terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Pricísu tidizê

apesar de tudo
e todos a pesar
apesar de nada
peso o abusar
ai meu zizus

essa coisa
esse trem
brasileiroa
falaresse
iorubantuportujês
ser-se o cerceio
di-si-i-d'ôtro
qui desgraça
qui delícia
entre bigatos
e os caquis
ai desdiliça
ui deligraça
nascer aquiaí
é-se
filhadaputice
duma disgrama
de azedoce

§

No Ano de Nossa Senhora da Catástrofe 517,
Berlim, 20 de dezembro.

§


. . .

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Na notícia da morte de Vincent Warren

Vincent Warren & Frank O'Hara em Nova Iorque em 1960. A paixão
de Frank O'Hara pelo dançarino canadense, que ele conhece em 1959, é apontada
por críticos e biógrafos como um dos fatores que levariam a seu annus mirabilis (1959),
quando O'Hara escreveu grande parte dos poemas que o tornaram famoso,
incluindo vários dedicados a Warren, como "Having a coke with you", "Steps"
e "You are gorgeous and I'm coming". Vincent Warren faleceu a 25 de outubro deste ano.



POEMA AO SABER DA MORTE DE VINCENT WARREN
ou Texto em que o poeta lembra-se de que morrem também aqueles que ele canta

Os cafés esfriam e acabam!
As manhãs acabam e esfriam!
Deveriam ser estas as manchetes
dos jornais de amanhã, querido,
não mais guerras e golpes, não,
quando estarão enfim extintos
estes assuntos e não nosso açúcar,
nosso pó de café e nossos cigarros,
pois há tanta coisa mais importante
por discutirmos e ajeitarmos.
Calafriam-se os cafés-da-manhã!
Emboloram-se os pães de nosso açúcar!
Todos, Moço. Dessarte haveria
o mundo ou eu
- preferiria fosse eu e o mundo -
de anunciar a você a morte
de Vincent Warren
para os seus bocejos,
não de tédio e sussurros
de quem? quem?,
mas de sono em minha cama,
ainda em minha cama!
enquanto releríamos
tristes os poemas alegres
daquele Frank O'Hara,
escrito para o seu moço
pessoal, privado, intransferível,
ambos agora mortos, finados
o cantor e o cantado, mas não
a canção! nem nós! aqui vivos
numa cidade reerguida de escombros,
nessa alegria sempre temporária
dos cafés, dos açúcares, dos cigarros
e das sempre tão poucas moedas
nos bolsos de nossas calças
que escondem nossa pobreza e riqueza.
Nem por isso é menos alegria a alegria.
E então prepararíamos forte o café
e acenderíamos todos os cigarros
e açucararíamos tudo que pede açúcar
pois é nossa a goela e é nosso o bucho
e neles enfiamos o que nos apraz
em nossa ciranda de prazer e morte
e a sorte grande dos que morrem primeiro
e a sorte maior dos que morrem juntos.


                            — Berlim, 13 de novembro de 2017


§

oh god it’s wonderful
to get out of bed
and drink too much coffee
and smoke too many cigarettes 
and love you so much

—Frank O’Hara (versos finais de “Steps”, poema para Vincent Warren).

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sábado, 30 de setembro de 2017

Ao cu do cupido


muitas vezes pensei ser pena
que tal ilustre sociopata o cupido
em voo não seja um ícaro
em pouso não seja um joelma
não são inflamáveis suas asas de codorna?
são sempre apenas sublunares seus voos?
como jurei mil-mil vezes que o depenaria
com as próprias mãos e faria um pirão
desta galinha choca metida a anjo
mas no fim quando ele se aprochega
feito um pardal esfomeado
o idiota aqui esgoela de novo
MIRA NI MIM
MIRA NI MIM

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sexta-feira, 28 de julho de 2017

Descoberta tardia no meio da novela


Sempre detestei aquela personagem
de filmes, livros e novelas: o bêbado penitente,
seu papel tragicômico na trama,
suas juras de corvo de nunca mais,
suas dancinhas à beira do abismão,
seu samba e capoeira na corda-bamba,
seus arrependimentos com soluços,
suas reincindências cronometradas,
seus pedidos de misericórdia a qualquer deus de plantão,
seus apelos à Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Eu sou o bêbado penitente.


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segunda-feira, 17 de julho de 2017

Retrato em vídeo

O retrato em vídeo abaixo foi produzido pelo Literarisches Colloquium Berlin e pelo Literaturport, em seu projeto de mapear a cena literária de língua estrangeira na capital alemã.



Você pode assistir aos outros aqui.

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segunda-feira, 1 de maio de 2017

Alguns cearenses e suas palavras

José Leonilson - "Ninguém" (1992)

Faz 24 horas que a voz fanha do grande bardo cearense Antônio Carlos Belchior (1946–2017), agora sumido de vez, soa aqui nos cômodos dessa casa estrangeira onde minha carcaça brasileira e interiorana se arrasta. Há alguns meses, preparei uma postagem sobre ele para a Modo de Usar & Co., tentando chamar a atenção dos amantes de poesia para os textos deste nosso poeta dos fracassos da existência do coração. Poeta, trovador, preparado tanto na tradição da poesia de Luiz Gonzaga como na poesia de João Cabral de Meto Neto, tal qual se pode ouvir no excelente programa "MPB Especial" dedicado a ele em 1974. Não posso recomendar com gana suficiente que assistam ao programa.



