M. NourbeSe Philip e o autor (homossexual) Luis Felipe Fabre estavam sendo apenas politicamente corretos, ou politicamente conscientes? Faria sentido estudar estes livros apenas por suas óbvias qualidades formais, mas ignorar o contexto de que tratam e o contexto em que foram escritos? Não lidaram com o Mal? Seriam mais universais se tivessem escrito sobre as ansiedades do homem branco heterossexual em meio ao Sistema Capitalista? Em meio a regimes comunistas? Se tivessem sido menos "históricos" e "contextuais"? Mas a poesia de Paul Celan não é ela toda também "histórica" e "contextual"?

Reafirmo que é preciso dar atenção ao trabalho formal do autor, mas não parar aí: entender a maestria formal de um poeta mas também seu contexto histórico, e saber distinguir o "politicamente consciente" do "politicamente correto". E que, para entrar nesta discussão, se conheça poesia de forma ampla, não apenas a que foi feita por homens (brancos) (heterossexuais) (ocidentais) (mortos).

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quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Medo dessa gente

Eu tenho medo é dessa gente branca de bem – bem pensante, bem vestida – que se acha no direito de dar socos na cabeça de um menino de não mais de 12 anos, em plena praia, gritando "tem que metralhar! nesses tem que dar é tiro na cabeça!", os diplominhas chacoalhando de seus pescoços, as carteirinhas de clube de campo feito penduricalhos em seus lóbulos, enquanto bradam pela decência na República. O ódio em seus olhos. Eu tenho medo é dessa gente.

E alguns amigos disseram que não se deveria temê-los. Mas eu temo. Como escreveu Ricardo Aleixo, conheço essa gente "pelo cheiro,  // pelas roupas, / pelos carros, // pelos aneis e, / é claro, // por seu amor / ao dinheiro", e olho ainda para trás na Hitória do país e vejo do que esta gente já foi capaz, do que esta gente ainda é capaz. É a gente branca de bem que saiu às ruas pela Tradição, Família e Propriedade, que proveu a base popular do Regime Militar. 

Muitos têm se referido ao "ovo da serpente" por certos acontecimentos na República, mas falar em ovo é enganador, pois leva a crer que a serpente não chocou, que não quebrou ainda as paredes brancas do ovo. Pois a serpente está entre nós, sempre esteve entre nós, enrola-se entre nossas pernas. Há séculos? Há décadas?. Os fascistas brasileiros mais estão para um urso, um urso ainda que sarnento, um urso que hiberna e acorda a intervalos regulares, sempre que estamos prestes a chegar à primavera.

Esse medo, unido sim ao nojo, é o que deve nos manter alertas, é o que deve nos lembrar que esta gente não se subestima. Subestimar do que é capaz esta gente é um erro.

Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor? Diante dos últimos acontecimentos, preferiria que não.

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terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Tributo a Raoni Metuktire, com Bell Dome (Nelson Bell & euzinho)




Bell Dome (Nelson Bell + Ricardo Domeneck), homenagem a Raoni Metuktire, liderança contínua em meio as intermitências interesseiras da República.

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sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

A simetria do terror no Brasil




Ontem, conversando com Adelaide Ivánova em minha cozinha, falávamos sobre o massacre incessante dos cidadãos negros da República. Tantos meninos. A foto daquele pai negro chorando. O massacre de índios, mulheres, homossexuais. Falamos do número de tiros contra aqueles 5 garotos desarmados. 111. Cento e onze tiros. Quando disse o número em voz alta, percebi o que não havia percebido antes ao ler o número: é o mesmo número de mortos do Carandiru. Postei ontem: a simetria do terror no Brasil.

Quando passavam imagens do Carandiru ou outro presídio na televisão, minha mãe sempre repetia a mesma frase: "Isso aí é lugar onde filho chora e mãe não ouve." A imagem daquele pai negro em pranto, pai negro de um menino negro morto com 111 tiros enquanto celebrava seu primeiro salário. O Brasil é o lugar onde mãe chora e filho não ouve mais. Fui para a cama com este número na cabeça. 111. 1 + 1+ 1. Não. 1 – 1 – 1. Como naquela passagem de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis, na qual Brás Cubas imaginava:

"... um velho diabo, sentado entre dous sacos, o da vida e o da morte, a tirar as moedas da vida para dá-las à morte, e a contá-las assim:

-- Outra de menos... 
-- Outra de menos... 
-- Outra de menos... 
-- Outra de menos..."

Este velho diabo será muito mais nosso Estado, que jamais se descolonizou em suas estruturas e ideologias, apenas trocou o passaporte do gerente da máquina de moer gente. O velho diabo não conta moedas, senta-se entre dous sacos, o da vida e o da morte, a tirar negros, índios, mulheres e homossexuais da vida para dá-los à morte, e a contá-los assim:

-- Outro de menos... 
-- Outro de menos... 
-- Outro de menos... 
-- Outro de menos...

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quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Nova peça sonora: colaborando com Nelson Bell

O produtor alemão Nelson Bell (Crooked Waves / Gully Havoc Rec.) e eu começamos a colaborar em algumas produções. Estamos chamando o projeto de Bell Dome. Vai aqui a primeira.



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terça-feira, 1 de dezembro de 2015

"Uma anônima na lama da Samarco dirige-se aos todavia vivos"


Nunca mais alvo
de cupidos

largada em decúbito
lateral dorsal ventral

o corpo submergido
na lama
da Samarco da Vale

do finado Rio Doce

sem vestido
de organdi azul

Tragédia Brasileira
ó pleonasmo

sem o azul
de água ou céu

sou só
outra

sem voz
anônima

negra
em lama
anônima

como outra
lama abaixo

outra anônima


do povo
Hydromedusa tectifera


na mesma lama

morta com seus ovos
morta com meus ovos

eu, fêmea anônima

do povo
Homo sapiens

ela, cágado e fêmea
sem voz

hidromedusa
que não nos
petrifica

os machos
que se dizem
nascidos do barro

mas somos nós
de Gaia adornada

em água limpa

com que doamos
o lago primordial

no qual nadam
todos

os úteros
as lagoas

com fronteiras
nos ventres

nós todas
bestas de carga

nesta República
de pó e hélices

onde água falta
mas não a lama

nossa falta que lama

caídas
nesta guerra

os humanos
contra todos
os anônimos

do povo
Homo sapiens

do povo
lambari

do povo
cágado

vem, hidromedusa!

