quinta-feira, 17 de novembro de 2016

VOCÊ, INCAUTO


Você, incauto,
não viu raiar o dia
aninhado em colchas,
embalado ao colo
gentil de Gaia,
que gira devagarzinho
para que você
não caia.

Você, incauto,
não despertou
com o barulho do moer
dos grãos
nem com o cheiro
do café
detidos pela porta
da cozinha
que fechei cuidadoso
para que você
permanecesse incauto.

Enquanto isso, os pombos
da Praça Matriz
já coloriam experimentais
a bandeira tediosa
com nossas cores
mais contumazes,
mais representativas:
o marrom da lama,
o cinza da fumaça.

Mas alguns minutos
incautos mais eu queria
dar a você
como um primeiro
presente do dia.
Poupar seu sono
das manchetes,
das polêmicas,
das piadas prontas
que nos fazem rir
nervosos e melancólicos.

E quando ambos
sentamo-nos à mesa
e bebericamos o café,
incautos éramos
sobre quais mãos
esfomeadas colheram
os grãos e de qual povo
indígena foi roubada
a terra em que brotou
o cafezal.

Incautos seguimos
que do outro lado
de nosso planeta,
no ar
extinguia-se uma espécie
de pássaro,
no mar
extinguia-se uma espécie
de cetáceo,
e na terra do cafezal
extinguia-se
uma das línguas
da terra.

Então, incautos
você e eu,
deixamos a casa
e fomos brincar
de República.


§

17 de novembro de 2016, para manter puras as palavras da tribo.

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Um comentário:

Anônimo disse...

Bela escolha de palavras. Obrigada por compartilhar conosco e parabéns pelo blog. Feliz por tê-lo encontrado.

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