Os elogios que podia tecer a Belchior o fiz na revista. É difícil fazer entender por vezes a importância que estes trovadores brasileiros, tão hábeis em sua escrita, tiveram e têm para a formação de tantos poetas nos seus anos de verdura. Gente como Belchior (ou Noel Rosa, Luiz Gonzaga, Cartola, Tom Jobim, Dolores Duran, Caetano Veloso, Maysa Matarazzo, Chico Buarque, Gilberto Gil, e longo etc.) é quem primeiro nos apresenta à arte da palavra. Enquanto ainda estamos distraídos. Nada mais do que crianças, antes de sermos leitores, ouvindo versos soarem pelo rádio e na voz da mãe ao tanque, melancólica versejando em performance própria coisas como: "Por isso cuidado, meu bem / Há perigo na esquina / Eles venceram e o sinal / Está fechado pra nós / Que somos jovens"... e o susto que isso gerava numa criança um tiquinho hiper-sensível demais. A coisa de surpresa que era ouvir "Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro", pensando: "então se pode fazer isso com a língua?". Poderia citar aqui sustos de língua na língua semelhantes em canções de Ismael Silva, Ana Terra, Tonico e Tinoco, Angela Rô Rô, ou Antônio Candeia.

Signos primevos do país no Cânion do Rio Poti, entre o Ceará e o Piauí


Ao mesmo tempo, hoje, 1° de Maio - Dia do Trabalho, enquanto o fantasma de Belchior cantava pela casa, li o relato do poeta gaúcho Marcus Fabiano Gonçalves que se encontra neste momento na terra de Belchior, o Ceará, e onde viajou ao sítio histórico do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, no Crato. Este ano, entre 10 de maio e 12 de novembro, relembramos os 80 anos do início e fim do que seria o massacre perpetrado por Getúlio Vargas, com seu Ministro da Guerra de então - Gaspar Dutra, mais tarde presidente - e pelos coronéis da terra, quando a Força Aérea Brasileira pela primeira vez bombardeou civis - cidadãos brasileiros – em seu próprio solo. É importante, neste ano de comemorações de experiências comunais fora do país, que conheçamos o que foi a comunidade liderada pelo beato José Lourenço. E mais, neste ano de assalto aos direitos dos trabalhadores brasileiros pelo (des)governo de Michel Temer, é importante lembrarmo-nos de experiências alternativas de organização do trabalho em solo brasileiro, e do que os governos do país já foram capazes de fazer contra aqueles que deveriam representar, sendo pagos para servi-los.

Sobreviventes do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, Ceará (1937)

Entre a voz de Belchior e fotos e artigos sobre o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, peguei-me pensando no Ceará e na importância que alguns cearenses tiveram na minha vida. Eu, que nunca pus os pés no Ceará. Não fui ao Cariri, não conheço Juazeiro do Norte, e da estátua do Padre Cícero, só fotos. Em 1998, quando viajei pelo Nordeste pela primeira vez, aos 20 anos, acabou-me o dinheiro em Natal, no Rio Grande do Norte, e não pude seguir com os dois amigos que estavam comigo e logo embarcaram para Fortaleza. Desci de ônibus, Natal – São Paulo, uma experiência louca sobre a qual ainda escrevo um dia. Queria falar de dois cearenses aqui, e depois publicar os poemas de outros que li hoje. A importância, em primeiro lugar, que José Leonilson teve em minha vida, ainda adolescente. A fragilidade e força de sua arte. Sua morte que me assustou, como creio que assustava naquele tempo a todos de nossa laia.

"Nós falamos, eles não vêem. Nós sentimos, eles cobram" [1991] 
do cearense José Leonilson (1957-1993)

E, nos últimos dois anos, a importância que a cearense Érica Zíngano teve em minha vida em Berlim, nossa amizade, o respeito que tenho por seu trabalho. É uma de minhas interlocutoras favoritas, e como é bom papear com ela, que já me disse: "Não se esqueça, Ricardo, que eu sou o teu canal com o maravilhoso!", e é. Ainda que seu conterrâneo Belchior tenha ironizado o grande baiano, dizendo que "nada é divino, nada é maravilhoso"?

Texto de Érica Zíngano em homenagem a Dora Barcelos (1945–1976) no quadragésimo aniversário 
de seu suicídio em Berlim. "histórico / para solicitar uma placa / ontem / terça-feira, 31 de maio de 2016", 
com Luísa Nóbrega e Rafael Mantovani.


Pois eu passei o dia todo com cearenses. Pensando em Belchior e nos 80 anos do massacre do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto. Pensando em minha amiga Érica Zíngano e no companheiro Eduardo Jorge, com quem estive em Zurique há apenas 3 dias. No companheiro Diego Vinhas, que hoje mesmo me ajudava a corrigir a diagramação de um poema de Orides Fontela para a Modo de Usar & Co. Foi aí que me veio essa oração aqui:

Ao som de uma canção de Belchior, 
ora faço essa oração: 
que eu não morra sem ver o Cariri, 
concidadão Vinhas, 
toque pé um dia o chão do Crato, 
concidadã Zíngano, 
respire vento em Juazeiro do Norte, 
concidadão Jorge, 
e ouça em Caucaia em suas vozes 
a canção de Belchior.