até que todos
os povos

encontrem-se

graças
a esta guerra

de todos
contra todos

com o povo
minoico

com o povo
olmeca

com o povo
neandertal

com o povo
mamute

e outros
os outros

extintos


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sábado, 21 de novembro de 2015

Performance hoje à noite em Bamberg

Faço uma performance hoje à noite em Bamberg, na Bavária, ao lado de Nora Gomringer e dos grupos PLOT e subtext. Vai dedicada ao poeta palestino Ashraf Fayadh, condenado à morte na Arábia Saudita,  aliada dos Estados Unidos, por acusação de apostasia e renunciar ao Islã. Prova: boatos e poemas seus. Vai também ser dedicada à criatura que me mandou uma mensagem anônima há três noites em um destes aplicativos de trepadas, dizendo "deixe nosso país." Como ele não especificou se eu deveria deixar a Bavária, a Alemanha, a Europa ou o Ocidente, vou ficando por aqui.

 

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sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Um poema de Warsan Shire



o que eles fizeram ontem à tarde

atearam fogo à casa de minha tia
chorei à maneira das mulheres na tv
dobrando-me ao meio
como uma nota de cinco libras.
liguei para o menino que costumava me amar
tentei "endireitar" minha voz
eu disse alô
ele disse warsan, o que foi, o que houve?

tenho rezado
e é assim que soam minhas rezas;
querido deus
eu venho de dois países
um tem sede
o outro arde
ambos precisam de água

mais tarde naquela noite
eu pus um atlas no colo
passei os dedos ao longo do mundo
e perguntei
onde dói?

ele respondeu
por toda parte
por toda parte
por toda parte

(tradução de Ricardo Domeneck)

:

what they did yesterday afternoon
Warsan Shire

they set my aunts house on fire
i cried the way women on tv do
folding at the middle
like a five pound note.
i called the boy who use to love me 
tried to ‘okay’ my voice
i said hello
he said warsan, what’s wrong, what’s happened?

i’ve been praying,
and these are what my prayers look like;
dear god
i come from two countries
one is thirsty
the other is on fire
both need water.

later that night
i held an atlas in my lap
ran my fingers across the whole world
and whispered
where does it hurt?

it answered 
everywhere
everywhere
everywhere.

§

Warsan Shire é uma poeta nascida no Quênia de pais refugiados da Somália, em 1988, que emigrou ainda criança com a família para a Inglaterra, ainda na condição de refugiados. Em 2011, publicou a plaquete Teaching My Mother How To Give Birth.

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quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Próximo lançamento musical do nosso selo Gully Havoc :::: CROOKED WAVES

Nelson Bell / Crooked Waves

Gully Havoc é o selo musical e editora que Black Cracker e eu fundamos em Berlim. Já lançamos o álbum de Black Cracker, Pos-Ter Boy, e no mês que vem sairá a antologia de escritores internacionais residentes em Berlim, que editei, intitulada Your + 1: some Berlin-based international writing (Berlin: Gully Havoc, 2015).

Nosso próximo lançamento musical será o primeiro EP do produtor alemão Nelson Bell, que assina Crooked Waves. Acabamos de lançar sua página no FB, apoie o jovem produtor curtindo a página, e ouça esta faixa que ele liberou para celebrar a coisa toda. O EP sai em abril 2016.

 
Nelson Bell a.k.a. Crooked Waves - "Dreamer" featuring Teema E
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terça-feira, 10 de novembro de 2015

luzia do brasil


O crânio de "Luzia"


luzia do brasil
algo, um resto,
uma sobra,
luzia da terra,
luzia enterrada
essa migalha,
se do passado
ou futuro
não
se sabe,
mas segue-se
dando nomes
luminosos
a façanhas
e ossadas
dessa terra,
a brasa
na lama,
a luz
no fundo
da terra,
cava-se
até não
sobrar,
arranca-se
até não
restar,
e eis
que aqui
jaz
luzia, osso
ou caroço,
resíduo
ou semente,
não
se sabe,
será cálcio
ou caule
num sulco
ou túmulo,
mas ainda
luzia, luzia,
a primeira,
a primeira
que restou,
a última
que sobrou,
seus restos
os primeiros,
os últimos
do solo
que se faz
território
a que um dia
dariam outro
nome luzidio,
brasil, e luzia
que certo
não
sonharia
essa noção
de trapos
e bagaço
e lama
e detritos
e pó
que se
chamou
colônia,
império,
república,
estado
-nação,
não,
luzia
não
sonhou
brasil
nenhum,
quiçá
brasil
seja tão

o pesadelo
repetindo-se
no vão
do tempo
dentro
do crânio
de luzia

§

Texto da série "As enterradas vivas", alguns dos quais foram publicados no meu novo livro, Medir com as próprias mãos a febre (Rio de Janeiro / Lisboa: 7Letras / Mariposa Azual, 2015). Este é inédito.

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quarta-feira, 4 de novembro de 2015

"Erguer-se" :: faixa de Sandra X :: sobre texto meu :: vídeo de Papá Fraga

"Erguer-se" :: faixa de Sandra X 
:: texto de Ricardo Domeneck :: vídeo de Papá Fraga :: performance do Coletivo Dodecafônico
(São Paulo)


Pequena história sobre este vídeo, acima: eu conheci Sandra Ximenez em 2001, quando ambos fazíamos parte de um grupo em torno de Lu Carion, trabalhando sobre as técnicas do coreógrafo mineiro Klauss Vianna (1928-1992). Sim, eu tenho um pé na dança. No ano seguinte, eu deixaria o Brasil e o grupo, que viria a se transformar no Grupo de Teatro Obara (Lu Carion, Verônica Veloso e Paulina Caon), baseando seu primeiro espetáculo, Fragmentos de uma carta aos anfíbios, em poemas do meu primeiro livro (Carta aos anfíbios, 2005).

Hoje, Verônica Veloso dirige o premiado grupo Coletivo Dodecafônico, seguindo o trabalho de percepção do espaço e do corpo e do corpo-no-espaço e do espaço-no-corpo, com quem tanto aprendi, e Sandra Ximenez, agora Sandra X, retorna a um poema do meu primeiro livro para esta faixa, "Erguer-se", que conta com o Coletivo Dodecafônico no vídeo oficial de Papá Fraga. O livro foi publicado em 2005. São dez anos. Mais, se pensarmos naquele ano fulcral de 2001, em que eu nem sabia que estava escrevendo meu primeiro livro enquanto reaprendia, com Lu Carion e as técnicas de Klauss Vianna, como se articulavam as articulações. Ver este vídeo é como assistir a um círculo que se fecha. Como nossa pele é um órgão-em-círculo.

