quinta-feira, 24 de março de 2016

Migalhas tão pequenas de nós dois, menino do bóson-bosão


Os cinco dedos de cada mão do menino do bóson-bosão


[poema]

deus está morto
não é culpa sua
meu pai está morto
não é culpa sua
a república está morta
não é culpa sua

não é culpa sua
que arrasto a carcaça
até a sua cama
como se este fosse
um ato heroico

sei que pareço exigir
ressarcimento
ao chegar a seu quarto
com as mãos
espalmadas e vazias

mas eu juro
que esta noite basta
um colchão comum
um travesseiro comum
uma coberta comum

um calor qualquer
compartilhado
como se compartilha
um deus
um pai
uma república

§

berlim, 21 de março de 2016

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sexta-feira, 4 de março de 2016

Marcus Fabiano Gonçalves e Dirceu Villa no Rio de Janeiro


O poeta gaúcho Marcus Fabiano Gonçalves e o poeta paulista Dirceu Villa encontraram-se esta semana, pela primeira vez, no Rio de Janeiro, antiga capital do Império e da Velha República. Os dois estão entre os poetas de minha geração que mais respeito, estão entre os melhores, mais consistentes, conscientes de seus trabalhos. São também, ao lado de Érico Nogueira, os poetas de minha geração com quem mais dialogo, debato, discuto, em diuturna concórdia-discórdia. Não publico nada de importante, de livros a ensaios, sem antes ouvir suas opiniões. Já me salvaram de alguns murros em ponta de faca. Deixo vocês com um poema de cada, que estão entre meus favoritos deste século avaro.



A máquina do fundo
Marcus Fabiano Gonçalves

a pesca escassa, o rio poluído, a cotação do dracma
um heraclítico engenho rege o mundo das máquinas

na margem, a draga do imponderável rio sem fundo
sem opor o puro ao sujo, aceitando o fluxo de tudo

a lama negra das imagens infiltra o oco dos crânios
no entulho da palavra gaga, a jaula do orangotango

reúne uns cacos de naufrágio, enjambra umas tábuas
vê se salva a ave da linguagem nessa arca de sucata

une o conteúdo à sua forma mais perfeita e intransitiva
e embora toda solda, cuida de mantê-la móvel e flexível

coa a lama toda dessa draga e separa bem tua saliva
retém a gota e o grão no sorriso amarelo das espigas

observa o dedo lerdo catando seu milho na datilografia
de grão em grão germina um corvo no ventre da galinha

chocando a ave faz esfinge de quem ignora o enigma
mas na verdade ela bem sabe que no fundo nada finda.

§

O cutelo
Dirceu Villa

São ossos. E às vezes, a banha amarela nos ossos;
e às vezes, o sangue vermelho nas unhas.
São porcos, ou são as cabeças dos porcos,
penduram num gancho as cabeças,
ou a cara de estúpida morte dos porcos
no vidro embaçado do açougue.
Ou o branco, mas branco embebido de rosa,
o sangue no sonho de tripas,
sonha o açougueiro: que empunha o cutelo.
E o branco avental que se banha
ou que bebe, o sangue que salta dos nervos
num abraço com ossos, onde vibra o cutelo,
e como brilha o cutelo que corta:
é essa a virtude do aço no punho, que sobe,
ou a ameaça na roda vazia que o prende
no espaço do açougue, visível aos olhos,
anúncio de corte. Ou espeta seu fio numa pedra,
e o único olho vazio se concentra, à espera da carne.
São cortes na pedra lanhada de sangue,
ou fendas, de onde a morte o espreita,
açougueiro no sonho vermelho, acariciando
o fio afiado, o sorriso sutil do cutelo,
que corta. E então o cutelo é outra coisa:
nem porcos, nem nervos, nem ossos,
nem mesmo o açougueiro que o sonha,
mas parte extensiva do braço que o vibra,
e parte indelével do que ele mutila,
o fio afiado, o sorriso sutil do cutelo, que corta.



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