O que segue, abaixo, é uma lista das leituras que fiz hoje, em homenagem aos cearenses que conheço e não conheço. Poetas e trovadores do estado que ainda não conheci, mas de onde saiu muita gente que respeito. Não há ordem de importância, nem cronológica. São poemas e canções nascidos em corpos nascidos no Ceará, que entraram pelo meu corpo hoje.


CEARÁ NOS MEUS OLHOS E OUVIDOS




Ednardo - "Longarinas", do álbum Berro (1976)

§

Eduardo Jorge (Fortaleza, 1978)

Primeiro de maio

Moro na cidade explicada
em várias línguas,
muitas delas não-latinas:
não entendo a cidade na qual vivo,
todavia enquanto me banho
ou quando os vizinhos têm sexo,
as explicações da cidade,
palavra por palavra, entram por
um ouvido e saem pelo outro,
o letreiro Roma 24 horas
anuncia falanges à dúzia:
Rômulo, Remo, por exemplo,
gritam "leite de loba" ou "hora da sopa"
E, assim, desço banhado
com uma colher de prata no bolso
do roupão roubado bordado
Immer der Sonne entgegen.
Enquanto a sopa some
se traduzem no interior decorado
e burguês do crânio-quarto
os meses, as horas e os instantes
dos uivos misturados às
piadas para acordar
o homúnculo que tenta dormir
dentro da cabeça.
Minha corcova aumenta enquanto ouço
incompreensíveis, as repetidas explicações.

*

Homens sem livros

Naquele grande prédio cinza
ficam os homens sem teses brilhantes.
No café da manhã
iniciam a ladainha dos erros,
onde poderiam ter sido melhores,
detalham cada arrependimento.
Imperfeitos, com hálito de anjo,
passeiam por outras preferências
de pães, pela inexatidão de açúcares
e açucenas desfocadas sob fundo negro.
Antes que a manhã acabe, deliciam-se
com cada ideia sem realização
sobre as duzentas páginas que jamais
foram cinco, e trocam elogios
de gravatas. Ao meio-dia, o zênite.
Silêncio, pois pensam no detalhe
de cada erro que cresce.
Fazem cálculos sobre onde podem
ser atacados e por quem.
Até escutam os estômagos
digerindo o arroz, o frango, as cenouras.
No pátio interno há um teatro
Boa parte da tarde, encenam ressentimentos
com a alegria caindo aos pedaços.
À noite, eles se recolhem em suas celas,
hora de pensar o erro seguinte.
Ali as teorias são frágeis, brilhantes, encantadoras,
mas não espere uma única linha.


§

Rodger Rogério - "Susto" (1973)

§

Érica Zíngano (Fortaleza, 1980)

fios de ovos pra viagem

            para a minha avó

a minha avó morreu antes
de me ensinar a cozinhar
ela também não ensinou
a minha mãe a cozinhar
a minha mãe é canhota
e não tinha a menor chance
de dar certo na cozinha
dizia a minha avó
repetia a minha mãe
me explicando o porquê
de ter demorado tanto
pra aprender a cozinhar
(a minha mãe não se lamenta
da minha avó porque hoje
a minha mãe já sabe cozinhar
mesmo sendo canhota)
mesmo tendo morrido antes
de me ensinar a cozinhar
a minha avó uma vez tentou
me ensinar a cozinhar
quando eu tinha mais ou menos
oito anos de idade
foi um desastre completo
porque quando eu fui pegar
a chaleira quente com um pano
pra colocar água no arroz
o pano começou a pegar fogo
e fez um pequeno incêndio
na cozinha da minha avó
coisa que ela controlou muito
rápido porque estava ali
por perto administrando tudo
coisa que a minha avó fazia
muito bem era fios de ovos
todo natal tinha fios de ovos
com frutas cristalizadas no peru
pra tomar com sidra cereser
antes da ceia era uma festa
tenho sempre essa lembrança
dela fazendo fios de ovos
na cozinha infelizmente
a minha mãe não aprendeu
a fazer fios de ovos com a minha avó
nem a minha avó teve tempo
de me ensinar a fazer fios de ovos
que são a coisa mais difícil do mundo
de fazer então todo natal
eu sempre compro pronto
peço fios de ovos pra viagem
mas eles nunca têm o sabor
dos fios de ovos da minha avó
as saudades que eu tenho
da minha avó são as saudades
dos fios de ovos da minha avó
acho que o meu irmão tem saudades
diferentes da minha avó
mas nunca conversamos sobre isso

*

teoria dos gêneros

este poema é, e não haveria como não ser, dedicado à minha mãe


Lyrika® é um remédio contra fibromialgia que a minha mãe toma todas as noites (antes de dormir) quando está em período de crise. A fibromialgia é uma espécie de reumatismo – só que dos músculos, tendões e ligamentos – e causa dor, fadiga, indisposição, dentre outros sintomas. Além de tomar o Lyrika® (todas as noites) antes de dormir, a minha mãe faz três sessões de fisioterapia por semana, o que ajuda a diminuir bastante a dor, afirma convicta. O Lyrika® é fabricado pela Pfizer™, indústria farmacêutica responsável por arrematar a maior fatia do mercado de medicamentos para o coração: o Norvasc®, que a minha mãe também toma (todas as noites antes de dormir), é, sem dúvida, o mais vendido para pressão alta. De origem norte-americana, a Pfizer™ tornou-se conhecida em todo o mundo pela fabricação do Viagra® que, por incompatibilidade de gênero, claro, a minha mãe não toma.