Amanhã, quinta-feira dia 5 de novembro, em São Paulo, Sandra X lança este trabalho todo na Red Bull Station às 19:30. Obrigado, Sandra. Bom estar na sua voz. Devo muito a Klauss Vianna e a estas mulheres maravilhosas, Sandra, Verônica, Lu, Paulina.


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segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Caríssimo Pier Paolo: uma carta ao vaga-lume no quadragésimo aniversário do seu assassinato






                  Caríssimo Pier Paolo,

faz hoje quarenta anos que massacraram o seu corpo naquela praia de Óstia, que visitei no ano passado, caminhando entre as ervas-daninhas que crescem no local onde ergueram um monumento feio. Teria sido mais bonito ver vaga-lumes sobrevoando o ponto onde seu corpo caiu e foi então pisoteado por um carro, tal como um elefante, automóvel que assim se fez ainda mais forte símbolo da industrialização e do capitalismo insanos que destruíram o seu país e vêm levando os vaga-lumes à extinção. Esta manhã, reli o seu texto “A desaparição dos vaga-lumes”, no qual você nos deu outro daqueles diagnóticos e prognósticos lúcidos de um processo que se havia iniciado em suas décadas de vida e vem se completando nas décadas da minha. Nem por um segundo compartilhamos o oxigênio do século, mas compartilhamos sim a falta de oxigênio que vem mirrando os cérebros dos seus conterrâneos e dos meus.

Ao ler seu texto sobre a degradação espiritual da Itália, como não pensar na degradação espiritual do Brasil, aonde tantos conterrâneos seus emigraram, entre eles a família de minha avó materna, italianos ruivos de Campobasso, no Molise? E a cada instância de “democratas cristãos” a comparecer em seu texto, como não pensar no governo dos democratas cristãos alemães que vem desgovernando e destruindo a tessitura humana do continente europeu? Ou nesta tentativa de transformar o Brasil também em uma democracia cristã ainda mais fajuta, apoiada no desconhecimento massivo das massas de racistas e militaristas que vivem no país, sem saber sequer o que “democracia” ou “cristandade” deveriam e poderiam realmente significar?

Os vácuos humanos do seu tempo chamavam-se Aldo Moro, Giovanni Leone e Giulio Andreotti, entre outros. O que você teria dito de um vácuo humano como Silvio Berlusconi? Você teria se interessado por vácuos humanos como Dilma Rousseff, Renan Calheiros e Eduardo Cunha, ou aquele que sequer consegue erguer-se a vácuo, sendo já uma subcategoria qualquer, candidato a vácuo, chamado Aécio Neves? Quando você foi morto em 1975, muitos eram também mortos e desaparecidos no Brasil por um vácuo humano como aquele Ernesto Geisel (doce como um pastor alemão policial), que sucedera o vácuo humano de nome auspiciosamente italiano, Emílio Garrastazu Médici, doce, enfim, como um Médici. E, de um Médici, saberia você o que esperar. E o que dizer deste pseudo-galã da política brasileira hodierna, também de sobrenome Moro?

Mas o vocabulário do meu tempo não mudou muito em relação ao seu, Pier Paolo. Ainda gritam “comunista!” a quem quer que deseje simplesmente que esta guerra de todos contra todos acabe. Gritam “obsceno!” a qualquer um que decida apoderar-se do próprio corpo. Em meu país, o vocabulário parece ter voltado no tempo, para os idos de 1964. Muitos entenderão esta carta, mas não há o que dizer aos outros, talvez poucos ou muitos, que gritarão “comunista!” e “esquerdista!”, com suas gargantas que não parecem mais ter qualquer ligação com o cérebro. Ou, na sua gritaria sempre dualista, a sensação de que o lado direito e esquerdo de seus cérebros tampouco se comunicam. Haverá talvez ainda aqueles, pseudo-eruditos, que falarão em “civilização grego-romana-cristã” e outros disparates, sem entender que vivemos ainda sob a violência de religiões de Estado impostas a uma população plural, que adora deuses e deusas distintas, quando talvez devessem todos retornar à deusa da fertilidade, a Mãe-Terra, Gaia, a mãe de todos os vaga-lumes.

E seguem impondo leis injustas e desrespeitando as passagens justas de Constituições, dos dois lados do Atlântico, como no seu tempo. Seguem massacrando corpos como o seu, destroçando homossexuais, mulheres, negros, índios. São perigosos os vácuos humanos, os que estão no poder e os que os apóiam com seus gritos roucos, saídos de suas gargantas acéfalas. Para eles, democracia é veramente “a ditadura da maioria”, não o sistema que nos iludimos em crer que poderia ter sido o que salvaguardaria os direitos de todos. Seguem eles, Pier Paolo, querendo controlar os corpos de mulheres e homossexuais como se eles próprios não tivessem corpos. Não os ocupa, seus corpos? Quanto tempo dedicado a controlar as mucosas alheias, chamando os outros de obscenos, quando obscenos são eles, homens como Eduardo Cunha, hoje no Congresso do meu país. Obscenos são estes vácuos humanos.

Foram trinta e três os processos por obscenidade contra você. E você respondia sempre que obsceno é o poder, e obsceno segue sendo, moribundamente obsceno o poder dos mortos-vivos que nos governam, dos que gritam em seu apoio, e também dos que apenas querem ter no poder os mortos-vivos de suas preferências. E pouquíssimos são os que compreendem o que poderia ser a democracia ou o que poderia ser a cristandade, como você as compreendeu, respectivamente, em poemas como “O PCI aos jovens” e em filmes como O Evangelho segundo Mateus.