(esse poema foi escrito com dados retirados do Google Inc. e a poeta se exime da responsabilidade pela veiculação de quaisquer dessas informações. infelizmente, parece que está fazendo propaganda para a Pfizer™, apesar de parecer, ela garante que a intenção primeira não era a de fazer propaganda, mas a de fazer uma singela homenagem aos hábitos medicamentosos de sua mãe: se falhou em tal empreitada, pede desculpas e avisa que continuará tentando)

§

Alcides Neves - "Tempo de fratura" (1979)

§

Diego Vinhas (Fortaleza, 1980)

Sagitário

você traz de longe este talento para cair
de escadas? você mimetiza
cidades numa coleção de canecas de louça?
você sabia que Anna Akhmátova virou nome
de uma (e da luz morta
que nos chega de uma estrela? você foi
manhã de chuva em alguma vida passada?

você reza? você já dançou sozinha
como se o mundo
se resumisse a paredes e velocidade, com
alguma rouca alegria? você deixou
na infância uma noite de tédio, auréola
empenada e asas
de arame? você mentiria

para ter em estoque todos os sonhos
bons que pudesse coagir? você partilha
o quarto com um zoo imaginário? você detesta
cigarros? você teme que as crianças
se despedacem quando em seu colo? você
aceita ficar sempre por aqui?

*

Sob estrelas

vistas como corpo de delito de um projétil
que esburacasse tanto a lona negra do céu

a quase simular (estas escaras de luz)
um Pollock ainda mais feroz - quanto de atrito

cabe em um hora assim: o seu sono e o dos barcos
à praia, maré que a noite vestiu de fuligem,

débil teatro para ninguém? treva e ruído
de ventilador vestem o quarto, singram através

da calma de vê-la dormir (longe a lua ao rés-
do-chão no reflexo da poça, um sonho puído,

um sonho e só, talvez). mas tudo apaga, a vertigem,
tudo zera- o poema parece dizer - os arcos

da estátua à beira-mar, tudo expira, qual detrito
do dia anterior, a cama, ou pontos de cruz

rebobinados, volvendo a ser linha (sem véu
a manhã engatilha incêndio: na jaula um sol réptil)

§


Karim Aïnouz - Madame Satã (2002)

§

Everardo Norões (Crato, 1944)

Tiradeira de leite

entre os dedos
o fulgor do leite
filtra a desordem solar
o curral aprisiona
o sossego dos bichos
o negro viscoso do olho
a refletir vasilhas
o ramo da árvore
a sombra do regaço
cedo a manhã cheira
e tudo se acorda
na precisão do mato
ou do alento
que chega do açude
no remanso das entranhas
dessas nuvens lentas
lentas
lentas
lentas

*

Mancha

Sob as palavras
tudo se transfigura:
a urze, a pedra, o horto.
As cabras pastam,
as vacas ruminam,
e é muito tarde
para rimar teu nome.
Sobre nós flutua
o encoberto,
nuvem suspensa
ao fio da saliva,
mancha de desterro.
Sob as palavras,
tudo se derrama,
como o leite
numa mesa de pensão.

*

Tristão

          'Em pé, ao sol e ao vento do sertão,
           ele não se decompôs.'
                 --- Pedro Nava, Baú de Ossos

As palavras no alforje. E o rosário,
a escorrer das penas e dos dias.
O azul da barba lembra uma paisagem
onde campeiam cabras. E ramagens
desatam-se em sombras nas janelas.
A morrinha dos bichos. O mormaço,
trazendo o desespero, em vez de março:
um luto atravancando as taramelas.
A sela desapeada. E na garupa
do cavalo, a sentença das esporas.
Pendentes dos estribos, estão as horas,
relampejos de facas. E o sono da jurema.
O braço descarnado, o giz dos dentes,
e o olho além do corpo do poema.
No chão do meu degredo, sempre chão,
sete frases do ofício e um bordão.

§

Ícaro Lira (Fortaleza, 1986)





§

Samarone Lima (Crato, 1969)

Sobras

Todos os dias te dou um nome
Uma pedra, um pão
E vendo o que nunca plantei.
Te dou, portanto,
Sobras.
Teu nome já tinhas.
As pedras que carregas por dentro
O pão que te escolheu
Tudo era teu
(nada tem o rastro do meu sangue).
Minha entrega tardia
Lembra o consolo
A uma criança que não erra.
Mas sabe que o mundo dói.

*

Anotações

Anoto a vida.
Não sei se é poesia, o que faço
Se é o puro mormaço
Dar ruas do Recife
Das ruas do passado.

Anoto o que dizem
O que me cala
Anoto o dízimo do dia
O olhar opaco
De quem vai porque vai
De quem não tem porque ir.

Anoto essa mão estendida
À espera de tudo
Essa boca que se desespera
E lambe o escuro.
Anoto minhas roupas penduradas
Num varal de 1976
(era noite clara e podia vê-lo
pelo barulho do vento).
Anoto a vida.
Não sei se é poesia, o que faço
Se é puro cansaço.

Anoto o que me escondem
O que sequer nasceu
Mas tem sobrenome.
Anoto o que disseram ser meu.
Um dia
Deixarei um silêncio
Sem ponto final.
Um silêncio meu
O último
E a busca da poesia
Terá terminado.

§

Patativa do Assaré - Ave Poesia (2008), de Rosemberg Cariry

§

Cândido Rolim (Várzea Alegre, 1965)

mínima adjacência

dê vez ao próximo da fila ou
facilite o troco

exame mais demorado
— luz direta
na cara —
contraria a reputação
a custo construída

riso aceno sotaque
tudo falsa
aproximação

se não corresponde
tegumento e
tez

*

Indícios

nunca mastiguei tanto presságio

nem teu sexo ergueu tão alto
a hóstia viva
que trago nas virilhas

teu ventre nunca anunciou tão tarde
outra colheita

como agora
sombra vestígio de sombra
sangrentos estilhaços de hora

§


Amelinha - "Foi Deus que fez você"

§

Ayla Andrade (Fortaleza, 1978)

Cais

reúna comentários leves
emblemas felizes, sorrisos com dentes
hoje é dia de festa
e os senhores querem paz

reúna comentários leves
roupas graúdas, dias de glória
hoje é dia de festa
e as madamas querem mais

reúna comentários leves
desenhos de cores, perfume de largo
hoje é dia de festa
e as crianças sonham demais

reúna comentários leves
mãos afáveis, copos de vidro
hoje é dia de festa
e os moços querem com gás

reúna comentários leves
bocas falantes, assunto nem tanto
hoje é dia de festa
e as moças querem por trás

reúna comentários leves
que o todo está completo
gente, ontem, domingo
ninguém pretende se jogar do cais

*

Agora que me enfeitam os girassóis

agora me visto de morta
agora que a casa é penumbra

agora caminho lento
observando os pés e o andar

antes tinha pressa
antes tinha fome
antes tinha

as manhãs cheirando teu cheiro
as tardes cheirando a elas
as noites cheirando a álcool

os dias foram tantos

parei de contar o que era dia e era noite
parei de dizer o que em mim canta teus olhos
parei de sentir o que no peito engasga de feliz
parei de cuidar do que em mim é jardim
e floresce girassol

parei de correr com o relógio
parei de correr com o carro
parei de correr com as palavras
parei de correr com os meses, ainda

agora me visto de morta
agora que a casa é penumbra

agora que me enfeitam os girassóis

§

"Paisagem em azul" (1966)
Antônio Bandeira (Fortaleza, 1922–1967)

§

Horácio Dídimo (Fortaleza, 1935)

As casas

após longa espera
nada aconteceu
 as casas continuaram baixas

tão baixas
que muitos de seus habitantes rastejavam
enquanto outros desistiam de antigas reivindicações

*

As doces meninas de outrora

as doces meninas de outrora
amanheceram
vestiram os vestidos novos
pintaram as unhas de vermelho
por um instante resplandeceram
depois baixaram as cabecinhas louras
e envelheceram como as flores

*

Triste

triste não é saber que não há
nem que não haverá
triste é saber que nunca houve
e que agora para todo o nunca
choraremos

§

Jorge Mello - "Trovão"
Jorge Mello é um trovador piauiense, mas cresceu em Fortaleza
§

Virna Teixeira (Fortaleza, 1971)

Conversa

entre sombras de
árvores, a noite

relva, onde
pesadas as
palavras

desabem, como
frutos

pequenas equimoses
sob as
polpas.

*

Noite

branca, a sala
a cor desta
ausência

teto
inalcançável

sofá, o vulto
imaginário
de um corpo.

*

Voilà mon coeur

pedras,
lapidadas
sobre as lonas,
luto

a costurar cada
fio
mão trêmula

bordadas
jóias
transparentes eram
os dedos

textura, os panos
veludo
sob a estopa,
gasta.

§


Teti - "Barco de cristal"


§

TRÊS FIGURAS DIFÍCEIS, À PARTE

José Albano (1882-1923)

José Albano foi um poeta cearense, nascido em Fortaleza a 12 de abril de 1882. Sobrinho-neto do primeiro e único barão de Aratanha, estudou no exterior, onde, em 1912, teve impresso em Barcelona seu Rimas, no mesmo ano do Eu do paraibano Augusto dos Anjos. Albano foi admirado e teve seu trabalho defendido por Manuel Bandeira. Morreu em Montauban, na França, a 11 de julho de 1923, completamente alheio a modernismos ou modernidades. No entanto, qualquer narrativa histórica não estereotipada da poesia brasileira do início do século deveria mencionar alguns de seus belos poemas.

Esparsa

Há no meu peito uma porta
a bater continuamente;
dentro a esperança jaz morta
e o coração jaz doente.
Em toda parte onde eu ando,
ouço este ruído infindo:
são as tristezas entrando
e as alegrias saindo.

§

Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Conheci mais tristeza que ventura
E sempre andei errante e peregrino.

Vivi sujeito ao doce desatino
Que tanto engana, mas. tão pouco dura;
E ainda choro o rigor da sorte escura,
Se nas dores passadas imagino.

Porém, como me agora vejo isento
Dos sonhos que sonhava noite e dia,
E só com saudades me atormento;

Entendo que não tive outra alegria
Nem nunca outro qualquer contentamento
Senão de ter cantado o que sofria.

§

Vilancete

Com lembranças de meu bem
Sozinho estive a chorar
Entre o sol-posto e o luar.

Voltas

Na hora mais triste que eu sei
Das horas que vêm e vão,
Saudosamente espalhei
Suspiros do coração;
Pois que me nascia, então,
Uma mágoa singular
Entre o sol-posto e o luar.