Não foi à toa que seu último filme baseou-se no Marquês de Sade. Salò. Salò ontem e Salò hoje. Você sabia que a obscenidade do poder-consumo já havia cegado e lobotomizado a grande maioria. Mas que palavra bonita, lucciola, Pier Paolo! Procurei-a hoje em várias línguas e é sempre linda: em Portugal dizem pirilampo, no Japão, hotaru; na Jamaica, dizem blinkie, e na Espanha, luciérnaga; no País Basco, dizem ipurtargi, e na Malásia, kunang-kunang; em uma das línguas da Índia, dizem minnaminungu, e, em afrikaans, vuurvliegie; os finlandeses a chamam de tulikärpänen, e os índios da Nação Pottawatomi a chamam de wau-wau-too-sa. Na Alemanha, onde vivo, chamam-na sempre no diminutivo, Glühwürmchen, como uma minhoquinha que brilha. Estarão brilhando ainda no subterrâneo, é isso que insinuam os alemães? No Brasil dos falsos democratas e falsos cristãos, a chamamos de vaga-lume. Quero acreditar que estão vagando, e voltarão.


seu Ricardo, 2 de novembro de 2015,
escrevendo da Alemanha dos Democratas Cristãos, 
na língua do país dominado por aqueles que não são nem democratas nem cristãos.

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quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Simon Kaiser, minha Hotline to the Zeitgeist



Conheci Simon Kaiser este ano. Bem, desde então ele emprestou sua proporção áurea e sua tatuagem da Proporção Áurea para a capa do meu novo livro, Medir com as próprias mãos a febre (a foto é do alemão Tom Harmony, feita na sala do meu apartamento) e recebeu meu poeminha "Kouros", em que o comparo ao kouros criselefantino da Civilização Minoica. 

Brinco que ele, aos 21 anos, tem sido minha Hotline to the Zeitgeist, ou meu 0800 para a agoridade. Quanto a mim, que papel cumpro para ele? Sabe Deus por que o rapaz tolera minhas atenções obsessivas. Recomendo livros, falo sem parar de minhas coisas dinossáuricas, devo ser o seu Telegraph to the Paleolithic, ou telégrafo para o paleolítico. 

Ele vem organizando as melhores festas de Berlim dos últimos meses, a Trade, com seu ouvido atento para o agora, com performances de Wife, Lotic, KablamWhy Be, Mechatok, e mais.

Como DJ, aqui está seu perfil no Soundcloud
§

Abaixo, meu poema "Kouros", dedicado a ele.


Kouros

a Simon Kaiser

Você, feito o menino-deus minoico,
parece, em pé, sobre os escombros
de uma civilização, e eu o arqueólogo
buscando em escavações na cidade
resquícios do culto que gerou a forma
esguia, longilínea, atenta aos detalhes
em que você o aperfeiçoa. Perdoe-me
se ofende esse desejo quiçá geriátrico,
ao contemplar seu corpo de menino
e deus no meio da sala, as fantasias
de um retorno a uma Atenas perdida,
alguns séculos depois de Knossos
e uns milênios antes de Washington,
querendo tão-só tê-lo por erômenos,
e coroá-lo o favorito deste velhote.
Neste labirinto, não serei Minotauro
algum, nem você Teseu, se morta
está aquela cultura, e Atenas hoje
sequer diz-se fazer parte da Europa.
Deixe-me ser tão-só leal pedagogo
disposto a compartilhar tudo o que
eu coletei e colhi do múltiplo Logos
neste planeta, querendo em troca
apenas poder estar na mesma sala
que você, como estamos nós agora.
E nestes dias de crise elefantíaca,
farei de você o meu próprio kouros
criselefantino, com sua saúde de touro
comparável só à daqueles meninos
minoicos, estes sim de carne e osso,
que saltavam, mãos firmes nos chifres,
aqueles auroques hoje extintos,
como você me sobrevoa agora
com os olhos, menino de couro vivo.

§

in Medir com as próprias mãos a febre (Rio de Janeiro/Lisboa: 7Letras/Mariposa Azual, 2015).



A proporção áurea e a Proporção Áurea de Simon Kaiser (NYYN)
em foto de Tom Harmony e design de Peter Martin Dreiss
na capa da edição brasileira do meu novo livro.

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segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Invocação do palanque às deusas do território

"A alegria é a prova dos nove. 

No matriarcado de Pindorama."

Oswald de Andrade

§


§

Ora, se na geléia geral brasileira alguém tem de exercer as funções de medula e osso, ó meu caro Pignatari, quem há-de voluntariar-se a cumprir os papeis de pele e genitália a cobrir e fazer gozar a medula e o osso? Dou um passo à frente. Quem mais? Venham, sejamos pele e medula e osso e genitália na geléia geral brasileira. Viva a geléia geral brasileira!

§



§

Invocação do palanque às deusas do território



A todas as moças no Brasil das Ayabás,
após este domingo de ENEM e inimigos,
digo: conclamai todos os eguns, gurls,
vinde, mula sem cabeça e mãe d'água,
vinde, Ñandercy, Iansã, Hilst e Mahin,
vós sois as que nos instam, ó mãinhas.
Que ela, Clarice, bruxuleie nas cabeças
dos machos do território, venha no sono
e puxe suas pernas. Ó Cy, dá-nos vitória
régia sem que nos afoguemos nas águas,
faz muito já que contemplamos sós a lua.
Eu, que não procrio, baixo as mãos a Gaia
antes de erguê-las a inquilinos dos céus,
por todas vossas dádivas do útero à luz
vos louvo, mães e moças do ventre fértil.
Que Madame Satã comande a cavalaria,
a machete de Tuíra Kayapó faz-se lança.
Acorda do teu sono de esqueleto, Luzia,
conduz-nos ao Matriarcado de Pindorama.

§


§


Luzia, a mais antiga do território, a primeira, a última.

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domingo, 25 de outubro de 2015

T.Raumschmiere & Anika - "Sleeping Pills & Habbits"


Esta colaboração entre minha loiríssima e malévola irmã, Anika, e o produtor alemão T.Raumschmiere, não me sai da cabeça. A colaboração está no mais recente álbum de T.Raumschmiere, lançado este mês. O vídeo acima é de Skipp, do DAT Politics.