E eu dizia: "O sol morreu,
"Não me vê gemendo assim,
"A lua oculta no céu
"Não sente pena de mim.
"O dia teve o seu fim
"E a noite está por chegar
"Entre o sol-posto e o luar.

"Já chorei muito a sofrer
"Saudades longe de ti,
"Porém nunca em desprazer
"Senti o que sinto aqui!"
E destarte conheci
Quando é mais triste — chorar
Entre o sol-posto e o luar.

§

Américo Facó (1885 — 1953)

A alguns, o nome do cearense Américo Facó talvez soe familiar: a ele foi dedicado um dos maiores livros da poesia brasileira, Claro enigma (1951), de Carlos Drummond de Andrade, a quem a amizade de Facó foi de grande e decisiva importância no final da década de 1940, quando Drummond passava por um momento difícil, desligado do Partido Comunista, sofrendo ataques virulentos, e bastante desiludido. No mesmo ano de Claro enigma, foi publicado o único livro de poemas de Américo Facó, Poesia perdida (1951). Facó foi um poeta, como Joaquim Cardozo e Dante Milano, que publicou bastante pouco e bastante tarde, e parece sempre ter-se mantido longe das rodas literárias. O livro foi discutido por um par de críticos importantes, que notaram tanto sua maestria técnica como seu "tom de antiquário". Facó é realmente um tradicionalista. Há alguns anos, caminhando pelo Cemitério de São João Batista no Rio de Janeiro à procura de túmulos de alguns poetas, deparei-com o de Facó, abandonado, dilapidado, mas onde ainda se podia ler algumas das letras de seu nome.

Sextina da Véspera

Um pensamento parte
Confluente da tarde,
— Banho de ouro em que a Rosa
Abre um ventre divino
À cadência amorosa
Do tempo e do destino.

Um só — tempo e destino,
Ambos em toda a parte:
Noite inquieta, amorosa
Manhã, morosa tarde...
Tempo — sono divino!
Destino — sonho... Rosa!

Sonho da tarde — Rosa!
Não lhe diz o destino
O que o tempo, divino,
Esquece em toda a parte;
Só lhe murmura a tarde
A delícia amorosa...

Vibra a luz amorosa,
Anima, aviva a Rosa,
— Excelência da tarde,
Surpresa do destino,
Em que ventura é parte
Sem o tempo — divino.

Tarde — rubor divino!
A luz tomba amorosa,
Toda se dá, se parte,
Esplendor cor-de-rosa...
Idéia do destino
Em que se perde a tarde!

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Gerardo Mello Mourão (1917 - 2007)

Na minha adolescência, não se entrava em sebos de São Paulo sem topar com exemplares da poesia de Gerardo Mello Mourão. Eram em geral exemplares de Os Peãs (1982), que reunia parte de sua obra, seus poemas longos, épico-memorialísticos: O país dos mourões (1963), Peripécia de Gerardo (1972) e Rastro de Apolo (1977). Havia uma declaração de Ezra Pound no livro que impressionava minha cabecinha de poeta adolescente: "Em toda minha obra, o que tentei foi escrever a epopeia da América. Creio que não consegui. Quem conseguiu foi o poeta de O país dos Mourões" (Ezra Pound).

Gerardo Mello Mourão foi contemporâneo, em termos de idade, de poetas como Lúcio Cardoso (1912–1968), Vinicius de Moraes (1913–1980), Manoel de Barros (1916–2014) e João Cabral de Melo Neto (1920–1999). No entanto, raramente estes poetas são vistos como pertencendo à mesma geração. Lembro-me de que o nome de Mourão voltou a circular no fim da década de 1990, quando ele publicou Invenção do Mar: Carmen sæculare (1997), livro que ganhou o Prêmio Jabuti de 1999, e ainda Cânon & fuga (1999). Intuo que o silêncio em torno de sua obra não seja inteiramente de natureza literária. Mourão fez parte da Ação Integralista, e foi preso por Vargas. Considerado "escritor de direita", é possível que isto tenha efeito mais que decisivo sobre a recepção de seu trabalho. No entanto, a própria natureza épica de sua escrita a torna difícil, como ocorre com muito de um gênio como o alagoano Jorge de Lima (1890-1953).  Teve, é importante dizer, admiração por parte de gente como Tristão de Athayde e Carlos Drummond de Andrade. Pessoalmente, não sei bem o que pensar de sua escrita. É um daqueles casos em que sempre me digo: "Preciso voltar e reler com calma aquilo".


O que as sereias dizem a Orfeu na noite do mar

                  (Sobre a frase musical de Ivar Frounberg
                                           "Was sagen die Sirenen
                                    als Odysseus vorbei segelte")

Ninguém jamais ouviu um canto igual
ao canto que te canto
escuta: as ondas e os ventos se calaram e a noite e o mar
só ouvem minha voz - a noite e o mar e tu
marinheiro do mar de rosas verdes:

virás: é um leito de rosas e lençóis de jasmim
mais o lençol de aromas de meu corpo
e dormirás comigo
e os que dormem com  deusas
                     deuses serão - verás
cada arco de minhas curvas
à forma de teu corpo moldaremos - e a pele tua
aprenderá da minha
aroma e maciez e música
e entre garganta e nuca aprenderás
a noite dos que dormem a aurora dos que acordam
sobre os seios das deusas também deuses.

Vem dormir comigo
                     e comigo
e todas as sereias.