Sleeping Pills & Habbits
Anika (Annika Henderson)

sleeping pills
and habits
breaking all we ever knew
break through

a whole new bottle of sleeping pills
of wonderous expectation

break the seal
let it pop
and drop the bottle whole

quickly drain
the whisky glass
the sealed white blister packet

watch them slide
cascade
into the white enamal pall

the glorified sarcophogus
the packed up hobby horse

the home-sized swimming pool

broken casandra
broken balerina
you're masked from view
(masked from view)

sleeping pills
and habbits
breaking all we ever knew
break through

she'd consumed them all
drained the glass
for her last dance

she took her bow
standing tall

pulled the rabbit from the hat
she waited for the call

the time is now
take your bow
the audience is yours
the audience is yours


quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Lançamento do meu livro em Portugal hoje, em Lisboa, no Bar A Barraca

Estou em Lisboa, e hoje é o lançamento do meu livro Medir com as próprias mãos a febre (Lisboa: Mariposa Azual, 2015), no Bar A Barraca, com apresentação de Miguel Martins, leituras de Alexandra Lucas Coelho, Matilde Campilho e Ederval Fernandes, e apresentação acústico-poética de Daniel Monteiro. Muito feliz. A foto de capa da edição portuguesa é de Adelaide Ivánova. O texto da quarta-capa é de Dirceu Villa.


terça-feira, 20 de outubro de 2015

poeminha da picuinha

as pinturas na pedra
da serra da capivara
e as tábuas de argila
duns hinos a nanna
(enheduanna no altar)
como o abjad fenício,
tatuagem na princesa
do altai, e os poemas
perdidos de neoteroi,
e os mortos inéditos,
tudo isso, muito mais,
põem em perspectiva
literatos de picuinhas.

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terça-feira, 13 de outubro de 2015

Meu adorado Markus Nikolaus lança nova faixa com seu projeto Lea Porcelain, duo com Julien Bracht


Lea Porcelain - "Bones" (2015)

Markus Nikolaus & Julien Bracht são o duo Lea Porcelain. O EP de estreia sai no mês que vem.

"Do I care about your bones?"

Markus é meu adorado, com quem já compus algumas peças sonoras, e a quem dedico o poema mais longo do meu livro novo, que pode ser lido aqui. Ele acaba de mudar-se para Berlim, após um tempo em Londres. Poucas coisas me fizeram tão feliz este ano. Adorado, idolatrado, salve, salve.

Markus Nikolaus & Julien Bracht ::: LEA PORCELAIN

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segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Feliz aniversário, Ludovico


Hoje é aniversário do meu amigo Ludwig Roehrscheid, nascido no inacreditável ano de 1995. No ano passado, eu estava com ele em Francoforte do Meno (Frankfurt am Main). Hoje, mando um abraço de Berlim, meu talentosíssimo rapaz.


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terça-feira, 6 de outubro de 2015

Entre Holanda e Flandres, lançando "Het Verzamelde Lichaam", minha antologia poética em holandês

Estive este fim-de-semana em Amsterdã, Holanda, e estou agora em Gante, na Bélgica, lançando o volume Het Verzamelde Lichaam (Amsterdam: Uitgevereij Perdu, 2015), com tradução do poeta e tradutor Bart Vonck. Estou viajando com meu editor holandês, Frank Keizer. O volume traz poemas dos meus livros Carta aos anfíbios (2005 - download disponível), a cadela sem Logos (2007), Sons: Arranjo: Garganta (2009), Cigarros na cama (2011 - download disponível), Ciclo do amante substituível (2012) e Medir com as próprias mãos a febre (2015), além de 3 textos de Odes a Maximin (inédito).


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sábado, 26 de setembro de 2015

Lanço hoje no Rio de Janeiro meu livro novo

Rio de Janeiro: estarei hoje à noite com uma caixinha cheia de exemplares do meu "Medir com as próprias mãos a febre" (RJ: Editora 7Letras, 2015) a partir das 21:00 no BAR DAS QUENGAS (Avenida Mem de Sá, 175). Venha, compre um livro, e bebamos algo juntos. GRATO de verdade aos amigos que puderem vir e também me ajudar a espalhar o local. Venham mesmo que não possam comprar o livro. Afinal, tudo nessa vida é negociável e o nome do lugar já diz tudo.



quinta-feira, 17 de setembro de 2015

domingo, 13 de setembro de 2015

Obcecado com uma fotografia de Serguei Maksimishin

Desde que vi esta fotografia do russo Serguei Maksimishin, nascido em 1964, em sua exposição solo no Festival Artes Vertentes deste ano, estou obcecado com ela. Não me sai da cabeça.


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sábado, 5 de setembro de 2015

Após visitar a casa de Paul Celan, em Czernowitz

Esta manhã, visitei o jardim da casa onde Paul Celan nasceu, em Czernowitz, na Ucrânia. Terra de fronteiras fluidas, a cidade pertencia ao Reino da Romênia à época. Li Celan pela primeira vez quando tinha cerca de 20 anos. Há muito tempo venho querendo escrever um ensaio sobre a estranha fortuna crítica do poeta na Alemanha e fora dela. Na verdade, a estranheza vem justamente da comparação entre como Celan é lido dentro do seu espaço linguístico e fora dele. Mas, por ora, estou sob o impacto de ter visitado sua casa, sua rua, e ouvido seus tradutores russo (Mark Belorusetz, que também traduziu meus poemas para o festival onde estou) e ucraniano (Petro Rychlo), lendo poemas do livro Die Niemandsrose (1963), em alemão, ucraniano e russo. Rychlo acaba de publicar sua tradução ucraniana integral, em volume bilíngue, deste livro decisivo na obra de Celan.


Decidi então preparar uma postagem dedicada a Celan na Modo de Usar & Co., com minha tradução para o "Todesfugue". Tenho uma tradução também para o "Engführung", mas esta ainda não ouso mostrar. Traduzir Celan é responsabilidade tamanha. Na minha tradução para "Todesfugue", da qual já publiquei um par de versões em locais diversos, tento apontar para outros possíveis caminhos, pois que o poema já foi recepcionado algumas vezes em nossa língua.

No entanto, procurando uma fotografia de Celan para a postagem na Modo, deparei-me uma vez mais com aquela bela foto do poeta aos 18 anos, em uma fotografia de escola, antes da Catástrofe, fotografia que sempre me tocou muito, pela beleza do jovem poeta, sua aparente alegria, o futuro, o futuro prometido. 



Um Celan feliz, ainda com os pais. Em casa. Em sua cidade natal. A sinagoga ainda estava de pé, como sinagoga. Foi então que me lembrei de um poema que escrevi em 2003, quando estava apaixonado por outro rapaz judeu (alemão, mas também de origem ucraniana). Lembrei-me que, ao entrar na Torre do Holocausto no Museu projetado por Liebeskind, chorei pensando que aquele menino, que eu amava, teria encontrado o mesmo destino 60 anos antes. Não é querer personalizar uma tragédia que jamais poderei verdadeiramente compreender. Nenhum de nós o pode. Apenas os sobreviventes. Mas era, parecia-me, a única maneira de não deixar a Catástrofe no campo do abstrato, dos números, das estatísticas. E foi mais forte que eu.