Todas as deusas se entregam
ao amante que um dia possuiu uma deusa
e então todas as fêmeas dos homens
Helenas, Briseidas e a Penélope tua
hão de implorar às Musas - e as Musas a Eros e Afrodite
a volúpia de uma noite contigo.


Não partas!
                     se partires
as velas de tua nau serão escassas
para enxugar-te as lágrimas - e nunca
nunca mais tocarás a pele das deusas
nunca mais a virilha das fêmeas dos homens
e nunca mais serás um deus
e nunca mais a melodia de uma canção de amor
dos hinos do himeneu
abelhas mortas para sempre irão morar
na pedra do jazigo de cera
de teus ouvidos cegos.


Mas vem
e vem dormir comigo
                     e comigo
                     e minhas irmãs e todas
                     as sereias do mar
                     as sereias da terra
                     e as sereias dos céus.

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Geraldo Júnior e Dr. Raiz (grupo do Cariri)

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segunda-feira, 24 de abril de 2017

No dia da maioridade de Ewout De Cat




Hoje, menino, você
chega à vigésima
-primeira primavera,
mas, nascido
nessa estação
aqui
no hemisfério norte,
devo acrescentar outra
à contagem? Conta-se
a estação
da qual se parte?

E é sorte isso,
chegar na primavera
como os animais
que cronometram
a sua alegria?

Nós humanos
não
aguardamos flor
no sol ou sol
na flor, muito
menos alegria,
para foder-nos
uns aos outros

e eu mesmo
cheguei ao mundo
em pleno inverno
do hemisfério sul
mas duas décadas
antes de você
e nem sequer
podia mais ser contado
entre virgens e inocentes
quando você deu
seu primeiro grito.

Em qualquer cultura
e jurisprudência,
você é agora,
como dizemos,
de maior.
Dono dos tropeços
no sono dos passos.
Muda agora
até em mim
o vocabulário,
e o menino que abre
este poema
melhor seria
moço ou rapaz.

Naquela epístola
disse o apóstolo:
Quando eu era menino, 
pensava como menino, 
sentia e falava como menino. 
Quando cheguei a homem,
deixei para trás as coisas
de menino.

Mas isso é o quê,
homem? O que
é isso,
coisa de homem,
nós que matamos
a quem fuja
às regras das coisas
de homem,
quando homem?

Estratão de Sardis
tardio,
se escrevo agora
sobre seus pés e mãos
são os pés e mãos
agora de homem
e já não se pode arquivar
as minhas erocisões
nas estantes
da Musa Puerilis.

Vou ser só mais
um cavo-cavafy,
um pseudo-pasolini,
um parvo-piva.

Mas daqui do fundo
dos meus quarenta
invernos, veja
como aprendi truques
para cantar você:

Posso tomar esta data,
24 de abril,
e dizer que você
nascido
é mais influente
em minha vidinha
do que a ascensão
de Tutmósis III
ao faraonato
da XVIII
dinastia egípcia
no Império Novo

estável é a manifestação de Ré

e o sol que brilhou
sobre Tutmósis III
agora brilha sobre você,
Ewout, para mim
o primeiro,
e faraó nenhum.

E houve a queda de Troia
e o casamento de Mary Stuart
e o início de uma guerra
e o começo de um genocídio
e um levante de Páscoa
e um tratado em Berlim
e o Canal de Suez reaberto
e a morte de Vladimir Komarov
retornando da órbita do planeta
e o lançamento do telescópio
Hubble para a mesma órbita,

tudo isso nessa data,
e tudo isso o planeta
e seus antepassados
precisaram sobreviver
para dar a você a chance
de nascer numa primavera,
como eu num inverno
do hemisfério
oposto
precisei da sobrevivência
de outros
antes do seu primeiro grito
quando eu,
com duas décadas
de invernos e primaveras
já havia perdido
as contas dos meus
mas agora podemos
ao menos
esgoelar juntos.

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Holanda, 24 de abril de 2017, 21° aniversário de nascimento de Ewout De Cat.




sexta-feira, 21 de abril de 2017

Reflexões sobre a bichice da bichice

O que une o bicho e a bicha, seria possível dizer, é, na visão humana, a concessão da bicha à bichice, ou seja, à animalidade, e, portanto, ao animalesco, enquanto por séculos invisibilizou-se a bichice nos bichos para não naturalizar o que a visão humana via como não-natural nas bichas. Assim o é para a ala humana que se fez porta-voz do divino. Pois ao humano o bicho é sempre natural, o bicho é, em si, a natureza. Aceitar a possibilidade da bichice nos bichos seria, desta feita, naturalizar a bicha ou humanizar o bicho, e ambas ações seriam uma afronta ao divino que é, por si, nem humano nem bicho - segundo certa visão humana. Da visão do divino ou da visão do bicho o que sabemos, por ora, foi o que disse o humano. O pavor humano à bichice talvez resida portanto na bichice-em-si e na bichice em si, das quais o humano quer separar-se por crer-se ou querer-se mais próximo do divino. Isto, é claro, segundo o humano que não se quer bicho, e tal humano diz em nome do divino que não convém deitar-se com bichos ou com bichas, nem fazer coisa alguma como bicho ou como bicha. Proíbe-se na bicha sua bichice e proíbe-se ao bicho a sua bichice. A bicha não é vista como humana por ser um desvio do divino, e, portanto, a bicha é diabólica por agir como bicho, enquanto ao bicho não se pode permitir a bichice porque o bicho é natural. E o natural é divino. Assim tal bichice natural perturbaria a hierarquia entre o divino, o humano e o bicho, que precisam ser mantidos em jaulas separadas para a manutenção das normas: e uma das normas é que não te deites nem com bichos nem com bichas, para que não te tornes nem bicha-bicho nem bicho-bicha. A bicha-bicho e o bicho-bicha são, dessarte, afrontas à pureza do humano-humano e do divino-divino. Porque todas as criações são divinas: os bichos e os humanos, mas não as bichas, porque as bichas são humanos que agem como bichos. Nestas jaulas separadas quer-se proteger o divino nos bichos e nos humanos, mas com elas nega-se afinal no bicho o bicho e o humano e o divino, e nega-se no humano o humano e o divino e o bicho, e, por fim, nega-se no divino o divino e o bicho e o humano.