Reproduzo-o abaixo. Foi publicado em meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2005).


Na contingência de suas mãos

a quem mais
importaria que as mãos
de Philipp Naujoks
                pareçam-se
com as de Paul Celan
em uma foto aos 18 anos
senão a mim que as
amo feitas em sua forma
corporal de coisas
naturais busco dar-lhes
um significado para
que passem a existir
e digo: “eu
vejo nelas o partir
do pão de minhas
expectativas” e quando
elas em acidentes
deliberados tocam-me
sei do sangue correndo
para irrigar obediente
minha pele
sob o jugo destas
mesmas
               mãos
cujas feições e textura
reconheço entre as
centenas já vividas
a ponto de revê-las
nas mãos deste
                          morto
que escreveu “esta mão
que beijei alumia-se
às bocas” e murmurar
para mim mesmo na
escuridão da gengiva
a semelhança de unhas
dedos carpos oito
                          ossos
dispostos
em duas fileiras
e fechar os olhos e cerrar
os dentes e pensar quando
novamente se contingências
excedem sua escala de
permanência e atrevem-se
a querer mais como todos
nós dizemos mais cedo
ou mais tarde não
queria que acabasse
mas o tempo
todo a água entornando
de um copo para
o rio e o braço
levando o copo de
volta à água provam que
continente e conteúdo
em certos momentos
confundem-se
(o prazer descarta-os)
para nossa vitória

§

in Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2005).

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quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Dos satyricus: "Poema do mais triste miojo"


Rocirda Demencock no alto do Mosteiro da Cúpula Dourada de São Miguel, 
em Kiev, na Ucrânia. Foto de Alexander "Sasha" Burlaka.


Poema do mais triste miojo

                "Pungem fundo as puas do cardo."
                                       Manuel Bandeira 

Derretendo nas estepes,
sem cossacos, a galope,
que venham, o sequestrem,
o poeta velho toma borche
e sonha com os jovens
monges de batina, feéricos,
que ele viu no monastério.

Ele ora: "Senhor, que o céu
um dia seja azul-turquesa
como, naqueles senhores,
as suas impecáveis vestes,
os incorruptíveis corpos."
E exorta: "Ide preparando
-vos, meus filhos e irmãos.

Se até mesmo o Bandeirão
finou em muxoxo sobre cardo,
como haveis de pururucar-vos,
pensais? Feito saltimbancos?
Quiçá vestindo saltimbarca.
Quede meios pra cardo, pirão?
Miojo custará olhos da cara.


Rocirda Demencock. Carcóvia (Kharkiv), Ucrânia - 2 de setembro de 2015.

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quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Nostalgia de Cecília como se de água limpa




Como ela era bela. Hoje à noite me bateram saudades de a ler, mas daquela maneira mansa com que a líamos quando adolescentes, quando aquilo era a pureza. Era uma forma de lavar as mãos. Até isso perdemos. Sabemos hoje que somos sórdidos demais. Não a merecemos. Eu queria poder lê-la esta noite sem culpa, sem a sensação de que agora seria como lavar as mãos feito Pôncio Pilatos. Não sei se vão me entender. Eu queria apenas aquela sensação, de novo, de água fria correndo nas mãos. Quando a lia sem saber que éramos sórdidos. Boa noite.

Reinvenção
Cecília Meireles

A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo - mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço.
Só - no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só - na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

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segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Qual é a diferença entre um crítico e um crítico?

Qual é a diferença entre um crítico que lê em 2015 com os parâmetros de 1956 e um crítico que lia em 1956 com os parâmetros de 1922? Ou, ainda, entre estes e um crítico que lia em 1922 com os parâmetros de 1881? Qual era mesmo aquela história do santo-de-altar que dizia que boa poesia nenhuma se escreve com os métodos dos 20 anos de antanho? Aplica-se só à poesia ou à crítica, também? Se tudo o que se escreve hoje não presta (e a maioria certamente não presta - grandessíssima novidade, tomem aqui a coroa de louros pela inusual capacidade de percepção estética), o que garante aos senhores que isso dizem, que não estão cometendo o mesmo erro dos que também disseram isso tanto em 1956 como em 1922, saudosos dos poetas de vinte anos antes? Que poeta hipotético é este que parecem ter em mente, e que deveria estar escrevendo em vez dos que hoje escrevem? Cruzamento de Drummond com Cabral, pitadinhas de Murilo, glace de Campos? Se conhecem a obra deste poeta hipotético tão intimamente, por que não o são? A um autor que acabou de escrever o "Poema de sete faces", culpa-se-lhe não ter escrito ainda "A Máquina do Mundo"? Ah, perguntas, perguntas.

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terça-feira, 14 de julho de 2015

Tetine - "Cognitive Bugs / Mula" (a partir de uma colaboração nossa)



Novo vídeo do duo Tetine, "Cognitive Bugs / Mula", excerto de seu filme The 4th World, com a faixa "Mula", com texto meu.

 

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quarta-feira, 3 de junho de 2015

Produção sonora de Nelson Bell, também conhecido como Crooked Waves



Conheci o jovem alemão Nelson Bell há cerca de um mês em Berlim. Um amigo comum nos apresentou, sabendo que Black Cracker e eu andamos à espreita de novos talentos para nosso selo musical / editora Gully Havoc. Ele já está trabalhando no remix de uma faixa do nosso próximo artista a ser lançado este ano, um rapper norte-americano (mais informações em breve). Por ora, deixo vocês com uma das composições de Nelson Bell, sob um de seus codinomes, Crooked Waves.



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quarta-feira, 6 de maio de 2015

Vídeo da performance de Oskar May em Berlim



Vídeo da performance do poeta sonoro Oskar May (n. 1991) em Berlim, no evento "READING: a night of text / sound / video", série organizada por Black Cracker e por mim aqui na capital alemã. Oskar May nasceu em Viena, Áustria, em 1991. Outras peças sonoras aqui.


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terça-feira, 21 de abril de 2015

Mare Nostrum



Mare Nostrum


                 "men lower nets, unconscious of the fact that they are desecrating a grave,
                  and row quickly away"
                                                                 - Marianne Moore, "A grave"


Estive hoje no banco,
e com hinos,
sacrifícios e libações,
apaziguei os deuses
das finanças.
Estão pagos os impostos,
Angela. Preferiria tê-los
enviado aos gregos,
para lá do Mare Nostrum,
digo, vostrum.
Vossa antiga rua
de mão única
e agora vala
comum que sequer
requer pá, enxada.
Angela, diga-me,
ainda brilham
os diamantes
de Lüderitz?
Esse mundo,
eu sei, é todo
vala comum.
Que o digam
as areias do Namibe
onde jazem hereros
e namaquas.
Quanto a Cameron,
que lhe parecem hoje
os Cameroons?
Seguem retas as réguas
que traçaram, europeias,
eficientes, tão simétricas
linhas por onde passaram
em África e Oriente?
De Bruxelas a Berlim,
tapam-se com mãozinhas
enrugadas os olhinhos
assustados,
já que desde
tataravô e tataravó,
ninguém
mais da família
pôs os pés
naquele continente.
Algum tio-avô, talvez,
engenheiro em Suez.
Nada sabemos do Congo,
mas como são belas
as estátuas de Leopoldo.
Mandatos e protetorados,
Síria, Palestina,
Iêmen, et alia.
Agora, que se virem
na Itália
– se lá chegarem –
como se reviram as coisas
e corpos nas correntes
submarinas,
"neither with volition nor
consciousness".
Esse mar, que já carregou cruzes,
hoje não suporta lápides,
e limpa-se, como um gato as patas,
sempre pronto para os turistas.

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quinta-feira, 12 de março de 2015

O que passa pela cabeça de Maria Bonita



Dia 8 de março foi aniversário de Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita, degolada ainda viva pela polícia em 1938, na emboscada ao grupo de Virgulino na Grota de Angicos. Esse texto é da minha pequena série de monólogos de mulheres (históricas ou míticas) do meu novo livro, que pretendo lançar no segundo semestre.

O que passa pela cabeça de Maria Bonita

Segui o que ditou meu peito
sob os seios
ao lado de meu homem.
Quando rola, cabras, a cabeça
deixa de ter sexo. Pescoço
acima, é o mesmo
o número de buracos, a não
ser que bala e pólvora
nos tornem
uma vez mais diferentes.
Se carrego menos
sangue que meu homem,
ele jorra da mesma cor,
meu corpo
mais parecia a cachoeira
de onde nasci.
Torto não se endireita,
nessa terra, sem sangue.
Quando Deus não quer,
erra-se o alvo. Até você
aparecer na mira de Deus.
Gostava mesmo era de dançar
um maxixe sobre suas covas,
mas deixaram meu corpo
regado a creolina
entre os urubus.
Minha cabeça ainda
gritava agora há pouco
na Grota de Angicos,
mas logo estava calma
na escadaria
da prefeitura de Piranhas.
Virá o dia, claro
como a manhã do sertão,
em que as cabeças certas
darão adeus a seus pescoços
e não haverá degraus
suficientes nesta República
para exibi-los.
Por ora comemoram
todas as anônimas
no meu aniversário.
Meu nome é Maria Gomes de Oliveira
e perdi a cabeça duas vezes na vida,
uma delas na garupa de Virgulino.

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quarta-feira, 4 de março de 2015

Alguns dos "epitáfios" de Antidio Cabal





Epitáfio de Efigenio Gomiá, vulgo O Semicompleto

Aqui jaz um idiota maravilhoso,
acreditou que haver nascido fosse um êxito.
Não ponham flores em seu túmulo.

§

Epitáfio de A.G., a Mulher da Penumbra

Eu, Amélia Garcia, aos dezessete anos
casei-me com um homem com sombra,
fugindo de pais que tinham sombra,

e de sombra em sombra cheguei à melhor de todas.

§

Epitáfio de Luis Calvo, vulgo O Suficiente

Aqui se encontra sob a terra um sábio
cuja esterilidade produziu muito.

§

Epitáfio de Jimeno Jiménez, vulgo O Desequipado

Aqui jaz
aquele que viveu carente de si mesmo,
esqueceu-se de comprar um cão.

§

Epitáfio de Carlos Sanchez, vulgo O Limitado

Do que aqui jaz,
só a morte encontrou a utilidade.

§

Epitáfio para Jacinto Modales, vulgo O Botas

Vivi lutando contra a gordura e a ontologia,
agora tudo está no caixão.

§

Epitáfio do vigário Trústegui, vulgo O Sabichão

Antes eu queria ser eu,
agora ser me dá na mesma.

§

Epitáfio de Ramón Ramonense, vulgo O Igual

Sinto falta de não ter nascido.

§

Epitáfio de Clarisa Méndez, vulgo A Raíz

Sempre há saída para tudo, menos para o que somos.

§

Epitáfio de Gabino Suárez, vulgo O Conselho

Nascer, existir, morrer,
já sei como se divide
o nada por três.

§

Epitáfio de Creencio Álvarez, vulgo O Dentro

O caixão me dói menos que o berço.

§

Epitáfio de Seremo Cruz, vulgo O Norte

A nós deveriam fazer-nos natimortos.



Antidio Cabal (1925-2012)
in Epitafios, Barcelona: Kriller71 Ediciones, 2014.
As traduções aqui são minhas.

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segunda-feira, 2 de março de 2015

Um poema de Sebastião Alba


Mais do que do outro o meu reino é deste mundo
mundo de desencontros marcados «slogans» que violam
os espaços aéreos de países castos
e se dissipam além dos limites naturais
um laivo incendiando as espirais do rasto
Mais do que do outro o meu reino é deste mundo
mas de uma província de incerta geologia
com uma história sem crónicas ou reis absolutos
a única a que a constituição se refere numa clave de sol
onde os cidadãos de todos os burgos
pulam à rua das mãos estendidas de deus
dessa nenhuma anexação polui a virgindade civil.

Sebastião Alba



Sebastião Alba nasceu em Braga, Portugal, a 11 de março de 1940. Seu nome de batismo era Dinis Albano Carneiro Gonçalves. Em 1950, a família do poeta emigrou para Moçambique, onde ele passaria a viver até 1984, tornando-se cidadão moçambicano. No seu novo país, trabalhou como jornalista. Estreou em livro com Poesias (1965), ao qual se seguiram O Ritmo do Presságio (a primeira edição, moçambicana, em 1974 e a portuguesa em 1981) e ainda A Noite Dividida (1982).