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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

A beleza dos coletivos


Sempre detestei números. Aos oito anos, recusei-me por semanas a repetir a tabuada todos os dias. Já sabia que dois e dois são quatro. Ditadura das certezas. Minha estratégia: fazer tarefa extra de português, como escrever TODOS OS DIAS a lista de substantivos coletivos. Mecânica por mecânica, tenho outras prioridades. Dei-me mal. Recado da professora para Dona Cida minha mãe (em tinta vermelha!). Humilhação doméstica e escolar. Ora, Dona Giselda da segunda série, eu já decorei seus 2x2=4! Meu coração já está repleto destas adições, subtrações, multiplicações e divisões. Mas veja a beleza das colmeias e das matilhas! Das chusmas e das legiões, essas multiplicações fluidas! Levaria anos para descobrir Cummings e seu 'São 5'. Resultado: meu ódio a convicções pétreas, minha lealdade aos coletivos.

assembleia (pessoas)
alcateia (lobos)
acervo (livros)
antologia (textos)
arquipélago (ilhas)
banda (músicos)
bando (malfeitores)
banca (examinadores)
batalhão (soldados)
cardume (peixes)
caravana (peregrinos)
cacho (frutas)
cáfila (camelos)
cancioneiro (canções)
colmeia (abelhas)
chusma (pessoas)
concílio (bispos)
congresso (parlamentares, cientistas)
elenco (atores)
esquadra (navios)
enxoval (roupas)
falange (anjos)
fauna (animais de uma região)
feixe (lenha, capim)
flora (vegetais de uma região)
frota (navios mercantes, ônibus)
girândola (fogos de artifício)
horda (invasores)
junta (médicos, bois, credores)
júri (jurados)
legião (soldados, anjos, demônios)
leva (presos, recrutas)
malta (desordeiros)
manada (búfalos, bois, elefantes)
matilha (cães)
molho (chaves, verduras)
ninhada (pintos)
nuvem (gafanhotos, mosquitos, etc.)
panapanã (borboletas)
penca (bananas, chaves)
pinacoteca (pinturas)
quadrilha (ladrões)
ramalhete (flores)
rebanho (ovelhas)
récua (bestas de carga)
repertório (peças teatrais, obras musicais)
réstia (alhos ou cebolas)
romanceiro (poemas narrativos)
revoada (pássaros)
sínodo (párocos)
talha (lenha)
tropa (muares, soldados)
turma (estudantes)
vara (porcos)

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sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Poema no aniversário de Oswald de Andrade (na verdade para seu tradutor Oliver Precht)


Aqui onde cai a neve
inventada
por poetas europeus
seus maios cansativos
suas paisagens monótonas
como o capim infindo
das rodovias do interior

cá vêm pinheiros
cá vem capim
lá vão pinheiros
lá vai capim
vêm e vão
pinheiros
capim
todos em vão

para os meus olhos
de jabuticaba
e a manga coração-de-boi
que muge feito anta
no peito

muge a este gelo
despencante do céu
ó efeitos especiais
de filmes americanos
com suas crianças
esquecidas em casa
seus maníacos
por entre labirintos de hera

são os do norte
que vêm
porque os inventamos
com nosso milho
nosso tomate
nosso cacau

inventamos assim
este continente
de ficção científica
este conto de fadas
fajutas das origens
esta lorota
das idades de ouro

cumpro meu papel
fácil de memorizar
pois faço apenas
o imigrante do sul
e tenho só
duas frases no filme

sim senhor
não senhor

gaguejo-as com sotaque
para o delírio
cômico da plateia

mal suspeitam
o galã a namoradinha
do lemonde
do theguardian
do frankfurterallgemeine
com suas novelas
das seis
das sete
das oito
que vou e venho
que venho e vou
entre eles
rebolando
encapotado no casaco
antropófago às avessas
ludibriando-os a comer-me
feito quitute de feira

chega mais ó indomável
indomitável inimigo
dá a mordida profunda
o loiro ali
já pronuncia direitinho
de nada obrigado
a sardenta ali
já soletra direitinho
lispector hilst drummond

vim trazer-vos de volta
vosso turismo pornô
ó mítico povo da zooropa
sou o imigrante que jura
não estar aqui
para roubar
vossas mulheres

proponho em troca
a vitória-régia
a vosso narciso
privatizado

para que de vossa
tendência sado-maso
reste apenas a brincadeirinha
de namoradinhos
na cama do planeta

vim trazer-vos
rudá
pois de tanto eros
já estamos com os sacos cheios


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Berlim, 11 de janeiro de 2017.

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