A editora portuguesa Assírio & Alvum reuniria em um único volume seus livros O Ritmo do PresságioA Noite Dividida e O Limite Diáfanoem 1996, reunidos uma vez mais no ano 2000, incluindo inéditos, com o título Uma Pedra Ao Lado Da Evidência. A essa altura, o poeta vivia nas ruas de sua cidade natal. No dia 14 de outubro de 2000, com 60 anos, morreu atropelado. Havia escrito recentemente um bilhete:


"Se um dia encontrarem morto o teu irmão Dinis, o espólio será fácil de verificar: dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá".

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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Com certeza, alguma manhã

                            "Forse un mattino andando in un'aria di vetro
                                               Eugenio Montale

Moço, me ouça. Houve
aquele italiano que quis
virar-se e de repente ver
surpreso o nada às costas,
eu porém desde que você
fez-se fumaça vejo
constante o nada
diante do meu nariz
e só agora, não repentino,
mas gradual e lento volto
a notar a faca no chão e não
no pão, e o camundongo,
o gato e o cão pelas sarjetas,
e diferencio entre a margarina
e a manteiga, e vejo a diferença
antes ignorada entre a flor
viva no vaso ou seca, e sinto
ainda que insípida o flúor
n'água, e o copo já não tomba
e quebra, e olho à esquerda
e à direita ao cruzar as ruas,
e os meus ouvidos
registram as buzinas,
as conversas dos amigos,
e o prédio adiante
tem sua cor e difere
do prédio vizinho
em cor (e arquitetura!),
e este e aquele menino
percebo com susto
são na verdade indivíduos
também distintos
quando antes eram pedaços
de carne falante, falante,
mas agora, perplexo, até
os ouço, os escuto, os entendo,
memorizo seus nomes,
e árvores, casas e montes
voltam a compor a paisagem
e o ar de vidro da primavera
chega, mesmo depois
que houve você,
Moço. Me ouve?

§

Berlim, 19 de fevereiro de 2015.

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segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

M A U D - "Broken March" EP

Minha amiga irlandesa M A U D, baseada em Berlim, acaba de jogar na rede seu aguardado primeiro EP, intitulado Broken March. Ouçam!

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Cinco lusófonos jovens

 William Zeytounlian

William Zeytounlian (Brasil, 1988)

[tudo está às voltas]

tudo está às voltas
no lastro de teu gesto

tudo se repete
num fazer que
descortina:

          compre
          uma flor
          no mercado
          e sê Monet
          jardinando em
          Giverny –

          refaça
          no entulho
          de uma casa
          o dia que os
          mesopotâmios
          recensearam
          seus deuses
          mortos

não basta ao ato
bastar-se a si:
todo agir interpõe
teu agora e teu antes

voltei-me a mim
e parti mais além
fui-me aqui
e assim por diante

      – toda tessitura
      é a vela na
      gávea de Cabral
      e o trapo no
      torso de
      Zumbi –

      sê olhar do rei cruel e indigesto
      sê o olho que temeu a guilhotina

               tudo se repete
               num fazer que
               descortina

               tudo está às voltas
               no lastro de teu gesto

§

Golgona Anghel (Romênia/Portugal, 1979)

COMODISTA HESITANTE,

protegido das cabeleireiras
e cliente frequente dos feriados nacionais,
acredita nos encontros fortuitos
assim como um relógio estragado
acredita aproximar-se de uma hora astral.
Estes hábitos podem até ser tolerados
Em contos naturalistas
E reality showers.


Nós, aqui, little stranger,
Degolamos pardais e fadas de porcelana.
Cobramos interesses à alegria
E vendemos suites com piscina na lua.
A batalha é nossa,
Já alugámos as trincheiras,
Mas custa tanto tirar os pijamas.

§

João Bosco da Silva (Portugal, 1985)

Ronco II

Um gajo esfarrapa-se todo por estes gajos e nada, esta gente toda,
Que vive e pensa e sonha e teme e deseja e fode, engole, fodia mais
Se lhe baixassem as calças por serem todos tão especiais, mas nada,
Um gajo pode ser grande, mesmo muito grande, mas não existe
Enquanto não entrar em alguém, precisámos de olhos como do corpo,
Com o tempo fala-se com árvores, pedras, deus até, a água
Engole-se , mas antes agradecemos-lhe a frescura, é isto, mas um gajo
Esfarrapa-se todo, arma-se em mutante dos nervos, nem um pássaro
Se levante, abre-se a janela, um frio terrível, nem dá vontade de grandes
Gritos, abre-se mais uma garrafa e grita-se ao contrário, engole-se pronto,
Não vale a pena, são todos umas putas armadas em santas,
Uns miseráveis gordos de fome e solidão, querem é beiça
E prepúcio retraído, nem é papel, é mesmo fome de um sovaco azedo
Que os abrace, anda um gajo a esfarrapar-se por isto,
Há fomes piores, o musgo seca, o menino jesus do presépio
Não tem mãos, os olhos parecem que enrugaram e o menino
Que não morreu, parece apodrecer no colo que rejeita
Porque agora é homem, anda um gajo neste negócio de pérolas,
Para os porcos dormirem sossegados nos palácios que os burros admiram.


§

Ederval Fernandes (Brasil, 1985)

Como quando

Como os dedos
que rasgaram
o papel do
presente.
Como o ausente
dos vários
segredos
que não
revelaram.
Como o café
que repousa
na mesa
e será bebido.
Como o livro
lido
duas, três
vezes até
ser amada
a sua beleza.
Como quando
entrei
em você
pela
primeira
vez e entendi.
Como, por uma
besteira, não sei,
minha vó chora
e depois ri.
Como os dias
em que Vivo
e não quando
estou morto
e respirando
feito verme.
Como a tua mão
procurou ver-me
no escuro
de mim e do quarto:
como quando um
coração
faz um Uivo.

 §

Raquel Nobre Guerra (Portugal, 1979)

Se sorrio aos mortos e enterro os vivos
como um objecto escuro por que
rodaram mãos e jeitos de luz? Sim.

Vivo como se não estivesse aqui
roupa leve como acontece na vida.
E vou da primeira à última batida
na respiração de um pulmão vivido.


Lê assim.

Podia arder a uma pouca distância de ti
nessa praceta que é um poema teu
— e as coisas voltariam a mim, meras,
como o ser transportada pelos dias —
mas cairei por aqui.

Meu amor.

Porta no trinco e nada nas mãos.
Há muito que é tudo o que resta.

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